Betelgeuse

Carlos caminhava por uma estrada arruinada em direção ao norte

Mais uma vez, estava só. O ano era 2202... 216 anos depois do seu nascimento.

Fazia uma semana que ele deixara as ruínas do que um dia foi a cidade portuária de Santos, na costa do Brasil. Há dois dias ele caminhava, desde que sua velha moto Harley & Davidson havia quebrado. Era difícil encontrar peças para uma moto cento e poucos anos depois de sua produção parar. Faziam, pelas contas dele, 180 anos que a civilização humana entrara em colapso. Carlos nunca soube dizer se foi pelo vírus, se foi pelas crises econômicas, ou pelo declínio da produção de alimentos e uso excessivo de recursos naturais. Fato é que quando o vírus atacou, as cidades já estavam em declínio, as pessoas passavam fome e vários países sucumbiram à guerras civis. Em poucos anos, o que eram outrora grandes nações, se fragmentaram e deram lugar a inúmeras cidades-estados governadas por ditadores, populistas, e aristocracias tecnológicas. O mundo como Carlos viu quando crescia nos anos 1990 e 2000 não existia mais.

Hoje, ele vivia por viver, esperando alguém que fosse capaz de por fim à sua vida. Vida que foi destruída com o surto do vírus Betelgeuse, como os cientistas o chamaram.

Ninguém sabe de onde ele surgiu, mas matou mais da metade da população humana. Os que sobreviveram ao vírus morreram nos eventos posteriores ao seu surto. Cidades foram saqueadas, jovens, adultos, idosos foram assassinados. Em alguns lugares, o homem se tornou um animal sem a coleira da civilização.

Ninguém da família de Carlos sobreviveu ao vírus. Tios, primos, pai, mãe, irmãos... Todos morreram, exceto ele, que pareceu não ser afetado pela doença. Sua esposa grávida morrera dando a luz a uma criança morta. Depois disso, Carlos decidiu que a vida não valia mais à pena e meteu uma bala em sua cabeça. Surpreendentemente, acordara no dia seguinte, com nada mais do que uma cicatriz na têmpora direita, e uma parede ensanguentada ao seu lado. Passou alguns dias procurando explicações para o acontecido, mas não foi capaz de encontrar algo que explicasse o fato de ter explodido seus miolos e ter acordado com apenas com uma cicatriz e uma bruta dor de cabeça.

Depois disso, ele deixou sua já arrasada cidade, no Nordeste do que um dia fora o Brasil e seguiu sem rumo em direção ao Sul. Vagou por um ano, até que encontrou o que restava da cidade do Rio de Janeiro. Ali, uma grande empresa de biotecnologia e genômica havia se instalado e formado um Tecnofeudo, abrigando em torno de 50000 pessoas.

Uma cidade, com muralhas de metal e concreto e grandes prédios de vidro espelhado.

E foi ali que ele descobriu que em algumas pessoas, o vírus havia deixado sequelas. Os nascidos dos sobreviventes eram significantemente maiores, mais ágeis e mais fortes que seus pais. Amadureciam fisicamente na metade do tempo, sendo assim viam-se adultos com 10 anos de idade. Apesar desses benefícios, vários deles exibiam uma personalidade violenta, antissocial e frequentemente com tendência à sociopatia. Este fato fez muitos levantarem a hipótese de que o vírus surgiu de uma tentativa de produzir um “soldado perfeito”. Se essa era a resposta, ninguém chegou a saber. Os mutantes foram expulsos das cidades, e na atualidade, formavam perigosos bandos que atacavam tudo que viam pela frente, de caravanas até pequenos povoamentos.

Com o tempo os mutantes começaram a exibir características ainda mais “curiosas”, como sentidos aguçados, pele escamosa, e membros extranumerários. Não era infrequente eles sobreviverem apenas o suficiente para se reproduzirem. Carlos nunca viu um mutante com mais de 40 anos. Apesar disso, sua população crescia cada vez mais.

Haviam alguns infiltrados nas cidades, simplesmente pelo fato de que alguns não exibiam qualquer diferença física de um humano normal. Pelo menos por fora.

Assim, as cidades-estados se tornaram isolacionistas e xenofóbicas.

Carlos viveu por 10 anos no Tecnofeudo do Rio de Janeiro como técnico de biotecnologia, devido à sua formação acadêmica anterior ao apocalipse, como ele gostava de chamar.

No entanto, ele percebeu que não envelhecia. As pessoas ao seu redor começavam a comentar o fato de que ele continuava tão jovem quanto quando chegou ao Rio, e uma certa noite, Carlos decidiu secretamente deixar a cidade.

Naquela noite ele roubou um caminhão e seguiu para o sul até esgotar o combustível que tinha disponível. Quando percebeu que estava perdido, em algum lugar do que foi o Estado de São Paulo, Carlos decidiu testar sua “imortalidade”. A vida havia se tornado um infortúnio e ele não via por que prolongá-la. Seguiu então a pé pelas florestas que surgiram depois dos anos em que a civilização regrediu. Não demorou muitos dias até um bando de mutantes o encontrar. Cercado, desarmado, Carlos os desafiou a matá-lo.

Um homem negro, com pelo menos 2 metros de altura se aproximou e olhou-o nos olhos. Por alguns segundos, Carlos temeu pela morte, mas o homem nada o fez.

- Você não tem medo da morte -, ele disse. – Você à procura. O mais perigoso dos homens é aquele que procura a morte em suas batalhas.

Rodrigo era seu nome, e pelos 20 anos que ainda viveu, foi seu mestre. O mais honrado homem que Carlos conhecera era um mutante. E ele transformara um franzino humano incapaz de morrer, numa máquina de matar, incapaz de ser morto.

E era aquela máquina de matar que fazia o caminho de volta para o local onde enterrara seu mestre, 150 anos atrás.

Carlos era um imortal, ou pelo menos não sabia como poderia ser morto. Não até aquele dia. Naquela tarde cinzenta do ano de 2202, Carlos encontraria alguém que como ele próprio.

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 28/08/2012
Código do texto: T3853856
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