O Ocaso da Natalidade

1. O Ocaso da Natalidade.

Não hesito em valer-me, sem qualquer pudor, de José Saramago. Ele faz sucesso, e um sucesso internacional inegável deve ser copiado, isto é, copiado não, expressei-me mal, não se trata de plagia-lo, mas de usa-lo como inspiração e fonte de referência.

Mas nas idéias, apenas nas idéias, não farei aqueles parágrafos enormes, com uma pontuação confusa, isso não, senão preferiria inspirar-me em Joyce, James Joyce, o que é muito mais charmoso e culto, apesar de já um pouco batido, e que, de resto, não faz qualquer sentido em termos de mercado, porque Joyce vende pouco, apenas para letrados, sendo o que Maiakovski chamava de uma poderosa usina energética que alimenta somente a outros autores em semente, que poderão vicejar ou não naquele terreno fértil e cheio de material em decomposição... Ah, os irlandeses, passavam as tardes ociosas no exílio, se embebedando e fumando como turcos (narguilé, gauloises e outros baratos, junto com uísque, vodka, absinto, tequila e muitas outras bebidas exóticas), promovendo pancadarias sob efeito do etanol, e agora, século vinte e um, alguém pode ser preso se for pego fumando um guimba de cigarro na ilha esmeralda. É o progresso, senhores... O pobre Stephen Dedalus, revivido, não poderá se embebedar mais na Dublin dos tempos pós-modernos. O pobre Murphy trocará sua capacidade cirúrgica por um Continental sem filtro e um gole de aguardente, mas não na Dublin da Santa Comunidade Européia. O pobre Malloy, o que será dele? Os seus descendentes, no entanto, poderão vir para o Brasil. Aqui podem fumar e beber a vontade. Podem até fazer turismo numa praia paradisíaca do nordeste, com uma quase virgem de quatorze anos... Porque formiga corta longe de casa, e nos fartamos de ver italianos, portugueses e outros exploradores do novo mundo, desfrutando dos prazeres simples que a vida pode oferecer, no ambiente mais simples e simplório deste lado do Atlântico, com os bolsos carregados dos poderosíssimos euros, os cabelos brancos, os paus semimurchos e um estoque infindável de produtos químicos apropriados para a chamada disfunção erétil, o que antigamente tinha outro nome e era atribuído ao acúmulo dos anos. O acúmulo dos anos que joga tudo para baixo sob a ação da impiedosa gravidade, e, que não satisfeita em manter-nos com as fuças no solo, acaba por remetermo-nos para abaixo dele. Olhamos o céu desejando um foguete poderoso que possa nos levar para planetas distantes de ar puro, mata verdejante, índias cheirosas, mirra, pau Brasil, diamantes, ouro, mandioca, milho, onde tudo dá sem que se precise plantar... Bastaria estender a mão para colher os bagos sumarentos de uvas doces que se oferecem espontaneamente... Mas tais planetas ainda não os há. Contentamo-nos em olhar as belas imagens do Hubble, as sementes de estrelas se formando em galáxias do espaço tempo remoto, a imagem da formação do universo, comparando-o com a realidade triste da nossa terra, onde o universo parece estar se acabando.

Se acabando. A entropia acaba por criar um mar pegajoso de energia dispersa onde nada mais cresce. Os pequenos demônios de Maxwell que somos nós trabalhamos inutilmente levando pedras de cá para lá, construindo intermináveis muralhas da China, pirâmides, muros de Berlim e da Palestina, cercas para conter os chicanos. Mas nada nesse mundo será capaz de evitar o fim. E o fim está próximo, uns 120 anos, no máximo.

Pois que as mulheres estão infectadas por um misterioso vírus, um H5N1 louco, carregado pelos ventos, dentro de microscópicas cápsulas protetoras. Quando uma área de convergência drena os ares da floresta amazônica, espalha-se pelo mundo. É também possível que o derretimento dos gelos polares, fruto exclusivo do aquecimento planetário provocado pela queima abusiva do combustível fóssil, libera microorganismos patogênicos que estavam, há milhões de anos aprisionados nas camadas mais profundas. São os vírus e bactérias que existiam no início dos tempos e para os quais o ser humano não tem qualquer defesa. Os vírus sozinhos não sobreviveriam, mas eles estão dentro das bactérias. A dupla mortal está nos ares, que, cada dia mais revolto, os espalham pelo mundo. Primeiro os retrovírus, depois a gripe das aves, e agora a febre esterilizante.

Pobres bagos, pobres ovários, pobres úteros que não receberão mais embriões viáveis. Em miseráveis 100, 120 anos a humanidade inteira desaparecerá por falta de nascimentos.

2. A vida não pode parar.

É preciso entender essa inaudita redução da taxa de natalidade. O bispo Malthus, se vivo fosse, teria que comer o chapéu. A taxa da natalidade decresce em progressão geométrica, enquanto a produtividade cresce segundo uma curva exponencial, pelo uso crescente de robôs. No final, alguém muito rico, numa Nova Iorque deserta enfiará uma bala na cabeça por tédio. E terá sido o último ato. Cai a cortina e não haverá quem aplauda.

3. A solução definitiva.

Um paradoxo dificilmente pode ser explicado, mas pode maravilhar e espantar. A natalidade cai, chega a quase zero no mundo desenvolvido e nas classes abastadas, e por outro lado, tantos são os presidiários neste país sub-emergente que o estado, definitivamente, não os pode sustentar. As cadeias superlotadas revoltam os humanitaristas remanescentes do século vinte, que já idosos protestam como se essa fosse a missão de suas vidas quase findas, comprovando que os idosos são a verdadeira classe revolucionária, pois, com a vida por um fio, nada mais tem a perder. Como cabelos brancos e cassetetes não combinam, o sangue derramado nas madeixas encanecidas foi parar nas primeiras páginas. As delegacias são depósitos de presos sem julgamento, e a polícia usa também as velhas viaturas quebradas como jaulas onde se espremem dezenas. Um famoso advogado do passado usou a lei de proteção aos animais para defender a um preso ilustre, num tempo em que os campos de concentração estavam na moda na refinada e culta Europa. Como ratos numa experiência de labirinto superpovoado, os presos se tornam violentos e se matam entre si. Os velhos se escandalizam e pressionam o governo. A ONU, horrorizada, clama por reforma no sistema prisional. Alegam os políticos que nos Estados Unidos o problema é o mesmo; prisões super lotadas por latinos e negros e alguns brancos verdadeiramente criminosos, e que a construção de mais presídios, por si só, não resolverá a questão. Torna-se necessária uma solução definitiva, bradou o deputado Cunha Mello. Um outro parlamentar, em tom de piada, sugeriu que fosse criada uma área de reserva para presidiários, assim como há as reservas ambientais e as reservas indígenas, e que para lá fossem enviados os condenados e sociopatas, o único problema seria retê-los lá. Assim estava nascendo a solução definitiva.

4. Hibernação.

Há um modo de pularmos os dias que não queremos viver. Afinal, porque perder um dia de nossas vidas se não estamos dispostos. Deveríamos hibernar nesse dia, adiando a sua passagem e prolongando a vida pelo tempo correspondente. Em lugar de perder, com todas as chateações inerentes a um dia que não estamos dispostos a viver, ganharíamos esse dia, lá no futuro. Um dia além da morte programada.

Ficaríamos, pois, em hibernação, economizando as nossas forças e os nossos pensamentos, aguardando que o mundo resolvesse os seus problemas insolúveis. Penso que os neurônios ficariam preservados, pois, um mau pensamento é capaz de liquidar milhares deles, enquanto pensamento nenhum, emoção nenhuma, sensação nenhuma tem o benefício de não prejudicar os neurônios com a carga de negatividade, ou de positividade. Nada, simplesmente nada para perturbar o relaxamento absoluto do corpo fatigado pelo mundo exigente da sobrevivência. Nenhum trabalho, nada, nenhuma ação, nenhum movimento, nem o sangue flui, nem ocorrem os processos digestivos a exigir energia, nenhuma despesa inútil, apenas a quantia contratada com a empresa.

A Vidadoura, combinação de vida duradoura, ou vida dourada, menção ao mito do futuro dourado, é a empresa detentora da tecnologia da hibernação. Mas, nada de sonhos, eles garantem a impossibilidade completa da ocorrência de sonhos, já que os mesmos podem ser perturbadores, e roubar muita energia do corpo que se quer preservar. A sensação é a ausência absoluta correspondente ao manto negro da morte, o buraco negro da não existência.

Mas será que eles podem dar garantias? Sim, disse-me a atendente simpática e cheirosa, eles podem. A explicação científica é muito complicada para o senhor entender, mas os registros eletroencefalograficos demonstram que não há qualquer atividade cerebral, e o depoimento dos clientes já atendidos o comprovam; acordaram, todos, muito bem dispostos, com um pouquinho de fome, devemos admitir, mas de bem com as suas novas vidas.

E qual o tempo mínimo da operação? Meio dia, um dia, semanas, meses, depende do senhor e do seu estoque de dinheiro. Quanto custa? Meio dia custa caro. Meses sai mais em conta. O senhor faz um depósito mínimo de vinte mil reais, o que lhe garante seis meses de estadia. Caso saia antes devolveremos o excedente.

Ou seja, para experimentar tenho que desembolsar vintinho... Exatamente, mas caso o senhor não disponha da quantia, podemos financiar a juros baratos, baratíssimos, um verdadeiro negócio da china, já que o senhor não terá despesas de alimentação, nem de transporte, muito menos precisará lavar as roupas, nem medicamentos, nem impostos, ou telefone, ou luz, e poderá alugar a sua casa pela temporada, de forma, senhor, que se fizermos as contas na ponta do lápis, o senhor poderá até lucrar alguma coisa.

Pode ser um bom negócio, pensei eu. Peço uma licença no trabalho, boto o dinheiro num fundo de investimento, alugo o apartamento para uns estrangeiros verem a queima dos fogos do fim do ano, emendando com o carnaval, e vou alegremente morrer por uns meses. Depois acordo e é só recolher os lucros, dias e dinheiros poupados rumo ao futuro dourado. Afinal de contas, o Brasil só começa mesmo a trabalhar depois do carnaval. Enquanto isso fico dormitando em berço esplêndido, nos braços de Morfeu, e que se danem os retrovírus, os presidiários, os buracos negros e o telescópio Hubble.

5. Fantasias.

Somos pródigos em matéria de ilusão. Não o puro engano sobre a realidade, mas a forma como construímos a realidade com uma fantasia crível que nos permite continuar vivendo. Muitas pessoas compartilhando de uma mesma fantasia dão a ela uma existência real, e se essa fantasia contribui para a ordem e o sucesso social, tudo bem, o mito é bem vindo. Antigamente havia uma palavra para traduzir essa lógica social; ideologia. Hoje fora de moda, a palavra ganhou conotação pejorativa. Os grandes e horrorosos lideres de antanho abusaram do seu uso, não da palavra, mas do mecanismo. Mao, o grande timoneiro, chegou a afirmar que qualquer coisa passa a ser verdadeiro se aceito pelas massas. Ele estava falando de um bilhão de chineses que hoje se passam por livres mercadistas natos.Aquele outro ditador alemão, cujo nome não mencionarei para não emporcalhar mais a brancura do papel, garantia que a verdade pode ser construída pela propaganda maciça e massiva que ao repetir muitas vezes uma mentira, a transforma em verdade, novamente, quando passa a ser aceita pelas massas. Jeová, Alá, Tupã, Jesus, Buda, aceitos pelas massas, que afinal de contas somos nós, o povo, sedimentam a realidade com suas benesses. Ou seja, como formigas marchamos pelas mesmas trilhas, marcadas pelos feromônios da propaganda. E a propaganda lida com o mito do futuro dourado. Ela vende as promessas dos políticos e a dos produtos. Ela vende paraísos e ameaça com infernos. O mesmo faz a tecnologia, essa religião de ateus, que só encarece a vida e nos torna obesos. Afinal, com tanto progresso o mundo não melhorou, e a garantia de felicidade, se é que tal coisa existe, não decorre de nenhuma ideologia, seja ela qual for. Eis porque caí nas malhas da Vidadoura. Ao invés de permanecer acordado, lutando para me reproduzir e diminuir, um pouco que fosse, o terrível efeito Siseneg, que é gênesis ao contrário, preferia dormir por um tempo, na esperança de que quando acordasse o terrível pesadelo tivesse terminado. Pretendia embarcar na ilusão baseado apenas na propaganda televisiva da empresa, que vendia o futuro de paz e esperança.

6. Tecnologia de Exclusão.

A tecnologia da exclusão dos presidiários contou com a contribuição das grandes empresas. O projeto foi financiado pelo BNDESCO Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico-Social-Corporation, com a participação das grandes empresas. Foi demarcada uma ampla área na região centro-oeste, declarada como território livre. Aos prisioneiros enquadrados no decreto de exclusão, penas superiores a trinta anos, crimes hediondos, prisioneiros pertencentes ao crime organizado, fugitivos contumazes, prisioneiros considerados irrecuperáveis pela comissão arbitral, foi retirada a nacionalidade brasileira, perdendo o indivíduo, assim, todos os direitos de cidadão. Em seguida foram deportados para a região demarcada, apelidada de Clevelândia pela imprensa. Para evitar que fugissem da região foi implantado um chip em seus corações. Um satélite os rastreava, e emitia um sinal que cobria todo o território nacional, exceto a área de exclusão. Em caso de fuga, o sinal detonaria o chip e explodiria o coração. Simples, prático e eficaz, como, aliás, previsto em vários filmes de Hollywood. Uma peneira fina filtrou os elementos indesejáveis do sistema prisional, e três anos após a sua implantação, a Clevelândia já contava com cinco milhões de habitantes e um PIB per capita de 15 mil dólares por ano, florescente indústria de construção civil, exploração de gás natural concedida a empresas globais e, pasmem, taxa de natalidade de 3% ao ano! Muito melhor do que qualquer país desenvolvido. Eles proviam as suas necessidades por si sós, não cobravam impostos e mantinham grandes negócios com diversos países. Uma florescente indústria de entretenimento surgiu, cassinos, produção cinematográfica, esportes. Havia já um movimento político para que se transformassem em país soberano, com assento na ONU, e cogitava-se denomina-lo Brejil, mistura jocosa de Brasil com brejo. Dizia-se que se a vaca já foi pro brejo que, pelo menos, fosse com pompa e circunstância.

7. O Fim.

Queria tanto hibernar, sumir por um tempo, até que a vida melhorasse. Mas me apaixonei, e ela me prendeu com sua magia, dizendo:

-Meu bem, vamos brincar de fazer criança!