concerto em ré maior - parte 7
Gui só consegui olhar para as ruas com suas pilhas de lixo para andar em cima, ele tinha vivido tantos anos ali, ok não eram tantos assim, mas eram todos os que havia vivido. Já estava sendo levando em um veiculo a base de óleos que deixam um rastro de poluição atrás dele e faziam os passantes tossir.
Apos alguns instantes o veiculo parou. Gui desceu cercado pelos guardas de óculos metálicos. Ele não tentaria correr, não sabia o que carregavam nas enormes maletas penduradas em seus ombros e não gostaria que sua ultima realização fosse descobrir.
Esperaram pela abertura de uma pesada porta de ferro puxada por dezenas de homens, todas as coisas para as quais Gui olhava agora pareciam ter outro sentido, antes eram inquestionáveis, não existiria outro jeito, mas agora eram ineficientes, demasiadamente complicadas e aprisionadoras.
Ao observar a porta de ferro sendo puxada com esforço ele sentiu vontade de fugir mas seus músculos não se moviam. Ele sabia que seria perseguido, ele já sentia peso por estar ali de volta, um peso que ele não sabia antes que carregava e só agora conseguia identificar a leveza ao estar na cidade ensolarada.
Agora ele não tinha mais que seguir a esteira de obrigações, ele sabia que existiam mais coisas e qualquer que fosse a sentença, ninguém podia tirar isso dele.
Na sala aonde a luz gritava com ele vozes dispersas lhe diziam como proceder, onde sentar, como, pediam para que ficasse em silencio. Ia começar um questionário eletrônico, com luzes ainda mais agressivas, questões rápidas sobre conteúdos que ele tinha decorado para anos anteriores e não estavam nos livros desta grade.
Gui começava a suar, gotas tímidas escorriam pelos cantos de sua face e costas e ele tentava disfacar na cadeira dura e muito maior que ele.
Depois de uma bateria de perguntas, desafios e ordenações, a tela anunciou que Gui deveria se levantar, a tela subiu e deu origem a uma passagem, seguindo pelo corredor ele chegou a uma sala que lembrava uma fortificação de mandador assim como nos livros da grade da escola.
Nesta sala estavam seus nervosos pais e mais algumas figuras, não muitas, a maioria desconhecida. Parecia que ele iria levar uma bronca maior do que a sala, mas por instantes nada, ele até tentou respirar mas baixo.
Enquanto Gui olhava para seus pais com o canto de olho evitando qualquer contato maior, alguém com voz de mandador falou a distancia anunciando a abertura de portas para que saíssem. Aparentemente ele estava livre, mas alem da grade escolar com hora extra para não ser expulso ou reprovado, ele também deveria restar serviços ao forte dos mandadores, ele também estava proibido de andar desacompanhado.
Se havia alguma duvida antes, agora não havia mais. No caminho de volta seus pais logo demonstraram sua insatisfação e fizeram questão de não apenas seguir as recomendações sobre o pouco tempo que lhe teria restado, eles cortaram todo seu momento de diversão até que ele terminasse a grade e passasse para a próxima.
Agora Gui havia recebido um novo dispositivo GPS chip, um muito mais difícil de tirar e com mais velocidade de dados, pessoas do forte principal ou qualquer outro teriam acesso direto, garantido e 24 horas a sua localização e arredores, talvez até a seus movimentos.
Gui não dormiu, passou a noite olhando as paredes e ouvindo o apito de seu novo e indesejado dispositivo. Não demorou tanto para o despertador gritar como sempre e seus pais logo se prontificaram em separar suas coisas. Seu vizinho alguns anos mais velho iria acompanhá-lo até a grade, pois seus pais não podiam se atrasar para sua esteira de emprego.
O vizinho lhe ofereceu um pó açucarado e grudento, mas Gui recusou de forma educada. O garoto mais velho ficava brincando com as latas soltas da calçada e provavelmente nem iria perceber se Gui desviasse o caminho, mas o GPS de pulso iria e ele não consegui soltar nem com a caneta mais forte.
Chegava o momento de atravessar o passadouro de carros que vinham a toda velocidade, eles deveriam ter atenção máxima e correr com toda força que fosse possível, tinham aulas de educação física para isso. Gui se preparava para correr, mas caiu para trás. Sentiu uma forca puxando-o na direção contraria da que seguiu seu acompanhante e o vizinho seguiu distraído, comendo mais de sua gosma colorida de açúcar.
Gui estava sentado no chão de um lixão de estabelecimento ainda fechado e reconheceu as aos que o puxaram. Eram Silvia e Maristela. Elas conseguiram cortar seu aparelho localizador. E seguiram para um local mais escondido e longe da grade escolar.
Mais tarde, longe das poucas remanescentes luzes noturnas, o grupo se aproximou dos pais de Gui, que aterrorizados resistiram a tudo aquilo. Não queriam acompanhá-lo nem deixá-lo ir. Estavam extremamente irritados com seu comportamento e também com a presença das moças.
Gui olhou para ambos os lados, sabendo que podia seguir com Maristela e Silvia e abandonar aquilo tudo até nunca mais ou ficar com seus pais, arcar com as conseqüências impostas pelos mandadores e seguir mal visto e frustrado. Mas deu apenas um passo a frente e falou um claro e sonoro não. Não seria mais boneco de ninguém. Gostaria que seus pais fossem com ele e não iria se convencer com a idéia de ficar ali para sempre e ainda condenado, qual seria o crime em ter algo melhor, mais simples e se sentir bem a respeito.
Puxou os localizadores de seus pais, que se assustaram e estendeu-lhes a mão para seguirem com Maristela e Silvia para a cidade do sol. Agora elas conheciam melhor o caminho e chegaram sem conflitos, evitando as placas com códigos de barras.
Seus pais resistiram até a chegada, duvidavam de tudo e acharam um passeio, não acreditavam que se poderia morar ali. Mas aceitaram passar a tarde na casa e alegar dia de doença no trabalho, sabiam que o filho estaria em perigo se voltasse e apesar de tudo queriam protegê-lo.
Silvia acompanhou Gui até sua nova escola e decidiram junto as outras crianças, jovens e professores fazer uma grande apresentação para a cidade de sombras e lixo.
Alguns desceram, muitos não tinham registro e já haviam nascido no território banhado por sol. Eles foram ignorados por algum tempo, passaram a mensagem da cooperação, mostraram paisagens sem lixo extremo e comido que não fosse gosmenta e com sabor de resíduos metálicos. Alguns se aproximaram, alguns se interessaram. Ficou estendido o convite e todos voltaram aos seus respectivos locais, poucos seguiram com o grupo para a cidade de arvores e frutos, mas os pais de Gui decidiram ficar.
O convite continua aberto e as portas nunca se fecharam, basta coragem para sair do olhar dos mandadores, de seus seguidores e das esteiras estáticas que dão sequência às grades.
Fim