Simulações - parte 2

Ana puxou com raiva o pendrive do irmão mais velho do computador.

— Hei! Espera aí! Vou tentar de novo!

— Nada disso! Só hoje você já ressucitou o paciente umas cinco, seis vezes! Agora é minha vez!

— Eu já te deixei ser a médica!

— Do Jasão bundão? Esse já era, não dá pra salvar mais! Se fosse você eu deletava este jogo.

— Vai jogar então com aquela... como é mesmo? Aquela "JuliaVamp" anêmica?

— Vou começar um jogo novo...

— Ah não! Vai demorar!

Ela deu de ombros:

— É minha vez, jogo do jeito que quiser! Senão vou contar pra mamãe...

Pedro tinha aprontado muito na escola nos últimos dias, não queria encrenca com a mãe.

— Tá! Põe seu pendrive aí...

Ana conectou o pendrive e teclou ENTER. Começou a aparecer na tela:

**** CyberLife 2.5 — Simulador de Vida Humana ****

*** (Software recomendado pelo Prêmio Nobel de Medicina)

***

*** Atualizando database médico...

***

***

*** Digite o nome do(a) médico(a):

Ela começou a teclar: "ANA".

— Ei!! Eu queria ser o médico de novo!

— Você já foi médico quatro vezes hoje! É minha vez!

— Ah! — explodiu o menino. — Joga sozinha então!!!

*** Digite o nome do(a) enfermeiro(a):

"Eu me viro sozinha, seu bobão!" E digitou: "ANA".

!!! AVISO: enfermeiro e médico devem ser diferentes!

*** Digite o nome do(a) enfermeiro(a):

"Ah, máquina chata!!!". Mas ela não se rendeu: "Ana".

*** Bem-Vindos Dr(a) ANA e enfermeiro(a) Ana.

*** Deseja operar um paciente salvo ou criar um novo?

"NOVO", ela digitou.

*** Digite o nome do(a) paciente:

Digitou: "ANINHA". Aparentemente entretido num jogo de corrida chato com seu portátil, o irmão comentou:

— Que criativo!!! Deu o próprio nome pra paciente...

— Ah, fica jogando com seus carrinhos aí e me deixa em paz!

*** Sexo do paciente: (F para feminino, M para masculino)

"Que computador burro!!!!" Pensou em digitar "M DE MENINA" só pra ver o que acontecia, mas achou melhor não estragar o jogo. Digitou "F".

*** Iniciando simulador de vida humana...

O projetor holográfico apresentou um leito de hospital de branco impecável com uma figura feminina deitada sobre ele. Lia-se numa placa na cabeceira da cama, em letras "Arial 12": "ANINHA". Pedro se aproximou curioso, embora não disposto a participar da nova partida.

— Vou colocar dois cérebros nela, pra ver se acorda mais rápido.

— Não existe gente com dois cérebros! Sabia?? Só vai estragar o jogo, como sempre!

— Estragar? Quem foi que matou o paciente umas 6 vezes só hoje, hein? Que deu quase 2 gramas de adrenalina pra ele? Estragar... tá bom...

— E vai colocar o segundo cérebro onde, gênia? Vai criar uma segunda cabeça? Você sabe que o jogo não permite! Que isso só existe na versão 3.0!

— Coloco... — ela não queria desistir... — ah, coloco na barriga!

— Cérebro na barriga???? — Pedrinho não se continha de tanto rir. — AHAHAHAHAHA!! AI QUE DOR DE BARRIGA!!! HAHAHAHA!!! A paciente ANINHA vai comer o próprio cérebro!! HAHAHAHAHA!!

Ela insistiu, vendo que o irmão voltava ao seu jogo chato de corrida. Mas o aviso era claro:

*** Acão inválida! Tecido neural não é resistente a sucos gástricos!

*** Escolher outra cavidade corporal:

Tentou a cabeça, mas recebeu advertência dupla:

*** AVISO 1: pressão interna de dois cérebros incompatível com a vida

*** AVISO 2: cérebros distintos competirão pelo controle da medula espinhal

"Saco de simulador! Não posso fazer nada!" Mas ela estava convicta de que mais neurônios fariam a paciente despertar mais rápido, o que era enfim o objetivo do jogo. Acabou se decidindo. Clicou com o mouse 3d na cabeça da paciente, e deu o comando:

>>> AUMENTAR VOLUME CAIXA CRANIANA

>>> AUMENTAR VOLUME CEREBRAL

Demorou um pouco. Mesmo com a incrível capacidade dos atuais computadores, simular vida sempre seria um processamento custoso! Enfim, a máquina respondeu:

*** AVISO: pescoço atual não suporta peso da cabeça.

*** Deseja aumentar diâmetro da espinha e tônus de músculos do pescoço? (S/N):

Lógico que sim! "S".

*** Aguarde, calculando nova anatomia...

— Crianças? Tudo bem por aqui?

A mãe viu que jogavam CyberLife, febre do momento. Estranhou que Ana estavesse jogando sozinha.

— Pedro? Não está jogando com sua irmã?

— Hã... — engasgou. — Depois eu entro, mãe. Ela tá criando um paciente novo.

— Ah, entendi!

Ela olhou a imagem realista projetada no holograma. Não podia deixar de comentar.

— Mas que cabeção, filha!! Que ela tem?

Ana procurou rápido uma explicação.

— Megacefalia, mãe! Uma das simulações sugeridas... — ela nunca revelaria que a cabeça grande era para abrigar um cérebro grande, e não uma disfunção que enchia a cabeça de fluidos.

— Ah, ótimo filha! — ela estava orgulhosa! — Jogando com casos de doenças raras! Estou orgulhosa!

Se perguntou se tais jogos não seriam realistas demais. Foi quando lembrou dos jogos que existiam em sua própria época, com violência gratuita, tiros, sangue jorrando de todos os lados... Se lembrou que ela própria adorava estes jogos, e nem por isso se tornara uma psicopata incorrigível. O fato de atirar e matar personagens num jogo não desperta seu lado violento. A violência aumentou nos dias atuais? Dentro do previsto. E, mais que provado, isso nada tinha a ver com a violência realista dos jogos de décadas atrás. E os atuais? Completamente diferentes! Não estavam "brincando" de salvar vidas em tais jogos? Simulando cirurgias? Que mal haveria nisso?

— Aninha cabeçuda... — Pedro acabou deixando escapulir sem querer...

— Tá tudo bem aqui mesmo, meus bebês?

— Tudo certo, mãe! — garantiu Ana.

— Depois volto pra trazer um lanche. Ah!! E não esqueçam do dever de casa!!! Não pensem que sua professora não me copiou no email da turma, hein!!!

Antes de sair, ela ainda olhou na figura holográfica com megacefalia no centro da mesa do computador. Como parecia perfeita nos seus mínimos detalhes!!!