concerto em ré maior - parte 6
No escuro era tudo diferente, Gui estava acostumado com as luzes fortes, os faróis de carros que não paravam de passar. Era tudo tão intenso que quase nem dava para prestar muita atenção no excesso de lixo que estava por toda parte e em como era tudo tão grande, tão cheio de grades, tão distante.
Já haviam atravessado a avenida e agora ele estava realmente seguindo as cegas, pois não sabia o caminho. Silvia queria andar rápido, mas sua mãe era cautelosa e acabava segurando um pouco o passo. Eles passaram por uma grande placa com os grandes anunciantes da cidade, aquela que estava por vários cantos anunciando os melhores preços e o horário do almoço na cidade. agora era a única coisa que não estava apagada, mesmo que não anunciasse nada, parecia que vigiava seu território.
Quando Gui passou sob ela teve a sensação de ser um produto passando pelo medidor de preço no supermercado, teve a nítida impressão de que algo piscou com sua presença e achou que deveria estar delirando ao ver uma imagem se formar no monitor de luzes. Apenas seguiu com as moças.
Já haviam andado tanto que Gui tinha perdido a noção de tempo e espaço. Achou que avisava luz, mas pensou que poderia estar delirando. Tinha sede e sua água já havia acabado ha centenas de passos atrás. Estava exausta, esgotado e perdido, mas delirando não estava. Era real, forte e brilhante como ele nunca tinha visto até então. Era mais luz do que seus olhos podiam suportar. Maristela recomendou que colocassem óculos, mas ele não haviam trazido um par.
Então usando óculos escuros reserva de Maristela, que eram um tanto grandes e femininos para ele, seguiram por um caminho aonde a calcada não era de lixo e o sol brilhava sem barreiras. Ele reparava nas placas desconhecidas e nas pessoas que não caminhavam sérias e com andar super reto e focado como estava acostumado a observar todos os dias.
Ele ouvia musica, não era aquela atonal ou estridente dos sinais, toques e raras chamadas de sua cidade. esta musica era vibrante, com ritmo marcado e notas que desenhavam o som entre o pulsar destas batidas, eram notas alegres que pareciam cantar para eles que chegavam.
Foi neste instante que Gui percebeu que suas companheiras já estavam lhe chamando e ele havia se distraído com o som. Elas seguiram pelas ruas que lhe pareciam de outro mundo e o menino apenas acompanhou.
Um grupo de jovens adultos na faixa dos trinta anos e duas crianças um pouco mais novas do que Gui e Silvia se aproximaram, eram o contato de Maristela e estavam esperando a chegada delas. Todos seguiram até uma espécie de caixa de morar com janelas que davam para a rua e telhados de flores e frutas, que ele apenas reconheceu pelo desenho das latas de comida.
As redes de dormir eram super confortáveis e as poucas horas de sono foram super bem vindas, ele nem pensou, só adormeceu e nem precisou de despertador gritante, acordou com o cheiro do chá que estavam preparando ao lado na cozinha.
Ha meses que Gui só bebia gaseificados, os açúcares de frutas só eram comprados em festas e seus pais não tinham laguinho de água no trabalho, então eram só as gotas diárias no colégio. Agora bebidas quentes licitas e para estudantes não haviam. Chá era algo de povos antigos que não mais habitavam o local. Porem ali aonde estava era exatamente o que lhe serviam e com toda situação e curiosidade ele não hesitaria em experimentar.
Devia ter hesitado, a bebida é servida quente e mesmo com os avisos ele queimou a língua. queimou um pouco da boca também, pensou que talvez por isso não servissem mais em sua terra. Nesse momento pensou nas demonstrações de geografia e ficou confuso, aonde estava? Não havia ouvido falar em nenhum momento de terras diferentes, de locais com flores e janelas aonde as pessoas bebiam chá em suas caixas térreas, que recebiam visitas e eram maiores do que duas ou três das caixas empilhadas juntas. Era um local que tinha acesso direto a luz do sol como fonte de energia e não tinha calçadas de lixo.
Gui quis perguntar, mas não sabia se podia. Então preferiu acompanhar Silvia e sua mãe na matricula da escola local. Ele sabia que não teria mais condições de voltar para seu antigo colégio, mas realmente não tinha pensado em se mudar.
A escola aonde Silvia iria estudar era colorida e a matricula era um passeio pelo local e algumas fichas coloridas que ela escolheria para definir seus cursos, não haviam grades e muitas aulas eram feitas ao ar livre mesmo.
Mais uma vez ecoava o som daquelas melodia, ele gostava do som e reparou que alguns garotos e garotas tocavam instrumentos metálicos e amadeirados em uma sala com vidros largos. Eram uma banda e estavam criando uma musica para apresentar aos colegas e pais no final do semestre.
Perguntaram para Gui se ele também gostaria de escolher suas aulas e fazer um passeio pela escola para conhecer professores, colegas e ambientes. Ele queria, queria muito e já estava quase indo, mas olhou para sua bateria de GPS de bolso e viu que seus pais estavam procurando por ele. Não podia sair para sempre sem falar com eles. Não podia morar com Silvia, Maristela e os recém-conhecidos da caixa térrea.
A musica acompanhou a tensão de seus sentimentos e Gui sabia que precisava falar com sua família. Não podia deixar passar mais tempo, ali era tudo diferente e já nem tinha mais a mesma noção sem o seu despertador gritando a cada meia hora.
Não que ele quisesse voltar, mas não sabia como contatá-los de outra forma. Perguntou na caixa térrea em que estava ficando como eles falavam com as cidades sombreadas e a resposta não foi positiva. Não tinha jeito, só se alguém de lá tivesse acesso escondido, era proibido e poucos sabiam das cidades de sol e frutas para tentar.
Silvia e sua mãe estavam se alocando em um novo espaço, que era menor do que o que eles haviam conhecido, era só para as duas, mas tinha um grande espaço externo. Nas cidades de sombras todo espaço externo era propriedade do governo e só grandes empresas tinham dinheiro para comprar. As em geral não eram muito divertidos, nem bem cuidados.
As duas lhe ofereceram uma rede para passar a noite e tinham um contato que podia tentar comunicação com seus pais, ele passou algumas informações e foi se deitar preocupado, sabia que tinha fugido e isso não estava planejado.
Na manha seguinte Gui abriu os olhos e ouviu uma conversa a janela que parecia sobre seus parentes e como estavam preocupados e sendo questionados por sua fuga, sabia que falavam dele.
Pegou um transporte coletivo que era um misto de bicicletas de ginástica com uma placa de andar para multidões. Era um bicionibus e funcionava pelo movimento das pedaladas coletivas, quem não podia pedalas ia atrás em um banco fixo.
Chegando na fronteira ele desceu e seguiu a pé até a saída para a cidade de onde veio. Reconheceu trechos do caminho e seguiu sério e receoso para a entrada escondida de sua cidade natal.
Maristela e Silvia o acompanharam ate a entrada, ele hesitou um pouco e então resolveu passar, as duas sinalizaram que o estariam esperando se resolvesse voltar. Gui passou da fronteira e quando olhava a sua volta um trio de guardas armados começou a se aproximar dele.
Maristela e Silvia acompanhavam assustadas a fuga de Gui e tentaram se aproximar, mas uma grade se fechou sobre a fronteira e os guardas disseram para Gui que seu registro de fujão estava por todos os radares. Ele não sabia que haviam radares de pessoas, havia desligado seu chip pela manha antes de partir. Mas então se lembrou da placa que passaram por baixo aquela noite. Lembrou de Silvia e Maristela desviando para não passar sob a placa e falando alguma coisa que ele não conseguiu distinguir na hora.
Agora ele estava registrado e capturado, provavelmente passaria o resto dos dias em alguma grade ainda mais restrita e seria forçado a tomar o remédio, talvez até pior.