Concerto em ré maior - parte 4
Seguiu até se perder nas placas do limite da cidade, sabia que não era momento de visitar o entretenimento de férias, nem era isso que ele estava buscando. Não queria encontrar sua chave, queria ser dono de seus pensamentos.
Só que neste momento ele só consegui pensar na Sala de Ordenação, no poder do grito e em como tudo aquilo não fazia para ele sentido nenhum. Talvez fosse apenas por ser um menino jovem e logo tudo começaria a mudar e ele se tornaria um deles, cresceu acreditando nisso, seguiu esperando por isso e agora estava fugindo para evitar que realmente acontecesse., mesmo que não tivesse consciência ainda de que era isso o que estava fazendo.
Gui andou até cansar e parou sobre uma pista de pedrinhas, cheia de poeira e encostou as costas em uma pequena casa de tijolos naturais. Nem reparou aonde estava até que alguém abriu a porta e olhou feio para ele.
Sem tempo para se defender ou fugir, Gui foi puxado para dentro da casa por mãos maiores que as suas, apenas focava no chão escuro e um tanto sujo enquanto era conduzido para o local desconhecido por alguém usando calcas como as da aula de ginástica, mas alguém mais alto que ele e todos os seus colegas, um adulto.
Uma vez dentro da casa e largado no chão, Gui fitou finalmente o rosto de seu raptor e percebeu que era uma moça, devia ter trinta e tantos anos, mas é difícil saber a idade dos adultos quando se é uma criança de onze anos.
A moca olhava para ele de forma intimidante e ele não conseguiu dizer uma palavra até que uma menina passou rapidamente entre eles com fitas coloridas nos cabelos e uma bolsa repleta de objetos não identificados. Ela então olhou para ele como se notasse sua presença, se aproximou e olhou para a moça. Era Silvia, Gui lembrava dela da quarta série, haviam sido colegas, até que ela sumiu do colégio antes do final do semestre e ninguém mais falou nela. Ela estava diferente, mas não tanto que apenas um ano e meio depois de terem sido vizinhos de grade não pudessem se reconhecer.
Estava ai a sorte ou coincidência de Gui em sua fuga não planejada. A menina logo explicou para a moca que era sua mãe que se tratava de um antigo colega de sala, ele apenas respondeu ha algumas perguntas da moça, bem diferentes das do colégio e elas o deixaram sentar no sofá e ofereceram comida.
Ele nem tinha percebido que estava com fome até então. Estranhou as fracas condições do local em relação ao que estava acostumado a viver e não reconheceu os alimentos oferecidos, chamavam de verduras e cereais, para ele a comida em pó e lata era tudo o que existia e os alimentos vinham de suas fabricas sendo produzidos de acordo com o desenho, assim ele havia visto no livro de ciências e assim dizia a chamada na televisão.
Ele estava curiosos e bastante surpreso com o modo de vida de ambas, mas logo elas explicaram algo que o deixou ainda mais confuso. Aquele local era apenas temporário, não estavam estabelecidas ali, estavam se aprontando para deixar casa quando perceberam sua presença ao lado de fora e acharam suspeito. Ele compartilhou parte de sua historia de desvio, perda da chave e a conversa de gritos com os que colocam ordem na escola.
Gui não tinha para onde ir, agora que tinha fugido já haviam certamente notificado a falta no sistema escolar e seus pais queriam consertá-lo. As duas estavam de partida e sua mochila já estava nas costas, então parecia certo seguir.
Parecia não é a mesma coisa do que era. Ele não estava convidado a participar da jornada delas. Gui perguntou sobre o destino da viagem, mas não teve uma resposta. Ele não era exatamente suspeito, mas também não era exatamente parte da equipe. Gui pediu para seguir com elas ao menos até onde fosse mais seguro para ambos e o pedido foi concedido depois de uma revista a sua mochila.
Maristela Anzol, mãe de Silvia era de tipo desconfiado e quis certificar que o menino não tinha nada de suspeito, mesmo que ele não soubesse e tivessem colocado em suas coisas. Uma jaqueta, um pacote de fritos extra temperados, alguns outros objetos e um pote de remédio ainda lacrado, aquele da receia do dia anterior.
Elas ficaram curiosas com o remédio, que servia para auxilia as pessoas a agirem de acordo com o sistema. Todos na sala de controle eram notórios viciados e estavam tentando estimular mais pessoas a tomarem como balas cheias de açúcar. Era conhecido por poucos, bem poucos, o fato de que a água da região já vinha premiada com um pouco do que deveria ser identificado como medicamento e só vendido com prescrição medica. E foi exatamente devido a esta pequena caixinha cilíndrica e lacrada que mãe e filha se convenceram de que Gui poderia ser um bom acompanhante.
Deixaram o remédio de lado, não poderia haver muito de errado com alguém que estava questionando e não fazendo absoluta questão de abrir mão de si mesmo para fazer parte de um sistema que o enjaula.