Autópsia
Ele tivera muita sorte de nascer na época certa, e conseguir o emprego de seus sonhos: astrobiólogo! É para ele que vinham as criaturas mais estranhas de todos os cantos da via láctea. Alienígenas de todas as cores, tamanhos e cheiros (alguns deles bem desagradáveis, a propósito). Vegetais ambulantes que comiam carne, polvos com sistema esquelético interno e capazes de caminhar em terra firme, criaturas-balão, insetos gigantes com sistema digestivo fora de seus corpos... Já fizera autópsia de animais, vegetais e uma quantidade incontável de outros tipos de alienígenas que não se encaixavam em nenhuma destas duas classificações de vida às quais estamos acostumados desde sempre.
Porém havia uma quantidade surpreendente de humanóides, muito mais do que ele imaginava existir quando criança. Não necessáriamente inteligentes, mas anatomicamente bem parecidos. Hoje em dia já se sabia que tal fato nem era grande surpresa, que tudo ficava claro quando se entendia o conceito de evolução convergente. De fato simulações matemáticas precisas apontavam que, dentre todas as outras soluções possíveis, aquele formato específico de duas pernas dobráveis, abdômem, tronco, braços articulados de cada lado do tronco e uma cabeça apoiada acima dele era mesmo a solução geométrica mais eficiente para criaturas que caminhavam sobre superfície seca, assim como o formato de torpedo dos tubarões, baleias e golfinhos era a melhor solução hidrodinâmica para os seres aquáticos, e a forma de balão a solução ideal das criaturas flutuadoras das estratosferas. As leis da evolução se encarregavam, em todos os pontos da galáxia, de encontrar as raízes geométricas ótimas destes problemas de equações anatômicas...
O astrobiólogo caminhou radiante para a sala de autópsias. Era um alienígena novo, nunca observado antes. Ele seria o primeiro a separar os tecidos externos da criatura com seu bisturi, observar com a curiosidade de uma criança o funcionamento interno daquele espécime. Por que ele fazia autópsias com um bisturi antigo de metal e não com os precisos bisturis de plasma? Ele dizia gostar da sensação dos tecidos orgânicos sendo rasgados, sensação esta que não existia quando utilizava um bisturi de plasma. Um afiado bisturi metálico o colocava em contato mais direto com o alienígena deitado sobre a mesa de autópsias, criava uma espécie de comunicação muda entre o espécime deitado e o astrobiólogo. Bom, obviamente que o termo "deitado" usado aqui não se aplica precisamente a todos os espécimes, e sim àqueles 74% que apresentavam simetria bilateral.
Vestiu a máscara ansioso e entrou na sala, onde a equipe já o aguardava. Mesmo de máscara, sentiu um cheiro de ozônio ionizado no ár. Não exatamente desagradável, mas o "cheiro de eletricidade" incomodava um pouco. Olhou para a criatura sobre a mesa de autópsias: humanóide! Braços finos e bem alongados como o tronco, desproporcionais em relação à perna incrivelmente curta e pés enormes. Era essencialmente branco, pele pálida, mas apresentava listras longitudinais ao longo do corpo que pareciam ser levemente prateadas. As listras pareciam convergir para o centro do tórax da criatura, de onde se irradiavam sobre a pele para o resto do corpo. Fez a pergunta que sempre lhe vinha na cabeça quando se deparava com um ser humanóide para ser autopsiado:
- Ele era racional? Inteligente?
- Acreditamos que sim, doutor. Talvez até tenham desenvolvido uma civilização rudimentar, apesar de certamente apresentarem uma tecnologia bem primitiva se comparada com a nossa.
- De onde vêm? Os da espécie dele vivem em cidades?
- Não sabemos...
- Não sabem? Como assim?
- É daquele planeta novo, o que está sempre coberto de nuvens. A luz solar mal atinge sua superfície, e as tempestades são permanentes. Até termos enfim chegado nele recentemente, não havia como observar o que se passava na superfície dele, debaixo de todas aquelas camadas de nuvens de tempestade...
- Quem diria! Sempre achamos que as condições daquele planeta eram incompatíveis com a vida. E olha ele aí na nossa frente: vida! Morto agora, mas já foi vida! E vida humanóide! E vida humanóide inteligente! - se algum dos assistentes prestasse mais atenção, veria um princípio de lágrima se formando nos olhos do astrobiólogo, acima da máscara.
Ele sempre adotava um tom mais respeitoso quando sabia estar autopsiando um ser inteligente. Por mais estranho que fossem os alienígenas, por mais diferente, assimétrico, asqueroso, disforme ou mal-cheiroso, o fato de serem também inteligentes e racionais fazia o doutor sentir de certa forma que ele e o espécime eram seres de uma mesma família. Se o ser inteligente ainda era anatomicamente humanóide, o doutor sentia praticamente como se fosse um irmão do mesmo. De bisturi na mão, se encaminhou logo para a cabeça do alienígena, no extremo oposto da mesa:
- Então, companheiro! Mostra pra gente aqui essa sua massa cinzenta!
Mas ele mal chegou a encostar o bisturi no crânio do alienígena. Recuou confuso, observando sua face. Olhos enormes sempre abertos, nenhuma pálpebra... Característica bem comum em humanóides, não foi isso que ele estranhou. Aliás deveria ser bem escuro na superfície do planeta, escuridão esta vez ou outra cortada por um raio das tempestades perenes que deviam existir lá embaixo. Era de se esperar os olhos enormes, para captar com eficiência a pouca luz que deveria existir no ambiente. O nariz se resumia numa pequena fenda no centro da face, nada surpreendente também ao se lembrar que não haveria muita dificuldade em se respirar a atmosfera densa do planeta por aquele pequeno orifício no centro do rosto. Foi outra coisa surpreendeu o astrobiólogo.
- Ele não tem boca???
- Não tem, doutor! Tomamos a liberdade de fazer uma inspeção geral na criatura antes da sua chegada, e constatamos que também não tem ânus...
- Eles não comem então? Não defecam? Não têm sistema digestivo? Como se alimentam?
- Estamos tão ansiosos para descobrir isto quanto o senhor!
- Então vamos deixar o cérebro para depois! O que me interessa agora é esta... placa prateada no peito dele.
Conseguiu separar o tecido, mas com alguma dificuldade. Era duro, e acabou cegando totalmente seu bisturi de estimação.
- Nunca cortei uma estrutura óssea tão dura!
- Acho que não é óssea, doutor. Me permite analizar um pedaço no espectrômetro?
- À vontade.
Felizmente haviam outros bisturis. Entre eles um de nanometal confeccionado por um nanoartesão de renome, capaz de cortar até diamante como se fosse manteiga. Não seria hoje que se renderia aos impessoais bisturis de plasma... Separou as secções do tórax, revelando um interior preenchido de substãncia quase transparente, levemente amarelada. O PH alto acusado pelo sensor mostrava ser um fluido alcalino. Felizmente a luva protegeu as mãos precisas do astrobiólogo, que também era um exelente cirurgião apesar de não exercer a atividade a tempos. Porém ele sempre tentava autopsiar os espécimes com leveza e precisão, como se elas ainda estivessem vivas.
- O espectrômetro acusa uma liga de metal orgânico, doutor.
- Vocês me trouxeram um robô para ser examinado? - brincou, sempre de bom humor.
- São raros, mas já vimos casos parecidos antes. Da mesma forma que agrupamos cálcio em ossos e dentes, algumas criaturas da galáxia são capazes de fazer isto com metais, principalmente se eles são abundantes no planeta de origem. Mas o fato de observarmos isto num de anatomia humanóide é algo inédito.
- Será que os ossos dele - e se referia a "ele" já como um velho amigo - também contém traços de metais?
Se dirigiu à mão da criatura, na extremidade do longo braço. Seis dedos quase que exatamente distribuídos numa formação hexagonal. Apenas um deles, o próximo ao antebraço, se projetava para frente, capaz de tocar a "palma" daquela mão circular numa versão bem alienígena de um "polegar opositor". Ainda era uma teoria em estágio embrionário, mas muitos astrobiólogos estavam convencidos de que a simples observação do formato geométrico das mãos de espécies humanóides (quantidade de dedos, distribuição, nível de articulação) poderiam revelar muito de seu processo evolutivo! Inclusive mãos e pés eram as características que mais distinguiam tais espécies, a característica que deixava claro que, apesar do formato geral dos corpos terem se desenvolvidos bem parecidos pelos príncípios de evolução convergente, cada qual tinha sua própria história evolutiva. Formato de mãos e pés eram, por assim dizer, uma "impressão digital" dos humanóides, um registro das mutações que precisaram sofrer para se adaptarem a cada ambiente em particular.
- Olha a placa metálica aqui de novo, na palma das mãos!
Com delicadeza, quase como se estivesse poupando a criatura inerte na mesa de um sofrimento desnecesário, ele abriu a palma direita do autopsiado em direção ao antebraço. Em menor escala, a mesma bolsa observada no tórax, o mesmo líquido interior. Separou bem as metades, e viu uma superfície organo-metálica idêntica na extremidade oposta, do lado de dentro. Voltou ao tórax, e viu que a estrutura se repetia, ampliada. Mas o dorso da mão era de pele branca percorrida por listras prateadas, bem como as costas da criatura.
- Não deveria existir coração e pulmões aqui? - pergunta apontando o tórax aberto, já livre do líquido alcalino e separado por expansores metálicos. - Se ele tem nariz, ou algo parecido com isto, então ele deve respirar, não é?
- Já autopsiamos humanóides com pulmões no abdômen, doutor...
Ele apalpou o pescoço do alienígena, sentindo um tubo rígido no interior.
- Parece uma traquéia. Alguém tem dúvida de que está conectado à fenda nasal dele?
- Nenhuma! E podemos verificar isto rápido numa tomografia, não precisamos ainda danificar muito sua caixa craniana para comprovar.
- Ótimo! Vamos ver então pra onde vai esta traquéia...
Abriu o pescoço do alienígina de cima para baixo. Quanta surpresa mais o espécime novo revelaria? A traquéia de dividia em dois troncos, direito e esquerdo. Se afunilavam rápido, ficavam menores... e acabavam em nada! Um Y invertido que não era conectado a nada que de longe pudesse lembrar um pulmão...
- Raios!!! Pra que serve esta coisa??
Mais atento, percebeu sairem várias vias aéreas finas ao redor deste Y central. Mais ainda: existia outro Y invertivo parecido atrás dele. Bem alto no pescoço (como ele não percebêra no início?) o tal Y traseiro se conectava ao principal, ambos eram conectados à uma via aérea comum que levava à fenda nasal. Pediu uma lupa, queria observar com mais cuidado as vias aéreas finas conectadas aos dois Ypsilons...
- Parecem válvulas! Todas para dentro no Y traqueal frontal, e todas para fora no Y traqueal traseiro... - ele já sabia a resposta, mas desafiou os ajudantes: - Alguma explicação?
Uma mocinha simpática, tímida, arriscou:
- O Y traqueal dianteiro é para entrada de ár! O Y traqueal traseiro concentra as vias que expelem o ár consumido. O Y dianteiro é usado para a inspiração, e o traseiro para expiração.
- Essa é minha pequena! - exclamou orgulhoso o astrobiólogo.
Começou a cortar as microvias periféricas, todas elas envolvidas por um tecido muscular longitudinal.
- Movimento peristáltico de sentido bem definido: para dentro no Y frontal, e para fora no Y traseiro. Numa atmosfera tão densa, era de se esperar que eles não precisariam respirar, e sim "deglutir" o ár de sua atmosfera, quase como se a estivesse bebendo! Confesso nunca ter visto nada parecido!
Continuou em vão procurando algum sistema circulatório. Abriu o braço totalmente, em toda a extensão, procurando os vasos sanguíneos inexistentes. Se convenceu de que tal sistema circulatório não existia! Ou melhor, existia sim, só que ao invés de fazer circular um sangue cheio de moléculas de hemoglobina, cada qual transportando poucos átomos de oxigênio, seu sistema circulatório fazia circular o próprio ár, incrivelmente denso naquele planeta de gravidade altíssima. Eles tinham um sistema vascular-respiratório integrados numa estrutura única!
Começou a separar os músculos pardos, procurando pelo sistema nervoso, nervos circundado por camadas de bainhas de mielina. Inexistentes! A consistência daquele tecido interno pardo dentro do braço, sua elasticidade... tudo apontava que era tecido muscular! Comandados pelo quê? Foi quando ele notou aqueles nódulos existentes mais ou menos no centro de cada músculo. Para onde se dirigiam?
- Parecem glóbulos com um pequeno feixe se dirigindo para baixo, doutor. Para... dentro do osso?
- Tudo é possível, meus caros! Abram suas mentes!
Ele acompanhou o feixe do glúbulo central do bíceps. Ou do equivalente ao bíceps: era prática comum dos astrobiólogos tentar nomear estruturas novas com nomes já consolidados na medicina, sempre que possível, e sempre que a funcionalidade dos órgãos novos parecessem compatíveis com aquelas já conhecidas. Sim, o feixe realmente entrava no osso! Ele partiu parte do osso, fácil agora com a lâmina do nanometal, e deu a amostra a um ajudante:
- Analise também isto no espectrômetro, por favor!
- Eu diria, pela cor e densidade, que é de cálcio como nossos ossos. Mas vamos comprovar para ter certeza...
Ele não precisou danificar mais o espécime para concluir que seu sistema nervoso corria totalmente dentro dos ossos. Não apenas na medula espinhal, como em sua espécie, mas em todos os ossos do corpo! Quando necessário, os feixes nervosos emergiam de dentro dos ossos, se agrupando em glóbulos centrais capazes de estimular os músculos. Qual a razão desta solução evolutiva?
- Nenhum sinal de sistema digestivo até agora, pessoal. Vou deixar vocês decidirem: abro a caixa craniana para vermos sua massa cinzenta, ou continuo procurando um sistema digestivo abrindo seu abdômen??
A resposta foi unânime: ABDÔMEN!!! Todos estavam interessados em descobrir o que aquela singular criatura sem boca nem ânus comia!
- Um bisturi normal, por favor...
Era um momento especial! Ele queria SENTIR o corte, e mesmo o bisturi de nanometal estragava um pouco tal contato! Empunhou com firmeza um belo bisturi de platina! Rasgou a pele branca da barriga desprovida de umbigo, apenas para de deparar com um tecido escuro bastante denso. Parecia borracha, tanto pela aparência quanto pela baixíssima condutividade elétrica! A pele externa, embebida na substância alcalina, era ao contrário bem condutiva! A criatura seria capaz de conduzir milhares de ampéres de corrente elétrica pela pele externa sem sofrer danos nos órgãos interiores. Bastava se lembrar que eles viviam num planeta sujeito a tempestades eternas para concluir que tal resistência a descargas elétricas deveria ser mesmo uma vantagem evolutiva incomensurável! As listras prateadas que adornavam a pele, agora sabidamente organo-metálicas, deveriam ajudar ainda mais no escoamento das cargas elétricas, com tecido isolante interno protegendo os órgãos vitais.
- Abrindo agora camada escura interna isolante. - registrou o doutor no gravador particular, para seus próprios registros.
Resistente, mas o tecido cedeu à lâmina de platina. Revelou uma estrutura interna estratificada em várias camadas, protegida por uma pleura transparente. Até o momento, nenhum sinal de intestinos, nem de pulmões abdominais (mas isto ele já esperava). "Abrindo pleura para estudar o órgão estratificado interno", ainda gravou, antes de ser lançado para trás num movimento convulsivo violento, assim que o bisturi metálico atravessou a pleura de proteção...
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- Doutor??? Ei doutor!??? - a mocinha bonita estava aflita!
- Hein??? Hã??? Que aconteceu? - a nuca latejava.
- O senhor tomou um choque! Violento! Apagou por uns minutos...
- Choque? Como?? De onde???
- Do espécime...
As lembranças voltavam aos poucos.
- Eu estava seccionando a pleura abdominal, para estudar aquele órgão interno...
- Pilhas, doutor!
- Pilhas???
- Acumuladores elétricos. Teve sorte, elas já estavam bem descarregadas! Senão o senhor não estaria mais aqui... Nem conseguimos imaginar a carga total que aquele órgão pode acumular...
Seres elétricos, quem diria!!! Robôs? Era mesmo uma brincadeira de mal gosto?
- Doutor, nunca permitiria que fizessem esta brincadeira de mal gosto com o senhor... - o olhar da moça brilhava. - A estrutura do acumulador é orgânica, bem parecida com a de algumas enguias que conhecemos do planeta Terra.
- Mas neles é diferente, não é? Nas enguias, descarregar eletricidade é uma defesa. Elas não vivem disso! Na verdade, gastam energia de seus alimentos para produzirem esta carga, não é? Mas estes seres são diferentes...
Semi-recuperado, sua mente viajava.
- Eles VIVEM disso, não é? Eles não têm sistema digestivo porque não retiram energia dos alimentos. Eles acumulam... por assim dizer, eles, "comem" eletricidade. Estou sendo coerente até agora?
- Totalmente, doutor! - completou a moça bonita. Seu interesse pelo astrobiólogo já era evidente, e realmente ninguém se importava com isso.
O doutor olhou atento os braços longos, com aquela mão hexagonal na extremidade. Baixou então os olhos para os enormes pés, na extremidade da curta perna biarticulada. Sim, por mais estranho que pudesse parecer, aquelas pernas curtíssima em relação ao tronco apresentava dois joelhos cada uma! "Que desperdício!", ele pensava às vezes. "Pra que dois pontos dobráveis num membro tão curto?". Mas como dizia um ditado antigo, "Darwin explica..."
Se aproximou cambaleante.
- Ele está descarregado?
- Sim, doutor! Fizemos isto logo que presenciamos seu acidente...
- Ótimo. Podem erguer os dois braços do espécime?
Assim os ajudantes obedeceram.
- Que lhes parece? Imaginem a criatura em pé!
Enfim reparou nos pés com cuidado. Os dedos não se concentravam à frente. O pé era um disco igualmente distribuído na extremidade das pernas, com seis dedos idênticos igualmente distribuídos ao longo de sua circunferência. Nenhum dedo maior diferenciado, tão comum nas mãos que acabara ganhando a nomenclatura de "polegar" para qualquer que fosse a anatomia da criatura. Sempre existia um dedo especial em todos os tipos de mãos! Mas nos pés isto variava, e eles tinham à frente um bom exemplo desta excessão à regra.
- Olhem os pés, pessoal! Enormes, espaçosos, com um bom contato com o solo!
Todos imaginaram a criatura, pernas curtas, pés enormes bem apoiados ao solo. Dois joelhos permitindo que o abdômen encostasse no chão sem que perdessem o equilíbrio, um tronco alongado, e braços compridos levantados, com os seis dedos esticados. A mocinha corajosa, certamente tentando chamar mais a atenção do doutor (e isto ele já havia percebido!), afirmou com entusiasmo:
- Pára-raios!!!
- Isso aí, menininha! Eles são pára-raios orgânicos!!!
Num planeta coberto de nuvens e sujeito a tempestades eternas, com nuvens sempre bloqueando a luz solar, que melhor fonte de energia existiria do que os próprios raios das tempestades?
- Tudo agora faz sentido! Quando sentem "fome", eles procuram um descampado plano, encostam bem o abdômen no solo, abrindo o máximo que podem os dedos dos pés, levantam o braço e ficam esperando pelos raios. É sua "comida"! Muita energia? Por isto mesmo eles são bem condutivos! Órgãos importantes, como o próprio sistema nervoso, ficam bem protegidos! Dentro dos ossos calcários isolantes. A propósito, a análise confirma isso?
- Sim, doutor. Na verdade, cálcio agregado a substâncias isolantes. Nem sinal de metal orgânico neles...
- Era o que esperava! Sem sistema circulatório nem sangue, não há necessidade alguma de medula óssea muito volumosa. O interior dos ossos ficam então disponíveis para assumir outra função: proteger o sistema nervoso!
Todos ouviam admirados, espantados com a velocidade de raciocínio do respeitadíssimo mestre.
- O plexo toráxico é um capacitor. Placas metálicas paralelas separadas por um dielétrico. Ele acumula grande carga por pouco tempo. O excesso é escoado para a terra, pelos pés enormes. O capacitor no plexo toráxico acumula a enorme carga por alguns minutos, o suficiente para carregar a estrutura acumuladora do abdômen. A estrutura não aguentariam a carga instantânea de um raio, mas podem armazenar cargas incríveis se elas forem acumuladas aos poucos.
- Desculpe a interrupção, doutor! Este vídeo chegou a pouco tempo. É do planeta dele, registrado por uma sonda nossa!
Criaturas humanóides circulavam de mãos dadas uma grande caixa cúbica. Pareciam dançar. Do alto da caixa cúbica, saíam várias hastes apontando para cima. Claramente eram pára-raios! Construção, planejamento tecnológico de criaturas inteligentes!
- Que eles fazem, doutor?
- Provavelmente.. diria que estão "comendo".
- E a posição de "pára-raios" que o senhor mencionou? Estão formando uma roda apenas, de mãos dadas...
- Olha com mais cuidado este aqui. - disse apontando a tela.
De fato, parte da roda se quebrava. Uma criatura de cada lado encostava a palma da mão no cubo escuro. A roda de criaturas com as mãos dadas fechava um circuito elétrico.
- Acredito que eles em alguma época tenham precisado deste recurso para viver, erguer as mãos para o céu em posição de pára-raios. Numa época em que ainda precisavam "caçar" para comer, aguardar pacientes pelos raios nos descampados planos. Nós mesmos já passamos por isso! Acho que eles devem ter evoluído...
- Evoluído? - insistiu a mocinha bonita.
- Sim, minha cara! Como acontece com várias outras espécies da via-láctea, eles aprenderam que não precisavam mais "caçar" para comer.
Todos olhavam atentos. Já haviam entendido tudo, mas ainda assim esperavam a confirmação final.
- Esses paralelepípedos enormes com pára-raios em volta são acululadores de raios! Hoje em dia não precisam mais "caçar" seus raios para se recarregarem. Eles aprenderam a armazenar sua "comida", e ao se darem as mãos fechando um circuito elétrico orgânico, eles fazem um banquete de confraternização!
Todos estavam em êxtase! Era uma das autópsias de alienígenas mais surpreendente que presenciavam a vários anos! O doutor precisou quebrar o gelo.
- Podemos analizar o crânio depois, gente! Até digerirmos os fatos novos. Mas... isto tudo me deu fome! Vou sair para um lanchinho! Alguém me acompanha?
A moça bonita respondeu rápido:
- Vou com você, doutor!
Ambos saíram da sala de autópsia, se dirigindo para a parte de fora do instituto.
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A gigante vermelha estava alta no céu negro, quando o doutor e a menina bonita chegaram na parte de fora. Várias toalhas brancas espalhadas pelo chão indicavam que aquele local era especialmente preparado para tal prática! O doutor se desfez de seu avental branco: abriu os botões frontais e deixou que o tecido caísse pelas suas costas. Ele estava nu. Como também estava nua a garota simpática, como ficou claro assim que ela também se desfez de seu próprio avental branco. Surpresa? Nenhuma! Eles normalmente viviam nus! O avental não passava de formalidade, uma mínima proteção ao se entrar em contato com tecidos alienígenas. Mas no dia a dia eles não tinham vergonha de exibir seus corpos. Se orgulhavam deles!
Existiam algumas poucas espécies humanóides na galáxia que adquiriram a prática de cobrir com tecidos artificiais suas anatomias. Uma verdadeira incógnita evolutiva! O que os fazia se envergonhar tanto de seus corpos a ponto de precisarem cobrí-los com tecidos sintéticos, que não eram suas próprias peles? O doutor nunca entenderia isto.
O doutor e a menina se deitaram de bruços sobre duas toalhas estendidas no chão. Se desejavam? Sim, existia uma atração forte, apesar de incompleta. Copulariam? Óbvio que não! Estavam lá porque sentiam fome, precisavam comer! E, de qualquer forma, que poderiam fazer sozinhos um macho e uma fêmea? Absolutamente NADA aconteceria se não estivesse presente também um integrante do terceiro sexo, capaz de completar a tríade cromossômica da espécie e abrigar em seu ventre o óvulo da fêmea fecundado pelo espermatozóide no macho, completar a morfogênese da espécie com uma terceira hélice cromossômica...
Com ambos nus e deitados de bruços, ficou clara a existência daquela curiosa estrutura em suas costas. Asas? Finas e bem recolhidas, a princípio parecia que sim. Mas quando elas se abriram, ficou claro que não eram exatamente asas... Na verdade, naquela atmosfera rarefeita (algo que o céu diurno escuro deixava bem evidente) nenhuma asa, por maior que fosse, seria capaz de fazer qualquer criatura levantar vôo. Impossível! Aquele planeta era desprovido de aves ou insetos voadores... Que inveja sentiam da Terra neste ponto!! As "asas" do doutor e da menina se abriram. Eram brilhantes, quase prateadas! Se organizaram numa borda circular. Agrupadas, claramente desenvolviam uma geometria parabolóide nas costas das criaturas!
Um membro se estendia da nuca de ambos. Antes oculto pelas asas, agora se separavam, desprendidos das costas. Bem fino, a extremidade em forma de disco subia vagarosa. Parecia procurar algo... Óbvio: o ponto focal do parabolóide prateado formado pelas "asas". Ambos tentavam se posicionar o melhor que podiam na direção do sol vermelho. O doutor, primeiro a conseguir posicionar a extremidade do membro no foco do parabolóide, comentou satisfeito:
- Hum, que delícia!!! O espectro solar está particularmente saboroso hoje, não acha, minha pequena?
Apaixonada pelo doutor, ela estava atualmente preocupadíssima em conquistar um belo exemplar do terceiro sexo disposto a desenvolver um óvulo seu fecundado pelo belo doutor. Pensou na grande sorte que tinham os seres bissexuados da galáxia, em como deveria ser bem mais fácil para eles encontrarem suas metades complementares do que para os indivíduos de sua espécie tentando achar uma dupla capaz de completar suas terças partes individuais. Mas precisou concordar com o doutor: o sol estava mesmo bem delicioso hoje!
- Sim, este infravermelho próximo dá um sabor bastante intenso à radiação, reforçado pelo amarelo-verde! - com visão tetracromática, esta era uma das quatro cores primárias do espectro que as retinas da espécie conseguiam captar. - Mas... tem também um fundinho picante de ultravioleta. O senhor consegue sentir?
Ele sentia. Deitado, se deliciando com a radiação de sua estrela, ele pegou na mão da companheira de refeição mesmo sabendo que nada aconteceria naquele momento sem o intermédio do terceiro sexo. Apesar de não concordar com tal expressão de "machismo", era o esperado por todos desde as épocas mais remotas que a fêmea da espécie era quem deveria ser a encarregada de procurar e conquistar um organismo do terceiro sexo, gestador do embrião. A sociedade nunca via com bons olhos um macho tratando de gestação com o sexo neutro. Isto era algo para as fêmeas resolverem, afinal os óvulos fecundados eram delas, nada mais justo que elas escolhessem quem os gestaria...
Mas todos sabiam que às vezes acontecia, que algumas fêmeas tinham maior dificuldade em procurar e conquistar os gestadores. Que algum desequilíbrio hormonal fazia algumas fêmeas ficarem mais atraídas pelos machos e desprezarem os gestadores, ao invés de repartir igualmente o interesse entre os dois sexos. Os machos às vezes precisavam intervir na escolha, e ajudar as fêmeas numa decisão vital, mas que elas não conseguiam resolver sozinhas. Mas, por preconceito irracional, todos os que precisavam tomar tal iniciativa tentavam escondê-la. A espécie acabaria extinta se este preconceito besta não fosse superado...
"Seres que se alimentam de eletricidade!". A surpreendente descoberta não saía da cabeça do doutor! "Que se carregam com descargas elétricas de seus raios de tempestade! Quem diria..."
Ficou um tempo apreciando os raios luminosos predominantemente vermelhos de seu sol, contemplando a semi-parceira feminina. A tez morena ficava particularmente bonita naquele ambiente avermelhado! Quando ela lhe apresentaria o gestor neutro escolhido para desenvolver o filho de ambos? Era um mistério. Continuaram se deliciando com a luz de seu sol. Como todos os outros integrantes de sua espécie, eles se alimentavam de luz...
*** FIM ***