Concerto em ré maior - parte 3
Ele podia brincar, desenhar e deixar de comer ou dormir, mas isso só prolongaria seu tempo com a grade escolar e o que todo aluno gostaria era de sair mais cedo sempre que possível. Como em todo colégio que Gui já havia lido ou ouvido falar por primos distantes, sempre havia um ou poucos alunos que não se importavam com o tempo a ser cumprido, que pareciam estáticos em suas grades e não precisavam de muito movimento para cumprirem tudo e estavam prontos para a próxima rodada. Gui não queria saber o segredo porque haviam poucas coisas que ele gostaria menos do que ser um deles.
Mas não era momento para dispersões, logo seria testado na mala de tarefas e a Senhora A. Não parecia nada compreensiva. O momento da ser aluno era para receber informações dentro da grade, questionar pouco e cumprir as obrigações. Na verdade um dos dizeres era questionar pouco, mas Gui sabia que na realidade se Dave melhor quem não questionava nada. Parecer interessado poderia ser positivo, contanto que dentro dos conformes da grade.
Assim como na maioria dos locais que Gui conhecia era tudo uma questão de competição, então terminar primeiro, acertar mais exercícios, não chegar atrasado, tudo contava para ficar na frente dos colegas e ter melhores chances. As pessoas faziam o que precisavam fazer, desde os seis anos o grupo de colegas aprendera a escrever mais rápido, copiar sem ser notado e adivinhar respostas o mais próximo da do guia de acertos. Muitos cambiavam respostas corretas para não perderem o status positivo no ranking dos alunos.
Só tinha um problema. Gui odiava competição, nem ele sabia explicar ainda, mas o relóginho batendo os segundos, todo mundo se agilizando para chegar aonde ninguém sabia porque e um esforço tamanho para algo que para ele pouco importava era só uma grande idiotice. Mas competindo por sua sobrevivência, ele sabia que demonstrar isso era um movimento não arriscado, mas extremamente comprometedor de sua parte. Ele jamais poderia deixar alguém perceber que não estava interessado no sistema e que quando os outros corriam atrás de algo ou se divertiam com as brincadeiras de excesso de energia, na verdade ele só queria acabar logo e ter o menor contato possível com aquilo.
Ele disfarçava muito bem, era muito difícil que alguém tivesse chegado perto de perceber, as vezes em casa alguém notava algo estranho e quando era bem mais novo já teve momentos de distanciamento com um ou outro colega. Mas o desafio era que ele consegui disfarçar que não gostava, só que não conseguia agir como o resto dos garotos de sua idade.
Gui nem tinha pensado que só tendo um jeito certo de ser, que por acaso não era o que seria natural para ele, ele seria punido por isso. Sabia que tinha um jeito certo de se comportar, mas não de ser. Descobriu tarde, quando já estava de cara com os Donos da Palavra na sala de ordenadores. Ele não conseguia entender muita coisa, porque como todos os adultos de sucesso que ele conhecia, lá dentro eles só sabiam gritar, afinal ele já tinha ouvido falar do O Poder do Grito, o maior livro para o profissional bem sucedido na sociedade.
Tudo o que foi possível captar daquela sala era que deveria tomar um comprimido que eles geralmente receitavam para as crianças bem agitadas, para os poucos questionadores e para os que como ele chamavam de apáticos. Não era como se tivesse nada para que ele fosse simpático com e empático também não era fácil já ninguém era ninguém ali dentro, só uniformes e números. Mas eles tinham poder de gritar ele para fora da sala e ele jamais os deixaria, preferiu sair sozinho, antes mesmo de pedir licença.
Pela primeira vez em anos naquela escola, caminhando fora da grade, Gui teve uma troca de olhares com um colega e ai enxergou um certo pedido de ajuda, comunicação que não tinha por ali a muito tempo. Não que ele soubesse nada sobre ajuda, estavam encaminhando ele para um comprimido que deveria concertá-lo.
Enquanto caminhava de volta para sua grade na sala da Sr. A, Gui refletiu sobre sua situação sem saída. Não queria tomar remédio, Gui sabia até pouco antes que mesmo que quisessem que ele fosse alguma coisa que ele não era não teriam este controle, por isso fingia, fingia que não era contra, fingia que não estava detestando com todas as suas forcas, fingia que seu estomago não se reviraria em mais uma palavra estúpida de qualquer um ali. Mas não havia sido forte o suficiente, seu ímpeto não o traiu em coerência e integridade, mas o traiu em deixá-lo exposto ao meio. Talvez não fosse possível fingir tanto assim, mas agora estava perdido, o único controle que ele tinha podia ser perdido, porque mesmo que não fosse de verdade, mesmo que o sentimento contasse outra historia, agora ele estaria condicionado e seu físico responderia da forma desejada pelos outros.
O garoto até voltou para sua caixa de tarefas, mas mais desconcentrado do que nunca, só conseguia pensar em não ser mais parte de tudo aquilo. Ele sabia que desejar não bastaria para solta-lo, concluiu as tarefas o mais rápido que conseguiu e fez o caminho de volta para casa.
Enquanto caminhava só conseguia pensar no seu colega no corredor. Será que estava bem? Que tipo de ajuda precisaria ele? Poderia tê-lo ajudado?
Neste momento, Gui que não reparava mais no movimento da rua, tropeçou em um desnível da calcada de lixo e derrubou sua chave em um vão. Ela caiu tão fundo que era mais possível ser vista. Ele parou no chão, imóvel, teve um momento de desespero e se levantou.
No dia seguinte Gui se arrumou como de costume, se despediu dos pais e saiu. A mãe o lembrou do remédio e entregou-lhe o pacote com os comprimidos, que ele colocou na mochila.
Pela calcada, o menino andava sem pressa e passando a primeira quadra, desviou do caminho habitual, tirou óculos escuros e um boné da mochila e partiu rumo ao outro lado da cidade.
Ele se lembrou das aulas de geografia explicando a disposição social do sistema e seguiu, desviando de todas as grandes empresas e estabelecimentos educacionais.