"Um Passo No Tempo" 3- O Alvo Principal
Outra vez o mesmo sonho. Novamente, durante o sono, a mente de Lucien revivia o passado. Voltava à altura em que, após ter acabado o curso de Química, estava a fazer uma bolsa de especialização em pesquisa, num laboratório financiado pela Comunidade Europeia, na Polónia. Na pensão onde estava hospedado conhecera a filha dos hospedeiros, a doce Enya. Ela era mais uma jovem trabalhadora fabril no complexo em que o laboratório em que ele investigava estava inserido, mas em pouco tempo tornara-se muito especial para ele. A paixão entre os dois surgira inevitavelmente e o seu trabalho de pesquisa alternava com os seus longos passeios com ela, durante o ano mais feliz da vida do jovem alemão. E como sempre, a certo ponto, o sonho torna-se sombrio e as imagens surgiam como que numa louca e vertiginosa dança. E nessa vertigem de memórias, ele ouve outra vez Enya a queixar-se da morte de uma colega. Revive como começara a desconfiar que a causa desta morte e de outras pessoas daquela comunidade teriam relação directa com as descargas de poluentes da fábrica que dava emprego a metade das pessoas da região. Despende parte do seu tempo no laboratório com algumas amostras de sangue que conseguira da comunidade, através de um médico conhecido dos pais de Enya. A relação entre a contaminação do abastecimento de água local e a unidade fabril era por demais evidente. Mas a relação entre esta contaminação e o elevado índice de cancro no sangue daquela comunidade era mais difícil de provar. Mas por uma minuciosa eliminação partes, o jovem cientista alemão começara a juntar pontas soltas em que essa conclusão era uma questão tempo. O sonho passava agora pelo doloroso momento em que testemunhara e partilhara a angústia do casal da pensão ao saber-se que também Enya estava doente, com leucemia avançada. Também o sangue dela fora contaminado. Dois amigos de Enya, conjuntamente com o seu médico, decidem denunciar o caso. Em uma semana toda a comunidade local está revoltada e sob uma ameaça de greve, o próprio governo envia uma comissão de analistas. As imagens continuam a passar a uma velocidade vertiginosa. A morte do pai de Lucien que o obriga a voltar à Alemanha. E o dramático retorno à Polónia, semanas depois, para descobrir apenas a sua amada no leito da morte. E no flash seguinte, Lucien via-se de novo, sem conseguir conter as lágrimas que lhe escorriam pela face, ajoelhado em frente da campa da jovem a quem tinha dado o coração. E, impotente, via o túmulo debaixo de si a transformar-se em líquido, no qual ele subitamente se afunda. Estava agora a afogar-se, abaixo do nível de água. Mas não era água, ou pelo menos, já não o era, não passando agora de uma mistura de lama e óleo. A ténue luz que ainda descortinava acima dele ia-se desvanecendo, enquanto se afundava cada vez mais. Nos seus últimos momentos de lucidez daquele pesadelo, apareciam sempre a flutuarem, à sua volta, vários cadáveres semi-decompostos. Via-os ao seu redor, suspensos no líquido, como espelhos do que ele (e provavelmente, todos os habitantes do planeta) iria tornar-se. E sentia-se cada vez mais a afundar, tanto no líquido como na escuridão que ameaçava tornar-se eterna. De seguida acordou, quase sempre prestes a gritar, sentido ainda na boca o sabor amargo e oleoso daquele líquido imundo. Tentou acalmar a respiração ofegante e sentiu a roupa empapada em suor. Por mais vezes que aquele sonho se repetisse, nunca deixava de ser aterrador.
Maldito pesadelo. Roubava-lhe sempre várias horas de sono, pois não mais voltava a dormir, nessas noites. O sonho acabara mas ele, sentado na cama, continuava a reviver as memórias despertadas pelo pesadelo. Lembrava a angústia que sentira na altura em que, depois do enterro do pai, voltara à Polónia e soubera que na sua ausência tudo se complicara. Que a assistência médica a Enya e algumas colegas dela tinha ficado estranhamente demorada. E a sede de justiça que começara a sentir ferver dentro de si fora aumentando cada vez mais, ao assistir à inércia das autoridades, pois os analistas enviados pelo governo apenas negociavam com a administração da fábrica, nada fazendo quanto ao apuramento dos factos que era suposto virem esclarecer. A impunidade da morte dos dois amigos de Enya que tentavam levar o caso aos media, num muito suspeito atropelamento duplo e fuga. O médico fora compulsivamente transferido para outra localidade, e a sua prioridade agora era o bem-estar da própria família. Lucien decidira levar Enya para a Alemanha, para tratá-la, mas isso revelara-se impossível, face ao seu estado crítico. Impotente, e em desespero, partilhara com os pais de Enya o último suspiro desta. E no dia da morte de Enya, algo negro nascera na alma de Lucien. Ao decidir levar o caso às autoridades europeias, adivinhara a inutilidade dessa decisão, ao comunicarem-lhe a perda das análises médicas de Enya e das suas colegas. Um conveniente incêndio no arquivo destruíra-as. Tal como acontecera no pequeno laboratório aonde as suas pesquisas tinham lugar. Sem provas, e portanto, sem causa parente a lei. E dentro dele, o nó negro que nascera na sua alma, que se chamava vingança, crescia cada vez mais. A sua bolsa de investigação, entretanto, fora cortada a meio do percurso, e Lucien regressara a casa, deixando para sempre parte de si naquele país, na campa de uma doce jovem. A sua parte mais feliz. Na altura só não desconfiara da coincidência do fim da sua bolsa, porque isso era uma decisão central da Comissão Europeia. Depressa soube o quanto estava errado.
Um aviso sonoro arrancou-o dessas recordações teimosas. Era o alarme de chamada Videonet, um dos serviços vídeo da Internet. Lucien abanou a cabeça, tentando afastar o sono e as recordações. Agarrou o PC portátil que estava em cima da mesa-de-cabeceira e pô-lo em cima dos joelhos, abrindo-o. Era uma chamada da Pulga. Era assim o nome de código (ou nome de guerra, como ela gostava de o dizer) de uma ex-colega de Lucien dos seus tempos de estudante universitário. Era norte-americana, mas agora nem ele sabia bem aonde ela parava. O paradeiro era um dos segredos mais bem guardados de qualquer hacker que preze a sua própria liberdade. E Jane Lowhead era o melhor pirata da net que ele jamais conhecera. E uma amiga leal. Lucien olhou para o monitor do portátil e sorriu. O ecrã mostrava uma raposa a olhar para ele, com uns olhos gulosos. Jane devia ter algo de novo, pois era nessas alturas que escolhia aquela figura como interface ao telefone.
- Olá, meu velho! – disse a raposa, com a sua boca a delinear perfeitamente as palavras. Lucien nunca parara de se espantar com a perfeição dos programas criados pela amiga. E com a sabida vigilância que as autoridades mantinham sob a net, estes interfaces de segurança eram bem úteis. Para quem eventualmente vigiasse a chamada, além de não conseguir descortinar de quem e para quem era a ligação, só conseguia ver dois animais a falarem pela net. A raposa esboçou um largo sorriso e acrescentou – Tenho novidades.
- Já calculava, Pulga. – respondeu Lucien. - Já há muito tempo que não te ouvia.
- Eu sei. Estive a confirmar umas coisas. Mas pelo que sei, estiveste ocupado. Como sempre.
- Como sempre. – Jane era a única pessoa no mundo que sabia toda a história do Chacal Verde, contada pelo próprio. De facto, fora na amizade dela que ele se refugiara, depois da Polónia. – Conta lá as novas.
Ela fez uma pausa. Entretanto, a imagem da raposa desapareceu e deu lugar à imagem da verdadeira cara da Pulga. O software de Jane tinha-se certificado que a chamada não estava sob nenhuma escuta e instalado todos os parâmetros para a linha ficar completamente segura, permitindo o desligar automático da interface-raposa. Agora, era o bonito rosto moreno de Jane que preenchia o monitor de Lucien. E foi da sua boca que ele viu saírem as palavras seguintes.
- Mahil-Dupont. Temos o calcanhar de Aquiles confirmado. – as palavras fizeram estremecer Lucien. E pelo sorriso de Jane, ela sabia-o.
- Tens a certeza?
Jane esboçou fazer beicinho.
- E eu dizia-to sem ter a certeza, olhos azuis? – disse, fingindo-se ofendida. Os olhos dela brilhavam – Na mansão da família Mahil-Dupont, em Paris, confirma-se a existência de uma base de dados isolada do resto do mundo. Como sabes, eu própria só soube da existência dela pelo meu pai, que pela universidade onde trabalha, participou na composição de uma base de dados científica que Charles Mahil-Dupont comprou para anexar nessa sua central . Pelo que soube, é uma base de dados gigantesca, onde está centrada toda a informação da investigação de ponta das indústrias da família. E todos os futuros projectos industriais e tecnológicos da corporação. E pelo seu isolamento, não há hipótese de haver backup exterior. Quem conseguir destruir aquilo, compromete seriamente o futuro de uma das mega-corporações mais poderosas do mundo.
- Não sei. Parece demasiado fácil. – disse Lucien, admitindo a si mesmo que não era o seu instinto falar, mas a cautela imposta pela disciplina.
- Não, meu lindo. Faz sentido. O isolamento e a centralização estratégica dessa base de dados segue a política de centralização seguida por essa família há gerações. Mesmo depois da morte do pai e do irmão, três anos atrás, o caçula parece naturalmente seguir as pegadas da família.
- Então será de esperar que ele seguirá as pegadas do pai nos seus erros. Mesmo naqueles que custaram vidas a inocentes. – disse Grubber, com uma voz tão fria como aço.
- Sim, creio que sim. – respondeu a Pulga. Ela não se sentia muito à vontade quando era notório que o amigo relembrava o passado. Jane apostava que ele deveria ter tido aquele pesadelo outra vez. Ela lembrou como depois de ele ter voltado da Polónia, ele tivera-o todas as noites, durante semanas a fio, quase que o levando à loucura. Nessa altura, a amizade entre ambos transformara-se numa lealdade forjada na cumplicidade daquilo que Lucien decidira ser. Jane suspirou, pensando no que Lucien faria de seguida, se conseguisse atingir o seu alvo principal. Continuaria a ser o Chacal Verde?
– Pensas adquirir este alvo? - perguntou ela.
- Sabes bem que sim. Porque perguntas, depois destes anos?
- Atinges um centro nevrálgico daqueles que foram responsáveis pela tragédia de Enya, é certo. Mas se não fosse esta família a possuir a fábrica na Polónia, seria outra empresa qualquer. – Jane fez uma pausa, sabendo o quanto doera a Lucien ouvir o nome da jovem polaca. Mas ela tinha que dizer aquilo. – E depois, meu amigo? Continuas a tua guerra contra o mundo? O Chacal continua a voar até ser abatido? – Ela parou. Na cara do amigo ela viu que este ficara zangado com a pergunta. Mas nos seus olhos ela lia-lhe as mesmas dúvidas que a assaltavam a ela. Ele abanou a cabeça, como que indicando que não era a altura para discutir aquilo.
- Condições de acesso a essa tal mansão? – perguntou ele, desviando a conversa para o que considerava prioritário.
Ela abanou a cabeça, suspirando. Enquanto Lucien não terminasse a sua cruzada pessoal, não desviaria a sua atenção para qualquer outra coisa que fosse. E ela receava que a cruzada do amigo nunca acabasse. Era como se a alma dele tivesse um buraco negro com sede infinita de vingança. E Jane sabia que ela própria nunca deixaria de ajudá-lo, chegando a perguntar-se, por vezes, se a dedicação que sentia não iria para além da amizade. Reviu as suas notas e respondeu.
- Nenhumas conhecidas. Ao que tudo indica, o sistema de segurança terá sido montado pelo próprio pai de Charles Mahil-Dupont, pouco antes de morrer. E aperfeiçoado pelo filho, no último ano. Mas nada disto é certo. Terás que fazer reconhecimento físico. Isto vai ser difícil.
- Esta presa merece o esforço, Pulga.
- Sim, acredito que sim! – ela olhou a expressão dele no monitor e sentiu-lhe o frenesim mental em que Lucien devia começar a estar, analisando e pensando somente no alvo. Ela conhecia-o e era melhor não insistir em conversar com ele agora. Ela sorriu, pensando que se estivesse ao pé dele, despejava-lhe um jarro de água gelada pela cabeça abaixo, para ele se acalmar, como nos velhos tempos. Mas não estavam nos velhos tempos, e ela estava a dois continentes de distância. – Desligo agora. Se conseguir mais alguma coisa, contacto.
- Certo, Pulga. – Respondeu ele – Fica bem, querida amiga.
Jane desligou a ligação e ficou a olhar para o monitor do seu portátil.
- “Querida amiga!” – repetiu para si mesma. Por segundos, Jane quase que desejou que nessa frase o termo “querida” fosse mais importante que “amiga”. E logo de seguida censurou os próprios pensamentos. Sem dúvida ela e Lucien eram os melhores dos amigos, e talvez a mais perfeita parceria, e talvez assim o fosse por nunca ter havido sentimentos para além da amizade. Olhou para a janela e observou o mar azul cristalino que de lá se via. Tinha sido uma óptima ideia ter conseguido aquele apartamento de hotel numa das ilha Caimão. E à custa de um ricaço brasileiro que nunca descobriria para aonde teria ido aquela parte do seu dinheiro. “Coisas que um hacker a raiar o génio podia fazer impunemente”, pensou ela com um largo sorriso nos lábios. Como Lucien diria, ela nunca tinha sido de falsas modéstias. Levantou-se da confortável cadeira de bambu e debruçou-se sobre a janela e observou a praia de areias brancas que se estendia sob os seus olhos. Desviou os seus cabelos negros da cara, com os quais um vento quente dos trópicos insistia em brincar. Pensou em como gostaria que Lucien tivesse ali com ela e surpreendeu-se com esse mesmo pensamento. O que sentia começava-lhe a ser cada vez mais óbvio. Mas depois de todos aqueles anos? Ela reflectiu um pouco. Era verdade que nunca ela temera tanto por ele como agora, em que as actividades ecoterroristas do Chacal tinham-no eleito inimigo número um da maioria das grandes corporações. E as recompensas ilegais oferecidas na net a caçadores de recompensas pela captura ou identificação de elementos do Chacal Verde aumentavam todos os dias, atingindo números astronómicos. Talvez o seu medo pela segurança dele tivesse despertado algo que ela sempre reprimira. Ela deixou escapar um riso irónico enquanto olhava aquele céu de um azul infinito, ao pensar que um ecoterrorista não devia ser bem a ideia de um bom partido que os seus pais sempre quiseram que ela arranjasse. Mas vai daí, pirata informático também não devia ser curriculum que eles aprovassem. Isso lembrou-lhe que tinha que telefonar aos pais. Dizer-lhes que estava tudo bem com a sua carreira de conselheira financeira em Nova York. O programa que ela fizera para que as suas chamadas e correio electrónico fossem identificados com origem na grande maçã dera-lhe trabalho. Mas assim não havia o perigo dos seus pais fazerem-lhe uma visita surpresa. Os seus pais odiavam Nova York, ou a “nova babilónia”, como eles lhe chamavam. E ao observar a paisagem paradisíaca à sua frente, o raciocínio dos seus pais nunca lhe parecera tão válido.
A seguir: "Charles Mahil-Dupont"