"Um Passo No Tempo" 2- O Caçador
31 de Maio
O sol despontava agora no fio do horizonte e com a sua luz estabelecia-se lentamente no céu a cor levemente avermelhada que embelezava o nascer do dia na paisagem da estremadura espanhola. Por vezes, o inspector Ángel Vera da policia espanhola acordava antes do amanhecer, preparava a mistura de café e cevada como só ele sabia, ou pelo menos como só ele gostava, e sentava-se na varanda de madeira da sua velha casa em Mértola a apreciar este espectáculo. Mas naquela manhã e naquele sítio específico da região de Cáceres, havia uma novidade na paisagem. A parte frontal do imponente edifício das chamadas indústrias Quimipro parecia ter levado literalmente com um meteoro pela porta principal adentro. Vera suspirou fundo, pensando na sua varanda a 75 quilómetros de distância e em como uma coisa destas podia estragar a manhã a um inspector à beira da reforma. Olhou de relance para o sol ainda inchado de vermelho, no começo da sua jornada. Em breve, o leve frio matinal que agora sentia seria substituído por uma temperatura mais amena, mal o sol subisse mais um pouco. Por alguma razão, pensou nos países do norte, que nem no verão tinham aquele tempo ameno de Maio, tão característico em Espanha. Caminhou em direcção ao grande buraco escuro na parede frontal aonde seria antes a entrada do prédio. Dois colegas seus da polícia tentavam tirar as medidas ao buraco na parede, aonde não sobrara o mais pequeno vestígio da porta principal do edifício. Na estrada, a cinquenta metros dali, Vera avistou o responsável pela equipa forense, um velho amigo seu, a tirar equipamento do carro e a tentar orientar dois dos seus homens para a primeira triagem no local. Deviam ter acabado de chegar do matadouro que tinha ido pelos ares nessa mesma noite, a sul dali. Que noite dos diabos, quase que fazia lembrar os seus primeiros tempos de polícia, no norte do país, em que a ETA era o fantasma de todos os seus dias. Olhou para o enorme buraco na parede frontal. “O buraco à entrada é grande, sim senhor!”, pensou, enquanto caminhou por entre os seus colegas atarefados com uma revolta fita métrica, e passando pela arruinada entrada, entrou no edifício. Deu alguns passos no que antes tinha sido o majestoso hall de entrada do prédio e concluiu o pensamento anterior: “Mas não faz adivinhar o estrago interno”. O veterano inspector franziu o nariz, tal era o cheiro a queimado que imperava ali. Olhou em redor, e o que a luz matinal do sol que passava pelo rombo da frente mostrava era um cenário de completa escuridão. Não havia um centímetro naquilo que fora um hall amplo de centenas de metros quadrados que não estivesse da cor do carvão. Fora tudo incinerado, e em questão de poucos segundos. E pelos relatos dos seus colegas que tinham primeiro ali chegado, quatro horas atrás, todo o interior do prédio ficara assim, do primeiro ao último andar. Completamente consumido, como se o próprio inferno se tivesse ali instalado por breves instantes, e deixasse como rasto aquele assombro de cor que imitava as mais negras trevas. “O prédio inteiro”, pensou, sentido um calafrio enquanto olhava aquele cenário dantesco, que juntamente com o fedor a queimado parecia oprimir o próprio ar à sua volta. “E para além da própria explosão, não tinha sido detectado um único foco posterior de incêndio”.
- Que terá explodido aqui dentro? – deixou sair por entre os lábios – Gás?
- Nada tão inocente! – respondeu uma voz atrás de si, num espanhol mal arranhado, com um óbvio sotaque anglo-saxónico.
Vera virou-se e observou a figura que estava entre ele e o que era antes a porta do prédio. Era um tipo alto, sem dúvida, mais que ele próprio. Um homem dos seus trinta e muitos, cabelo escuro, que apesar de curto, não escondia o quanto estava despenteado pelo vento. E numa cara de pele branca, quase pálida, o policial espanhol deparou com os olhos verdes mais frios que já vira num homem. Mas o que realmente lhe chamou a atenção era o facto daquela figura vestir uma gabardina em pleno Maio. Mas esta quase que parecia húmida, como se tivesse apanhado chuva nas últimas horas, o que juntamente com o sotaque, fez o velho inspector de Mértola deduzir a proveniência daquele estranho, antes mesmo deste ter entreaberto a longa gabardina, tirado uma carteira de identificação e se apresentar com o seu mau espanhol.
- Inspector Morgan Wills, pela Interpol – disse o recém-chegado.
- Ángel Vera. Interpol? – indagou Vera, depois de uma rápida olhadela no cartão que estava na carteira que o outro mostrava – Essa identificação é da Scotland Yard, não refere nada da Interpol. – disse em Inglês, não duvidando que o seu inglês fosse melhor que o espanhol do homem à sua frente.
- Sim, eu ... – Wills hesitou, pois estas últimas palavras tinham sido ainda em espanhol. Olhou para o seu colega espanhol e sorriu, falando agora em inglês – Eu mantive o vínculo à Scotland e tenho sido colaborador permanente da Interpol, dependendo hierarquicamente dela. Mas cheguei à questão de três horas a Espanha e não tive tempo de contactar a delegação em Madrid para me darem as credenciais próprias da zona.
O velho inspector olhou de novo para a gabardina do Inglês e não duvidou que este realmente tivesse acabado de chegar de Inglaterra. Sorriu, curioso.
- Parece que teve muita pressa para chegar aqui, Mr. Wills.
- Pode-se dizer que sim. – respondeu Wills, avançando dois passos e começando a observar atentamente o que os rodeava, enquanto falava – Pode confirmar com o seu comandante regional as minhas credenciais, se necessário.
- Não é necessário, colega. – Vera sorriu amigavelmente. Se trinta e cinco anos daquela profissão lhe tinham ensinado alguma coisa, era a reconhecer um policial, quando via um. Wills compreendeu isso no sorriso do veterano espanhol, e retribuiu o sorriso amigável. Vera acrescentou – Não é todos os dias que recebemos a visita de um colega inglês. Especialmente depois daquilo em Gibraltar, há dois anos.
- Escocês! – emendou Wills, que começara a olhar atentamente em redor, como se conseguisse ler nos destroços o que a destruição pelo fogo escrevera.
Ao ver como Wills observava o que os rodeava, a longa experiência de Vera dizia-lhe que este cenário de destruição era familiar ao outro homem.
- Nada tão inocente...estava você a dizer. – disse Vera, tentando forçar a conversa.
Wills, não respondeu. Olhou para algo debaixo dos seus pés, no chão enegrecido. Abaixou-se, fazendo as pontas da sua comprida gabardina tocarem no chão. Um pouco à sua frente, com apenas uma das mãos, levantou uma das lajes do pavimento, que estava solta, pela acção do calor extremo. A parte de baixo estava como se a laje fosse nova, em contraste absoluto com a parte de cima.
- Uma combustão que não afectou o mármore do pavimento, em si. Apenas aquele que estava em contacto directo com o ar. – disse Wills, enquanto punha a parte debaixo da laje em posição para que Vera pudesse ver melhor – Um explosivo que consiste numa reacção química que torna volátil o oxigénio dentro de todo um edifício, fazendo com que durante alguns segundos tudo isto virasse um inferno. No entanto, os materiais em si não se consumiram. Apenas o ar. Inflamando apenas o oxigénio. Mas a temperatura alcançada fez o interior do edifício virar um gigantesco forno. Aterrador, não é?
- Combustão derivada de uma reacção química? – inquiriu Vera - E porque é que não se desencadeou um incêndio, logo depois? E este rombo na parte da frente que dá para dois elefantes passarem lado a lado?
- A combustão do oxigénio no interior do edifício foi tão rápida que provocou um vácuo que impossibilitou qualquer surgimento posterior de chamas. Quanto ao rombo, é a forma de ele iniciar a reacção, com uma explosão direccionada. Esta impele os agentes causadores da reacção química para dentro da estrutura, através do próprio buraco que a explosão provoca no prédio. Por outro lado, o próprio sopro da explosão serve como tampão para que a reacção não se perca do rombo para fora.
- Percebo a ideia. – disse Vera, franzindo o sobrolho logo de seguida - Mas tudo isso parece-me dependente de uma sincronização dos diabos entre diversos elementos num mesmo dispositivo explosivo. Não lhe parece um pouco elaborado demais?
Wills sorriu, como que habituado a lidar com este tipo de incredulidade. Deixando a laje onde estava, voltou-se a pôr de pé e limpou as mãos com firmeza.
- Se tem dúvidas, asseguro-lhe que logo que os seus colegas da forênsica acabarem a análise, confirmarão que o método aqui executado foi o mesmo do aplicado no matadouro que foi pelos ares, a alguns quilómetros a sul daqui. – Wills olhou para Vera e sorriu – Este é um dos métodos preferidos dele.
- “Ele”, outra vez! – exclamou Vera – Mas afinal, de quem está a falar?
- De quem? – respondeu Wills, como que se a resposta estivesse claramente escrita nos enegrecidos escombros para onde estava a olhar. Meteu a mão ao bolso e tirou de lá um pequeno papel branco, que entregou a Vera. Este olhou para o pássaro verde que estava desenhado no papel. Wills acrescentou - Isso estava lá fora, perto da cerca, em direcção à entrada. Eu marquei o local, para os seus colegas.
O inspector espanhol tinha reconhecido de imediato a figura no papel, e o que ela significava. Afinal, aquela destruição tinha uma causa, e uma autoria assinada.
- O Chacal Verde. – disse Vera - A tal organização internacional de Ecoterrorismo.
Wills inspirou fundo e quando falou parecia que, se pudesse, preferia morder as palavras em vez de dize-las:
– Sim, a organização!
O espanhol reparou no incómodo do outro. Ficou curioso. Um inglês, aliás escocês, a investigar um atentado em Espanha , de possível autoria de uma organização que nunca se conseguira definir se teria base na Alemanha, na Polónia ou na Republica Checa. Mas Vera sondou melhor as palavras de Wills, e perguntou:
- Mas você disse “ele”, como se fosse uma pessoa, não um grupo.
Wills olhou em redor, lembrando-se das várias vezes que tentou convencer colegas daquilo que ia dizer. De como fora em vão. E de como isso lhe custara o respeito dos seus superiores, empurrando-o para uma carreira solitária, á beira do descrédito. Olhou para o agente de meia-idade espanhol e falou, adivinhando a resposta que teria.
- E é isso que penso que seja. Um homem, não um grupo terrorista. – Wills parou de falar, como que esperando que o outro dissesse algo, mas Vera apenas continuava à espera que ele continuasse. – Em quatro anos de investigações, nunca encontrei evidências de que se tratasse de mais que um homem. Quase o apanhei em Edimburgo, quatro anos atrás. Mas depois disso, ele parece ter virado um verdadeiro fantasma. Ataca em qualquer parte do globo e continua-se a não saber quem ele é.
Vera ponderou nas palavras do outro, revendo mentalmente tudo o que sabia acerca do Chacal Verde.
- Por informação classificada a que tive acesso, proveniente da própria policia internacional, suspeita-se que o Chacal Verde talvez não passe de um grupo montado por uma das próprias multinacionais, com o objectivo de fazer o trabalho sujo da sabotagem na concorrência. O facto de nunca ter-se dado ao trabalho de divulgar uma mensagem a declarar as intenções ou a esclarecer a possível ideologia que os move aumenta essa suspeita. E o facto de nunca se ter conseguido apanhar, nem sequer identificar, um único elemento levanta dúvidas se realmente não há alguém poderoso a encobrir o seu rasto.
Wills observou os olhos do outro, antes de responder, vendo neles a sabedoria de uma longa carreira que levava este velho comissário a não ter a reacção habitual de incredulidade. Não refutara a sua opinião de o Chacal ser apenas um só homem, apenas contrapunha a informação de que dispunha, passando para ele o papel de emendar essa mesma informação, se para tal tivesse factos. Por momentos desejou que o seu superior de há quatro anos atrás, em Edimburgo, tivesse aquele profissionalismo. Como tudo teria então sido diferente. Afastou esse pensamento. Estava sozinho, como o estivera nos últimos anos. Decidiu que ali não havia nada que o ajudasse, pois como habitualmente, duvidava que o Chacal tivesse deixado qualquer indicio. Mas devia uma resposta ao autêntico cavalheiro que estava à sua frente.
- Não creio que haja alguém a encobrir nenhum rasto, apenas acções cuidadosamente planeadas e executadas. - disse Morgan - E os seus alvos já abrangeram tantas empresas que dificilmente sobra alguma multinacional impune aos seus atentados.
- Talvez se sacrifique alguma coisa, para não se levantar suspeitas. Ou talvez tenha escapado ao controlo de quem a criou. Tudo pode acontecer, incluindo os operativos terem passado a acreditar naquilo que antes podia ser uma fachada ideológica.
- Isto não é por razões de ideologia. É por vingança.
- O quê? – Vera apercebeu-se nesse momento que Wills realmente sabia mais do que parecia. – Como vingança?
- Vingança de um homem só. –– Morgan virou-se para Vera e este jurou que os olhos do escocês ainda se tornaram mais frios, quase cortantes. Mas as palavras eram ditas de forma surpreendentemente afável - Mr. Vera, em dois anos ninguém acreditou na minha tese. Mas como também ninguém consegue rigorosamente nada, dão-me rédea solta, talvez esperando que eu depare com alguma ponta solta que lhes seja útil. - Wills estendeu a mão para o cumprimento de despedida – Desculpe-me interromper assim a conversa, mas tenho que ir.
Vera apertou-lhe a mão e acompanhou-o pela abertura escancarada, deixando-o depois ir sozinho para o carro, um Rover de aluguer que deixara a poucos metros. Enquanto via o outro abrir a porta do carro e entrar nele, o velho comissário espanhol pensou consigo mesmo como teria sido a caminhada que levara o escocês a tornar-se num lobo solitário. Ángel Vera não gostava de julgar facilmente, mas era-lhe óbvio que no seu íntimo, Morgan Wills já não era um polícia. Tornara-se apenas um caçador.
Ao anoitecer, Morgan Wills entrou num quarto de hotel em Madrid, aonde passaria a noite a descansar. Acabara de chegar da central espanhola, aonde recebera o crachá da Interpol próprio da zona. No dia seguinte teria que lá voltar, para fazer o relatório. Tinha rédea solta, é certo, mas tinha que apresentar a justificação para as despesas. Apresentaria um relatório pouco diferente do habitual, e se os seus superiores no dia em que o lessem tivessem tomado um café mais forte que o habitual, talvez reparassem que a sua conclusão final seria mais tarde corroborada com o relatório da forênsica. Mas Morgan já nem se dava ao trabalho de se preocupar com isso. Já há muito tempo que a sua ligação com a direcção não passava de simples troca de burocracia. Ele não fazia ondas, eles não o chateavam. De facto, a sua teoria do Chacal Verde ser um só homem não tinha o mínimo apoio nas direcções do departamento. E Morgan já tivera dissabores por partilhar esse fio de investigação, por isso percorria agora esse caminho sozinho. E as pistas que seguia, só ele sabia. Há muito que o Chacal Verde passara a ser um assunto pessoal para Morgan Wills.
Ligou a TV do quarto e no ecrã passavam as notícias dos atentados em Cáceres. Wills sorriu. Tinha sido um autêntico estrago. E logo dois, numa noite. Grubber continuava-se a aperfeiçoar. Nunca o deixara de fazer. Sim, ele já identificara o Chacal Verde. Tinha-o feito na sua segunda deslocação à Polónia. Vira os rastos do desastre que revoltara uma comunidade. Visitara o túmulo que fizera um jovem alemão dedicar-se à vingança. E conhecera a história de um amor que acabara em morte e fizera nascer o Chacal Verde. O próprio Wills sentira uma certa compreensão pelo que acontecera, mas os ressentimentos responsáveis por trabalhar à parte da própria Interpol, faziam também com que prosseguisse a caçada ao Chacal. A qualquer custo. Para limpar o seu nome, e para acabar de vez com o sabor a amargo que sentia no mais fundo do seu ser, desde que deixara a Escócia.
Wills sentou-se na cama. Observou por momentos a decoração do quarto do hotel. Era igual a tantos outros. De um bolso do casaco tirou uma carteira aonde mantinha ainda o crachá da Scotland Yard. Lembrava-se de quando quatro anos atrás, em que o terceiro atentado do Chacal tinha sido nos armazéns de uma indústria farmacêutica, a norte de Edimburgo. Sobrara pouca coisa para investigar, pois na época o Chacal usava explosivos convencionais. Não tinha ainda desenvolvido os seus refinados métodos atuais. Na altura Morgan, que fazia parte da polícia de Edimburgo, fora um dos destacados para investigar o atentado. Com a eficácia que lhe era reconhecida (pelo menos na altura) Morgan não se limitou a investigar aquele atentado específico. Aprofundou a investigação aos outros dois atentados anteriores que tinham sido atribuídos ao grupo ecoterrorista a que a imprensa chamava “Chacal Verde”, devido à figura de um pássaro verde desenhado num papel deixado nos locais dos atentados. O primeiro atentado fora na Polónia, o seguinte na Alemanha. Cruzando informações sobre cartões de crédito, verificou que alguém utilizara num hotel em Edimburgo um cartão de crédito que fora utilizado em Berlim três dias antes. E três dias antes, em Berlim, tinha ido pelos ares uma fábrica de compostos à base de celulose, naquele que tinha sido considerado o segundo atentado do Chacal. Continuando a sua investigação solitária, chegou ao hotel aonde poderia estar um suspeito. De imediato, e contra a sua vontade, os seus superiores ordenaram uma intervenção imediata. Uma acção espectacular para o público aplaudir era o que o ministério do interior estava a precisar na altura, com as eleições que estavam à porta. Discreto por natureza e por método, Morgan desaconselhou tal medida, mas foi ignorado. Já tinha feito a sua parte, agora era a altura dos directores do departamento brilharem. A operação correu mal, pois o suspeito fugiu sem deixar rasto. Deixara no quarto do hotel apenas o rádio receptor com o qual escutara as bandas de rádio da polícia e previra que vinham ao seu encalço. Resultante disso, a discussão que Morgan teve com os seus superiores fizera com que tivesse que optar por uma carreira fora da Escócia. Devido aos seus brilhantes resultados na academia e ao seu mérito já reconhecido antes desse episódio, não lhe foi difícil encetar por uma carreira na Interpol. Mas nunca cortou a seu vínculo oficial à Scotland, podendo assim ainda usar o crachá cor de prata que segurava agora na mão. Não culpou o Chacal por essa reviravolta na sua vida. Mas não evitara um sentimento de ter ficado com um assunto por resolver. No canto da boca do escocês começou a esboçar-se um sorriso, misto de ironia e saudade, enquanto passou com a mão pelo crachá, limpando-o. Olhou para o outro crachá, que estava ao lado desse: o da Interpol, que acabara de levantar na sucursal local. Recordou o como a sua integração na polícia internacional fora rápida. E fora com agrado que se vira incorporado na legião de agentes que tentavam localizar indícios da organização ecoterrorista apelidada de Chacal Verde. Lembrou como nessa altura sentira que tinha uma nova oportunidade. Mas, depois de Edimburgo, e durante quase dois anos, não houve mais nenhum atentado que fosse imputado ao Chacal Verde. Como se o episódio na capital escocesa tivesse provocado um verdadeiro susto. Mas um susto em quem? Numa organização? Foi a partir daí que Wills começou a suspeitar que não se tratava de uma organização, mas sim de uma só pessoa. Uma organização terrorista raramente se assustava, só porque um dos seus elementos quase fora apanhado. Wills passara então semanas na Alemanha e outras tantas na Polónia. Não encontrara um único indício da actuação de um grupo terrorista. Chegada a altura, Wills fizera o seu relatório em que por eliminação de partes, chegara à conclusão que o Chacal Verde seria uma pessoa, não um grupo. Ao olhar agora para aquele crachá da Interpol, Morgan não conseguia afastar a memória da reacção da direcção de investigação a esse relatório, dois anos atrás. Fora humilhante. A sua teoria de o Chacal ser um só homem, além de não ter tido o mínimo crédito, os seus superiores foram bem incisivos no quanto consideraram ser redundante o seu fio de investigação. E como golpe final, seria destacado para outra investigação. Mas não chegou a ser, pois após um interregno de quase dois anos, o Chacal Verde voltara à actividade, mais eficiente e muito mais furtivo do que nunca. Esse regresso fora à dois anos atrás, e ainda agora ninguém conseguia prever qual seria o próximo alvo, nem aonde. O mundo era o quintal de recreio do Chacal Verde. As autoridades estavam completamente sem ponta por onde pegar. Por decisão política, e até se conseguir desmantelar aquela organização ecoterrorista, ninguém podia ser dispensado desse caso. O departamento teve que engolir o escocês no caso. Mas não engolira tanto como Morgan, que repetidamente ofendido no seu orgulho, sentia cada vez mais o Chacal como uma sombra a assombrar verdadeiramente a sua vida. Agora, ao olhar para esses dois crachás, e cerrando os dentes ao pensar no quanto a sua determinação lhe custara, lembrava-se como decidira continuar a investigação à sua maneira, sozinho. O departamento, não sabendo aonde encaixá-lo e não podendo dispensá-lo, deixou-o seguir as suas próprias pistas, como um lobo solitário. E assim tinha sido nos últimos dois anos. Até que na Polónia tivera a confirmação da sua teoria. E muito mais. Morgan abanou a cabeça, tentando afastar essas recordações. Arrumou a carteira.
Abriu a pequena pasta que trazia com ele e tirou de lá seu computador portátil, que logo que a tampa superior foi afastada, emitiu o zunido que indicava a ligação automática. “Malditos aparelhos!”, pensou Wills, “Mania das automatizações. E se eu só quisesse limpar-lhe o pó?”. Mas não era o caso.
- Modo de busca! – disse Wills, pensando o quanto se sentia desconfortável ao falar para estes aparelhos. A resposta do Portátil fez-se ouvir de seguida, com uma voz monocórdica, com a qual tinha vindo de origem. Morgan não nunca quisera mudar isso, pois uma máquina era uma máquina. Não havia razão para suavizar esse facto.
- Objecto da busca? – inquiriu a máquina
- “Quimipro”. Associa a outros alvos do Chacal Verde.
O PC fez uma pausa de 2 segundos, enquanto cruzava dados entre os ficheiros pessoais de Wills e os da WebWorld, antes de responder.
- Objecto 1: empresa designada como Quimipro, pertencente ao grupo Mark-West. O capital social deste grupo pertence maioritariamente à família Mahil-Dupont. Relação com objecto 2: dos seis últimos alvos do Chacal Verde, três incidem directa ou indirectamente sobre interesses da família Mahil-Dupont. Quer designação detalhada de algum destes elementos?
- Não é necessário. Desligar. – Wills sorriu, como um predador que acabava de avistar a presa. Voltou a arrumar o portátil na pasta e os seus olhos detiveram-se no televisor, que ainda mostrava imagens dos atentados
– Era inevitável, não era, Lucien? – disse, como que a recapitular algo que previa há já algum tempo - Mais tarde ou mais cedo tinhas de voltar à origem da tua carreira. Deixaste passar o tempo que achaste necessário, para que agora ninguém fizesse a ligação entre as coisas. Mas tinhas que voltar a tua atenção aos causadores da tua dor. Aos que te fizeram perder a tua querida Enya.
A seguir: "O Alvo Principal"