"Um Passo No Tempo" 1- O Chacal Verde
30 de Maio, Cáceres, Espanha, 200 km a Sudoeste de Madrid
A meio da escuridão da noite e seguindo as ténues luzes que estavam agora mais perto, Lucien Grubber finalmente avistou à sua frente o seu alvo. Avançou mais um pouco, ajoelhou-se na terra húmida e fria e observou atentamente o edifício que estava à sua frente, a cerca de cem metros. Ele estava agora a poucos metros da rede que circundava por completo aquela estrutura maciça. Sob a fraca iluminação local, o prédio parecia um enorme e fantasmagórico cubo a pairar sob a neblina nocturna. E à medida que essa neblina se dissipava com o aproximar do fim da noite, mais o edifício parecia ser um monólito de concreto e granito que teria sido largado no meio da paisagem silvestre da Estremadura espanhola. Por momentos, lamentou que o resultado do seu ataque não fosse fazer tudo aquilo ir pelos ares, definitivamente. Mas os meios necessários para isso não estavam incluídos nesta sua missão, pois precisava de se deslocar rapidamente. Olhou com mais atenção para o seu alvo. Na imponente e granítica parede frontal, um pouco acima da enorme porta principal, estava uma enorme placa de mármore cinzento que tinha esculpidas em espanhol as palavras “Quimipro - para um futuro melhor!”. Lucien esboçou um sorriso misto de raiva e ironia e pensou, “Um futuro melhor para quem tiver um futuro livre de vocês ”. Com um rápido olhar, confirmou o que já sabia, que a rede tinha vários avisos que aludiam ao facto de estar electrificada. Provavelmente, haveria uma outra vedação, mas invisível, composta de células fotoeléctricas ou qualquer outro tipo de feixe de luz fora do espectro visível à visão humana. Lucien escolheu um lugar atrás de um arbusto, que calculou estar ao abrigo de prováveis câmaras de vigilância que com certeza varriam a zona. Retirou das suas costas a pequena mochila negra que vinha carregando. Aliás, toda a sua roupa era negra, incluindo o capuz que lhe cobria o rosto, como convinha numa missão nocturna ao ar livre. Abriu a pequena mochila e tirou de lá o que se assemelhava a ser uma pequena balança digital caseira. Abrindo um pequeno painel frontal, começou a trabalhar no pequeno teclado que o painel protegia. Parou, esperando que o aparelho fizesse a leitura que requisitara. Com um clique e um suave zunido, o que parecia ser o prato da balança elevou-se de um dos lados e deu duas voltas sobre si mesmo. O pequeno aparelho estava agora a efectuar o scanner termográfico que Lucien lhe pedira. Aquela pequena maravilha era o melhor radar termográfico que o dinheiro podia comprar (sabendo, claro, aonde e a quem comprar) e oficialmente ainda nem sequer tinha sido inventado. Leu o registo no pequeno visor digital ao lado do minúsculo teclado. Na área circundante não havia um único ser vivo maior que um coelho. Lucien acabou de observar o registo e sorriu. Havia dois coelhos. Agachou-se e tirou o capuz passa-montanhas negro que lhe cobria a cabeça até ao pescoço. Inspirou fundo o ar fresco da noite ibérica. Aqueles capuzes podiam ser eficazes e substituíam as trabalhosas pinturas de camuflagem no rosto, cabelo e orelhas, mas faziam um calor desgraçado. Passou a mão direita pelo cabelo louro cortado à escovinha. O jovem alemão, quase a entrar nos trinta anos, levantou os olhos do termográfico e observou de novo o edifício que estava à sua frente. A segurança nocturna devia ser totalmente baseada num sistema de sensores automáticos para detecção de intrusos. A economia de dinheiro proporcionada pela automatização de um sistema continuava a seduzir os senhores do mundo. E nem os governos mais corajosos que ainda tentavam criar leis anti-desemprego conseguiam resultados visíveis, pois a lei do mais forte era o imperativo da economia mundial. Sempre fora. E quando um sistema completamente automatizado falhava, como acontecera dois anos atrás no aeroporto de Antuérpia, em que um super “avançado” sistema de segurança chacinara oito inocentes, sempre se conseguia achar um “erro humano” que explicasse a situação ocorrida. Depois do suicídio na prisão do desgraçado que levara com as culpas, o próprio Lucien tinha mandando pelos ares duas delegações da empresa de consultadoria que tinha sido contratada pelo governo belga para “achar” esse “erro humano”. Olhou com mais atenção para a área circundante ao prédio. Deviam faltar cerca de duas horas para o sol nascer e a neblina começava a dissipar-se por completo, facilitando-lhe a visão. Os seus olhos argutos conseguiam descortinar seis câmaras, em situações que pretendiam ser camufladas. Todas elas mantinham um movimento constante, cada uma cobrindo uma área específica do terreno circundante ao complexo. Pormenor importante, todas elas tinham movimentos diferentes e ritmos diferenciados de rotação, o que mostrava que cada uma seria gerida por um programa informático próprio, que por sua vez seriam geridos por um programa principal, com elevado Q.I.A. (Q.I.Artificial). Um sistema assim teria custado uma verdadeira fortuna. A juntar ás células fotoeléctrico e à rede electrificada ao redor de todo o perímetro, formavam um conjunto de segurança respeitável. E era com certeza muito mais caro que um sistema de filtração de águas que teria evitado os estragos que ele estava ali hoje para vingar. Para entrar dentro daquele perímetro seriam necessários mais uns quantos aparelhos caros e mesmo assim nada lhe garantia que não houvesse outros subsistemas a meio do caminho. Mas, também, não era sua intenção entrar. Meteu novamente as suas mãos enluvadas na pequena mochila e tirou de lá o que parecia ser uma pequena panela com uma bolsa de tecido amarrada em cima. De lado, tinha um pequeno autocolante que dizia “Correio verde”, em alemão. Na parte interior do objecto armou os três pequenos arames que cruzando formavam um pequeno tripé apoiado no qual Lucien colocou-o no chão, com o cuidado de ficar com a exacta inclinação desejada . Verificou cuidadosamente o estado da bolsa amarrada na parte superior e afastou-se um pouco. Tirou de um dos inúmeros bolsos das suas calças o que parecia ser um minúsculo telecomando de TV. Era um telecomando, sim, mas da pequena engenhoca afrente dele. Ao toque de um dos coloridos botões do comando, uma cápsula de ar comprimido que ocupava uma pequena secção interna na parte debaixo do “Correio verde” deflagrou, deixando escapar toda a sua potência por quatro escapes direccionais no lado inferior do aparelho. Esse impulso explosivo de ar comprimido fez o “Correio verde” elevar-se do solo, com um barulho que se poderia imaginar que um elefante tinha acabado de espirrar nas redondezas, voar cem metros acima da cabeça de Lucien, passar por cima da cerca electrificada e cobrir a distância até ao edifício. Quando o “aerocatapultado” objecto estava quase a esmagar-se na parede frontal do prédio, Lucien premiu outro botão no comando, que teve como resposta imediata que a bolsa de tecido na parte superior do objecto se abrisse e saísse de lá um pequeno pára-quedas, fazendo o “correio verde” parar a sua rota de colisão com a parede do edifício a escassos centímetros desta e começar uma suave descida que terminou no solo a cerca de um metro e meio da porta principal. Aterragem feita, através do comando deu as coordenadas para onde deveria ser direccionada a explosão que desencadearia o efeito químico a que ele chamava de “Inferno Expresso”. Em resposta, do pequeno “correio verde” saiu um zumbido e na porta principal apareceu um ponto de luz vermelho do tamanho de uma cabeça de alfinete. Isso significava que o “correio” tinha o alvo adquirido. Lucien sorriu e guardou o pequeno comando no bolso das calças donde o tirara. Abaixou-se e confirmou no scanner se continuava sozinho nas imediações. Confirmação feita, arrumou o scanner na mochila e meteu-a às costas. De um bolso do blusão tirou um pequeno papel dobrado em dois. Desdobrou-o e deixou-o cair no chão, ficando para cima a face que tinha desenhada a verde-escuro uma silhueta de uma ave em pleno voo. Correu os cerca de trezentos metros que o separavam de “Diana”, a sua potente mota, que estava entre dois aglomerados de silvas, que a escondiam completamente. Enquanto a retirava do esconderijo, esperava que aqueles providenciais arbustos não lhe riscassem a pintura da mota. “Diana” (em referência à mitológica deusa grega, símbolo da vida selvagem) estava completamente pintada de negro baço, não reflectindo a mínima luz em toda a sua estrutura. Todo o metal de que era feita, pele dos estofos, tubos de escape até à mais pequena peça mecânica exposta, estavam revestidas de tinta preta baça com propriedades anti-reflectora de luz. Até as cores azul e branco do símbolo da BMW da moto tinham sido substituídos por tonalidades de preto e cinzento. Montou aquela moderna montaria mecânica, ligou-lhe o motor, que em vez de produzir o rugido característicos das suas irmãs de classe da sua potente cilindrada, apenas se ouviu um estalar abafado, logo seguido por um zunido forte que parecia não vir da moto, mas algures de um ponto distante. Era a última palavra em camuflagem de sons: se não se conseguia abafar completamente um ruído, então produzia-se a ilusão que de vinha de um outro ponto qualquer que não fosse a sua verdadeira origem. Sem ligar os faróis, conduziu “Diana” até uma estrada que distava poucas centenas de metros dali. Aí, ligou as luzes (não havia necessidade de chamar à atenção, andando numa estrada principal de luzes apagadas) e acelerou a mota.
Alguns quilómetros a Sul, a estrada começou a acompanhar um rio, mantendo-se paralela a este a uma distância de poucas centenas de metros da sua margem. Durante mais alguns quilómetros, Lucien manteve-se nessa rota até que desviou-se por uma estrada secundária que seguia directamente para a margem do rio. Ao entrar nesse desvio, e sem diminuir a velocidade, Lucien desligou as luzes de “Diana”. A estrada, que a partir de certo ponto deixava de estar alcatroada, acabava a algumas dezenas de metros adiante, aonde Lucien parou e observou o seu segundo alvo dessa noite: no fim da estrada e à beira do rio erguia-se o que parecia ser um conjunto de três edifícios baixos quase sem janelas, situados à margem do rio vizinho. De um dos edifícios saia uma conduta rasteira que entrava nas águas do rio. Desmontando da mota, deitou-a cuidadosamente no chão. De uma pequena caixa acoplada ao assento da mota, tirou um pequeno embrulho de tecido negro, que rapidamente desatou e estendeu, revelando ser um painel de tecido muito fino mas deveras resistente e elástico, tão negro e baço como a cor da mota e da roupa do jovem, com o qual ele rapidamente cobriu e camuflou a “Diana” (visto que não havia vegetação por perto que servisse para esse efeito) como uma grande luva negra feita por medida para o efeito. O jovem furtivo caminhou até á margem do rio próximo. Observou as águas do rio aonde aqui e ali, ao longo da distância que separava as duas margens, se conseguia distinguir alguns pontos brancos, reflexos da espuma provocada pelo embate das águas em algumas rochas. E ao ouvir o ruído provocado pela poderosa corrente de água facilmente lhe veio à alma o respeito devido àquele filho das chuvas e das nascentes do centro da península Ibérica. O que nascia como pequenos riachos centenas de quilómetros a Noroeste dali, chegava ali como um poderoso rio, outrora fonte de alimento de centenas de aldeias e várias cidades e origem dos mais diversos deuses da natureza a que o homem antigo tinha forçosamente de imaginar, para explicar tal majestade em forma de rio. O jovem abanou a cabeça, desgostoso. Agora, não passava de uma gigantesca bomba de despejo dos desperdícios urbanos para o mar. Olhou para o pequeno complexo de três edifícios a algumas dezenas de metros, naquela mesma margem. Servia também para despejos que podiam ser evitados se fossem cumpridas as mais simples normas de protecção ao meio ambiente. Mas ali, como em muitas outras nações que não ousavam assustar o “investimento industrial” ou “ameaçar postos de trabalhos”, pagar as multas destas transgressões compensava muito mais do que o dinheiro necessário para filtrar e reciclar os detritos. Era uma questão de gestão, claro. É claro que os gestores responsáveis por coisas como aquelas não habitavam as localidades beira-rio a Sudoeste daquele matadouro. Não acordavam com o fedor proveniente das águas do rio. Nem tinham que ter cuidado para as suas crianças, nas suas brincadeiras no rio, não subirem muito a margem deste, com o risco de apanharem mais uma doença de pele. Doenças que os advogados do grupo económico a que aquele matadouro pertencia conseguiriam sempre provar que não tinham nada haver com o complexo nem com os restos químicos que eram tirados do interior das carcaças bovinas (eles próprios resultado das profanações genéticas que faziam um bezerro ter a constituição de uma vaca adulta) deitados ao rio ali mesmo, para aonde ele estava a olhar naquele momento. Eles, o homens do lucro, residiam nos seus condomínios fechados, nas suas torres de vidro, ou nas suas ilhas privadas, de onde nem saiam para trabalhar, pois a maioria deles tinha a sua própria internet privada para gerir os seus negócios. Lucien cerrou os dentes e os seus olhos azuis brilharam de uma forma selvagem. Algo no seu passado veio ainda dar mais força à sua raiva. A recordação do que fizera nascer o Chacal Verde. Inspirou fundo e acalmou-se. Esta era uma missão fácil, mas não podia nunca dar-se ao luxo de se desconcentrar. Aprendera isso à quatro anos atrás, na Escócia. Quanto aos detritos urbanos, não havia nada a fazer que salvaguardasse o rio de receber esse outro rio de imundice urbana. Por agora. Mas quantos a estes transgressores, deliberados e apenas em nome do lucro, representavam algo bem concreto para o jovem ecoterrorista: alvos. E este alvo não seria de acesso tão complicado quanto o anterior. Não passava pela cabeça de ninguém pôr sofisticados sistemas de segurança a proteger um simples matadouro. Tirou da sua mochila um objecto como o “correio verde” mas sem o sistema de propulsão a ar comprimido. Aproximou-se do edifício do matadouro, mantendo-se sempre vigilante, pois sempre havia a hipótese de um vigia aparecer por ali. Neste caso, redobrando a atenção, Lucien não precisaria de utilizar o termógrafo ou o radar de bolso. E tinha que se despachar, se queria as duas deflagrações simultâneas, como tinha planeado. Encostou-se a uma das paredes exteriores laterais do edifício. A sujidade da parede acrescentou ás costas e aos ombros do blusão negro uma cor cinza. - “Nojentos por dentro e sujos por fora. Não há dúvida que mantêm uma certa coerência.” – pensou Lucien, passando-lhe pela cabeça o trabalho que iria ter a lavar aquela roupa à mão, pois aquele tipo de equipamento não era propriamente uma coisa que se poderia enviar para uma lavandaria. Abriu uma pequena tampinha no objecto e regulou a potência da explosão. Não podia haver dúvidas que ela teria sido resultado de um atentado, dificilmente coberto por um seguro, fazendo com que a posterior reconstrução do sítio levasse ainda mais tempo. Quanto aos empregos dos trabalhadores que ficariam em risco, depois desta sua actividade, Lucien já há muito tempo que decidira na sua consciência o que pesava mais na balança; se os estragos no ambiente, se esse tipo de questões sócio-económicas. E o que ele era e fazia ilustrava bem qual a sua opção. Pôs o explosivo no chão, encostado à parede e retirou-se rapidamente, largando a alguns metros dali um outro papel com um pássaro verde desenhado.
Quinze minutos depois, Lucien estava conduzindo “Diana” numa auto-estrada quilómetros a Sul do matadouro. Abrandou e entrou num desvio de uma estação de auto-serviço com restaurante, parando atrás das pequenas casinhas aonde se situavam os lavabos exteriores. Certificando-se que nenhuma dessas cabinas estava ocupada, para não haver testemunhas curiosas, ocupou-se de reverter a sua camuflagem. Começou pela mota. Acrescentou alguns autocolantes de cores vivas (e de gosto discutível, pelo que Lucien quase que pedia desculpas a “Diana” sempre que o fazia) incluindo um com as cores originais da marca da moto. Feito isso, entrou numa das cabinas dos lavabos e tratou da sua própria roupa. Despiu as calças e o blusão e voltou-os a vestir, mas do avesso. Agora era como se tivesse mudado de roupa, pois toda a roupa de Lucien estava concebida para ajudá-lo na sua tarefa de ser um autêntico camaleão humano. A sua roupa não tinha forro, apenas duas maneiras de se vestir. As calças apresentavam agora o aspecto de umas calças normais de ganga e o blusão era agora de um verde-cinza com bolsos falsos pintados em verde um pouco mais escuro, muito em moda no sul da Europa. Este era um procedimento simples, talvez até inútil, tendo em conta todas as precauções que Lucien tinha, antes de iniciar uma acção nocturna de sabotagem, mas sempre podia haver uma testemunha ou uma câmara em que ele não tivesse reparado. E em caso disso, apesar de confiar na penumbra da noite para ser difícil reconhecerem-lhe o rosto, a roupa negra chamaria facilmente a atenção numa zona mais povoada, para aonde ele se dirigia, a seguir. Executada rapidamente essa mudança camaleónica, tirou da sua pequena mochila duas coisa: um simples saco de plástico e o que parecia ser uma pequena máquina de calcular de bolso, mas que na realidade era o emissor de rádio que serviria para detonar os dois engenhos que deixara de “presente” na Quimipro e no matadouro. Puxou uma pequena antena do alto do pequeno aparelho e digitou a frequência de rádio com que os “presentes” estavam preparados para receber o sinal. Digitou os quatro números que constituíam o código para deflagrar. Poisou o indicador sobre o pequeno botão vermelho, mas sem o premir, o que deflagraria um inferno de fogo a partir de cada um dos dois engenhos que deixara de “presente”. Apesar de acreditar sinceramente nas causas que o levavam a isso, nunca o fazia de ânimo leve. Não podia negar a si mesmo que na maioria das suas operações sentia um certo prazer em planear e executar a sua guerrilha particular. Ao ler as noticias sobre os seus feitos na imprensa , que continuavam a identificar os seus actos como fruto de uma organização terrorista, e não das acções de um só indivíduo, dava ao seu próprio espírito a liberdade de sentir a satisfação de um trabalho bem feito. O esforço do planeamento meticuloso que ele sempre fazia, fosse qual fosse a envergadura da próxima acção, era recompensado duplamente: atingia sempre o seu objectivo, que incluía quase sempre a destruição de um alvo, e a total ausência de indícios que pudessem levar as autoridades a seguirem-lhe o rasto. Gostava que tivesse sido assim eficiente desde o princípio, mas um erro no inicio da sua carreira como ecoterrorista, quatro anos atrás, quase que acabara com essa mesma carreira, logo no começo. Tinha sido um erro crasso, resultante da utilização do mesmo cartão de crédito em três países diferentes no espaço de uma semana. Cruzando informação, a policia escocesa quase que lhe deitara a mão num hotel em Edimburgo. Conseguira escapar, mas o susto fora de tal ordem que o levara nos dois anos seguintes a não fazer outra coisa que não fosse recolher informação, estudar os procedimentos das autoridades, e aprender a ser muito mais cuidadoso. E aprendera-o muito bem. A imprensa começara há algum tempo atrás apelidar a suposta organização terrorista de “Chacal Verde”, não suspeitando que as suas acções eram fruto de uma guerra de um só guerreiro. A opinião pública começara a criar uma área de mistério e romance à volta da misteriosa organização ambiental que tantos estragos fazia mas que nunca tirara uma única vida humana. As entidades governamentais, as empresas e a própria lei é que não achavam nenhuma graça ao assunto, pois continuavam a mostrar-se impotentes para conseguir achar um suspeito que fosse. Lucien sabia que pelas leis das probabilidades, era provável que mais tarde ou mais cedo o apanhassem. Mas esta noite, juntar-lhe-iam mais dois pontos ao seu “ranking”. E em breve apontaria ao seu alvo principal. Premiu o botão vermelho e segundos depois o eco das deflagrações ouviu-se, como que um prenuncio de uma tempestade próxima. Lucien encaminhou-se para o estabelecimento self-service da estação, pensando na refeição que o seu estômago reclamava já há algumas horas. Olhou para norte e conseguiu destinguir ao longe, no céu, um clarão reflectido nas nuvens matinais, resultado de uma das explosões. Teria que se despachar, para sair de Espanha antes que as autoridades se mexessem e apertassem o controle nos aeroportos. Além de dois bilhetes diferentes de avião (caso a policia espanhola fosse extremamente rápida na resposta, ele tinha a hipótese de recorrer a um voo com partida de um aeroporto português, aonde a segurança era seguramente menos apertada, pois os lusos não tinham o “calo” que os espanhóis , com as recordações do terrorismo da ETA, tinham em questões de segurança), tinha também um bilhete de barco, por precaução.
Entrou no restaurante e olhou para os pratos expostos na vitrine do balcão do self-service, pensando no que a fome lhe ditava que escolhesse. Olhou para um prato que tinha vitela com batatas, e veio-lhe à cabeça se aquela carne seria de um animal morto no matadouro que acabara de mandar pelos ares. E se era, com certeza teria mais hormonas que um rato de laboratório. O jovem guerreiro alemão suspirou, interrogando-se, como o fazia dezenas de vezes por dia, se a sua não era uma guerra perdida.
A seguir: "O Caçador"