Dor nas Trevas (completo)
O sol das quatro da tarde daquele inverno esticava as sombras de tudo. No calçadão central da cidade, longe de prédios altos, uma multidão caminhava quase caótica, cada um se dirigindo para suas casas, ou talvez para um encontro, para tomar uma merecida cerveja gelada... mas todos apressados! Suas projeções se esticando longe em direção ao leste, opostas ao poente, que acolheria o astro-rei incrivelmente mais cedo naquele solstício de inverno. Ele não se sentira bem durante praticamente todo o dia, mas agora tinha a impressão clara de estar sendo pisoteado por uma manada de elefantes!
Como era angustiante ficar lá, perdido, vagando caótico no meio da multidão! Tinha um objetivo, uma direção em mente. Mas naquela bagunça, entre querer e fazer havia um abismo instransponível. Empurrado pra cá e pra lá de sua rota planejada, agora entendia muito bem o que deveria sentir uma partícula descrevendo um movimento browniano...
O frio latejava em sua cabeça, aumentando mais ainda o incômodo. Precisava mesmo sair dali! Determinado em sua rota, no princípio pedia educadas desculpas, mas percebeu que teria de fazer isto tantas vezes até chegar em seu objetivo que deixou de lado este protocolo. De qualquer forma, dificilmente alguém se importaria mesmo. Foi abrindo caminho na multidão, a sensação de se sentir pisoteado ficando cada vez mais intensa. Chegou enfim à praça circular num dos cantos do calçadão, com a fonte e o espelho d'água no centro. Era o lugar mais calmo por hora. Sentou-se num dos bancos, e ficou contemplando o chafariz.
Um pedaço de paz em meio ao caos... Como ele gostava daquele lugar! O som da água tentando abafar o murmúrio do povo em volta, seus vapores... tudo perfeito! O sol detrás da água jorrando para cima dava um efeito particularmente agradável. Mas ainda era capaz de sentir a multidão se arrastando atrás dele. A sensação era viva demais! E se ele mudasse de lugar? Se levantou em direção ao outro lado daquele espelho dágua, onde a multidão parecia menos feroz.
Via-se claramente pedaços de gelo boiando no espelho d'água. Sim, estava mesmo frio! Incomum para uma cidade cruzada pelo trópico de capricórnio. Vendo o gelo que começava a se formar, ele pensou que seria péssima idéia tentar tomar um banho naquele laguinho artificial. Chegando do outro lado do espelho, pulou para trás num choque! A população em volta reclamou daquele maluco, de encontro a todo mundo se sopetão. Mas foram solidários ao ver que ele realmente estava passando mal. Tremia sem parar, estava morrendo de frio!
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Felizmente aquele povo era solidário. Prestativos, o levaram para um abrigo, um boteco, tentaram aquecê-lo, reanimá-lo. Até um reanimador conhaque o dono do estabelecimento lhe ofereceu. Se recuperou. O que acontecera? Simplesmente não sabia, e assim se explicou. Um frio inexplicável, capaz de gelar até o fundo da alma! Provavelmente fôra apanhado por uma corrente fria imprevisível.
Olhando para fora, o céu vermelho cercado de púrpura profundo e, logo após, trevas pontilhadas de estrelas indicavam que faltava pouco para o sol se colocar de vez detrás da linha do horizonte. E foi assim reanimado que a dor profunda enfim se apresentou, um formigamento insuportável. Uma dor no braço. Esquerdo ou direito? Tomara que não no esquerdo: com histórico de cardíacos na família, sabia muito bem o que isto poderia significar. Sempre se tratara, exatamente por causa deste risco. Não era magro, mas também não era gordo. Levemente acima da média, e checkups periódicos lhe asseguravam estar tudo sob controle. Mas o coração é traiçoeiro, tanto no sentido físico quanto sentimental. Não dá para confiar nele.
- Por favor, alguém poderia me indicar o médico mais próximo ?
E se encolheu, pois algum braço realmente doía muito! E o mais incrível desta história toda: ele não sabia qual deles!
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Cara a cara com o clínico geral de plantão, a dor havia diminuído bem, mas algum braço ainda latejava muito!
- Não poderei te ajudar se você não for mais específico: qual dos braços dói?
- Não sei, doutor! - estava realmente confuso! - Sei que algum braço dói, e muito! Mas não sei dizer qual...
O médico, impaciente, estava quase encaminhando-o à psiquiatria. Mas decidiu insistir.
- Você quer dizer que não sabe exatamente qual ponto do braço dói, não é?
- Nada disso, doutor. Sei bem onde dói! É no antebraço, pouco à frente do cotovelo. Só não sei de qual braço...
Nunca havia ouvido nada parecido em sua vida profissional. Ficava difícil se decidir por algum diagnóstico.
- Levante a camisa, por favor.
Encostou o frio estetoscópio no lado esquerdo de seu peito. Depois nas costas.
- Diga trinta e três.
Por que 33, e não 27, 59, 13, 12357... Bom, não era hora destas divagações inúteis (para os outros, óbvio! não para ele...). Repetiu obediente:
- Trinta e três.
O médico se sentou. Disse:
- Respiração normal. Coração forte como um touro. Algum caso de doença cardíaca na família?
- Tenho sim, e é esta minha preocupação. Por isto corri para cá.
- Aparentemente o coração está perfeito. Mas isto quer dizer então que... é no braço esquerdo a dor?
- Não sei, doutor. Podia ser, e na dúvida resolvi conferir.
Era de enlouquecer. Como era possível alguém não saber dizer qual dos dois braços doía? Já ouvira alguns casos de desorientação espacial, inversão bilateral, casos raros de pessoas que passavam a confundir os lados esquerdo e direito. Seria sintoma de algum problema neurológico?
- Vou tentar uma experiência, se você me permitir.
- Por favor, doutor! Estou em suas mãos...
- Pode manter os olhos fechados?
Podia, era fácil. O médico tocou na palma de sua mão esquerda, para testar.
- Erga o braço que toquei.
Ele ergueu o braço esquerdo. Era uma pena, não seria hoje que ele diagnosticaria este distúrbio raro... Mas prosseguiu, com o paciente de braço levantado. Resolveu insistir:
- Preste atenção agora! Faça o que vou dizer com a sua mão direita, e não abra os olhos! Com sua mão direita me aponte exatamente onde está doendo.
Obediente, o paciente apontou. A luz da sala estava à direita do paciente. Com o braço esquerdo levantado, o indicador da mão direita apontou, convicto, o antebraço esquerdo num ponto pouco à frente do cotovelo... da sombra projetada na parede pelo braço esquerdo!! De olhos fechados, o paciente apontava vitorioso:
- É aqui, doutor! - o dedo apontando a sombra na parede. - É bem aqui que está doendo!
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Óbvio que deveria ser uma brincadeira! "Tenho cara de palhaço?", pensou o doutor. "Ele não vê que tenho coisas mais importantes para fazer?"
- Abra os olhos!
Ao abrir, vendo seu indicador apontando a sombra, ele conclui:
- É aí mesmo! Como não tinha pensado nisto? É aí que está doendo, doutor! Na sombra do meu braço!
O bom doutor não podia crer que o maluco estava disposto a prosseguir com aquela palhaçada.
- Acha que estou aqui para brincadeira? Sabe quanta gente está esperando lá fora com problemas de verdade? Seu egoista. fanfarrão!
- Mas... - estava confuso. - Dói mesmo, doutor! E é lá, na sombra! Minha sombra dói!!!
Furioso, o doutor jogou com força um grampeador na parede, em direção à sombra da cabeça de seu paciente. Ele nunca poderia esperar tal reação, mas o fato é que o paciente caiu levando as mãos na cabeça como se o objeto tivesse atingido a própria, e não sua projeção em sombras na parede. E o mais surpreendente: o paciente sangrava!
- Se feriu na queda? - disse o doutor, ajudando-o a se levantar.
- Não foi a queda, foi aquele grampeador...
- Oras bolas, já chega de brincadeira!!
- Não é brincadeira, doutor!
Ele se sentou de novo. O doutor lhe deu gaze para estancar o sangue que jorrava das têmporas.
- A parede está fria.
Parede fria? Até onde ele pretendia ir com esta encenação?
- Pode apagar ou diminuir a luz, doutor?
- Pra sombra sentir menos, imagino... - completou irônico.
- Por gentileza! Eu sei tanto o que está acontecendo quanto o senhor! Mas sei que isto alivia...
O doutor reduziu a intensidade da luz. E o paciente também percebeu que, se mudasse de posição de tal forma que sua sombra não se projetasse sobre o pedaço da parede ferido pelo grampeador, a dor diminuia. Por isso passou a evitá-lo...
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- É um caso clássico de Transferência Sinestésica Espacial! - disse o doutor, esperançoso de que o paciente acreditasse mais na explicação do que ele próprio, já que havia acabado inventar o "diagnóstico"! - Um distúrbio psíquico onde a pessoa projeta em objetos externos sentidos do próprio corpo.
- Como assim, doutor?
Ele pensou...
- Você dirige?
- Sim. Vendi recentemente, mas fiquei algum tempo com um carro.
- Quando você o escosta numa manobra, digamos, em outro, ou num poste, uma parede... Você nunca sentiu aquilo como uma sensação ocorrendo numa extensão de seu próprio corpo? Como se o carro fosse uma continuação de você?
Ele pensou... Sim, algumas vezes tinha sentido isto com clareza!
- Então! Isto é Transferência Sinestésica Espacial! Você cria sensações em regiões externas, onde seus sensores nervosos na verdade não têm acesso...
Seu olhar de incompreensão era inexplicável. Do que ele estava falando?
- São sentidos falsos! Você precisa observar que eles acontecem para formular a ilusão!
- Mas... quando o carro encostava numa parede ou poste, eu sentia parte de meu corpo encostando neles! E não estava olhando para eles! Apenas sentia...
- Ah... vamos fazer outra experiência! Me permita vedar seus olhos. Não que esteja desconfiado... só quero evitar qualquer possibilidade de trapaça, mesmo que inconsciente!
Aquela explicação de que ele sentia coisas pela sombra explicava tudo! O médico queria provas? Bem, ele era cientista! Precisava delas! Ele as forneceria sem questionar.Mas para o paciente, tudo estava explicado...
Aquela sensação de ser pisoteado... era real! Estava mesmo sendo pisoteado! No meio da praça, sua sombra alongada ela alvo dos pés de uma multidão incontável! O que ele estava sentindo eram os pés de cada um pisando sua sombra alogada pelo sol de inverno! Sim, era tão real porque realmente acontecia! A população pisoteava sua sombra alongada, que ele sentia nele mesmo!
E aquele choque térmico? Isto também se esclarecia agora, sob a nova explicação! Inicialmente ele estava à leste do espelho d'água. Via o sol detrás do chafariz. Sua sombra se estendia além do centro da praça, por onde passavam as pessoas. Por isto ainda sentia aquela sensação desagradável: uma multidão pisoteava sua SOMBRA!!
Enfim decidiu se dirigir ao outro lado. Idéia excelente a princípio! Mas ele viu que água estava congelada, não é? Indo para o outro lado, ele se colocaria entre o sol poente e o espelho d'água. Nesta situação, sua longa sombra se projetaria sobre a água fria do laguinho artificial. Por isto ele se sentiu tão gelado!! Ao se dirigir ao lado oposto do espelho dágua, sua sombra se projetou sobre aquelas águas prestes a congelar. Ele sentiu muito, muito frio!!!!
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Ele só via trevas! Nenhuma luz externa sensibilizava cones ou meros bastonetes de sua retina!
- Farei experimentos aleatórios. Às vezes em seu corpo, às vezes fora... mas nunca avisarei onde. Concorda?
- Doutor... faça o que quiser! Só me faça parar de sentir dor!
O doutor encostou na parede um isqueiro aceso na sombra da perna direita do paciente, que ele recolheu imediatamente.
- Ei!!! Para com isso!!! Você não me disse que seria uma sessão de tortura!
- Desculpe! Só quis ter certeza...
Colocou um cubo de gelo na parede, na sombra do pescoço do paciente vedado.
- Está gelado, caramba! Tira isto do meu pescoço!!!
Era surpreendente! Impossível o paciente observar o que acontecia. Teria ele cúmplices sugerindo o que dizer? E, de qualquer forma, com que objetivo?
O doutor descartou logo a possibilidade de fraude...
- Tire a venda. O que você sente é verídico! Não sei o que está acontecendo... mas está!
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Ele se sentou, sério, para anunciar seu diagnóstico.
- Não sei o que acontece contigo, meu caro! Os mecanismos são totalmente inimagináveis. Mas acontece! Você sente sua sombra!
Relembrando os últimos dias, ele percebeu que a sensação aumentava gradativamente! Aquela sensação de ser pisado... ele estava mesmo sendo pisado! O frio... sem saber, mergulhara mesmo a própria sombra na água fria! Eram provas demais, impossível questionar. Por mais absurdo que pudesse parecer...
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O doutor lhe receitou analgésicos para a dor. Funcionaria para sombras? Ele confessou: não tinha a mínima idéia! Descobriria agora, com sua única cobaia, inédita! Ele descobriria com aquele paciente se analgésicos eram eficientes também para dor em sombras projetadas por membros...
Ele não era nenhum idiota, sabia muito bem que aquela tal de "Transferência Sinestésica Espacial" havia sido inventada naquele exato momento pelo médico. Procurar outro? Algum resolveria? E... resolver o que?
A dor na sombra do braço passou. Sim, naquela confusão toda alguém com certeza pisou em sua sombra com mais brutalidade, e era isto que o fizera sofrer. Estava claro agora: ele sentia pela sombra!! Qual a explicação lógica disto?
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Parou defronte ao precipício, o sol nas suas costas. A sombra se projetava no abismo à frente. Pular?? Imagina!!! Não estamos aqui contando a história de um suicida! Por que ele faria isto? Mas a sombra se projetava longe! Lá embaixo ele a via. Mais que ver, ele a sentia, tocando com a sombra aqueles objetos distantes! Era maravilhoso! Como aconteceu? Como explicar isto? Tanto faz! Tem coisas que simplesmente acontecem!
Desistindo de procurar explicação, ele apenas vivia sua curiosa condição! Sentia pela própria sombra, e queria mesmo ver até onde isto pode levar!!
Explicações? Deixaria esta tarefa para o competente doutor, ou para pessoas com mais imaginação do que ele...
*** FIM ***