Paralelo 38
Sono profundo
No começo era como se fosse um sonho. Um sonho vívido, real, que até assustava. Mark sempre adormecia no mesmo ponto da viagem de trem que fazia de sua casa para o trabalho e vice-versa.
Começava a sentir um forte torpor e não havia como resistir. Dali a pouco acordava na mesma época, no mesmo dia e no mesmo lugar. Sabia que tinha sonhado e se lembrava nitidamente de seu sonho.Ele era incrivelmente igual à realidade. Ele pensou que estava ficando louco, pois às vezes não sabia se estava sonhando ou se estava acordado. Mark tinha certeza de que algo diferente estava acontecendo, mas era tudo tão estranho que nem dava para explicar.
Era a quarta ou quinta vez que ele passava por aquela experiência. Acordou e percebeu que daquela vez tudo era ainda mais estranho do que as outras vezes. Olhou para o lado e viu que no banco estava a sua colega de viagem, Helen. Não se podia dizer que era sua amiga, mas a conhecia muito bem pois viajavam juntos há muito tempo. Mark sentiu que havia algo anormal na maneira de ela agir, parecia mais como uma irmã gêmea dela e não ela mesma. Viu em suas mãos um livro de “Ciências Econômicas”, achou estranho e perguntou:
- O que você está fazendo com este livro? Além de Biologia, você resolveu estudar Economia?
- Do que você está falando? Sempre estudei Economia, não gosto de Biologia, falamos sobre isto inúmeras vezes. Você até me ajudou numa dissertação sobre “crises econômicas mundiais”! Você não se lembra? Você está usando drogas?
Mark percebeu que estava se metendo em encrenca e não insistiu. Ficou quieto por uns instantes e olhou a paisagem que passava acelerada pela janela. Viu ao longe um enorme prédio que estava em construção e que ele nunca vira antes.
- Que prédio é aquele? Nem tinha reparado nele antes…
- Você está me gozando,né? Ainda ontem falamos sobre isto. O que está acontecendo com você?
- Estava só brincando…
Ele não estava brincando. Algo estava errado. A própria Helen estava errada. Aquela não era ela. Não a Helen que ele conhecia. Sua voz era diferente, e até o pouco da personalidade da Helen que ele conhecia não era o mesmo. Notou também que ela tinha um dente ligeiramente lascado no lado superior esquerdo da boca, mas não ousou perguntar. O trem parecia o mesmo a não ser por alguns detalhes. O interior do vagão era cinza claro quando normalmente era branco. As propagandas eram diferentes, o cheiro era diferente. Estava chegando a próxima estação e o trem começava a parar. Era a estação “Crescent”. Qual não foi sua surpresa quando viu a placa que dizia “Latin Circle”. Quase perguntou para Helen o que era aquilo mas segurou sua língua. Quando o trem partiu novamente, arriscou:
- Helen, que estação foi essa, mesmo?
- Você anda meio distraído, hoje, hein? Acabamos de passar por “Latin Circle”.
- Ah, pensei que era “Crescent”…
- O quê???
- Nada, nada…É que estava lendo um livro, outro dia, dizendo que há muitos e muitos anos atrás esta estação se chamava “Crescent”.
- - Acho que você está enganado, acho que esta estação sempre foi “Latin Circle”. Você deve estar confundindo as histórias.
- Estava só brincando…
- As suas brincadeiras estão muito estranhas hoje.
Mark resolveu calar-se pelo resto da viagem. Três estações depois, como ele esperava, graças a Deus, Helen desceu. Ela sempre descia na estação “Central”. Despediram-se, ele ameaçou dar um beijo no rosto dela, como sempre fizeram mas ela nem percebeu e saiu. Mark olhou pela janela e pode verificar com o rabo dos olhos a placa: “Old Station”. Ficou petrificado. Lembrou-se então que teria de descer três estações adiante e a estação era “New Horizon”. E se esta estação não existisse mais? Para seu alívio a estação “New Horizon” chegou e ele desceu. Sua casa era perto dali e ele caminhou, não sem certo pavor, imaginando se sua casa estava no mesmo lugar. Estava. Entrou pensando se contaria para sua mãe o que estava acontecendo. Certamente ela iria achar que era cansaço. Não precisou pois ela não estava. Mark se assustou mas não muito. A essa altura, parece que ele estava voltando à realidade. O que ele lembrava de antes que era o sonho.
O dia seguinte
Chegou o trem que deveria pegar se tivesse tido um dia normal de trabalho. Ficou pensando no absurdo da situação. Lembrou-se então de um professor de física que estava falando sobre a lei da relatividade. Ele havia lhe dito que o absurdo só é absurdo no primeiro instante. Depois que você se acostuma com ele, deixa de ser absurdo. Era o que estava acontecendo. Ele tinha quase certeza de que dormiria de novo no trem e que tudo voltaria ao normal. Em alguns minutos o trem chegou.
Ele pode notar que a locomotiva principal era diferente da que ele via todos os dias. Era azul e não vermelha como costumava ser. Teve certeza mais uma vez de que ainda estava naquela outra realidade, que no entanto tinha muito coisa em comum com a primeira, aquela que sempre conhecera. Entrou, começou a andar pelo corredor em direção ao assento que sempre usava. A maior parte das pessoas era a mesma de todos os dias, com pequenas diferenças, A velha senhora que sempre se sentava do lado esquerdo não tinha os mesmos cabelos brancos de antes. Agora eram grisalhos e ela estava usando óculos. Um senhor relativamente novo, que sempre estava de terno, agora usava camisa esporte e não tinha a costumeira bengala. Não viu as duas meninas que pareciam gêmeas mas isso não fazia muita diferença pois vez ou outra elas não apareciam. Os assentos estavam cobertos com um tecido azul escuro ao invés do couro marrom de sempre.
Mark sentou-se e preferiu não olhar mais nada. Talvez fosse um sonho. O realismo porém era muito forte. Não, não poderia ser um sonho. Talvez estivesse doente e debaixo de fortes drogas. Talvez em coma. E se estivesse morto? Talvez. Ninguém sabia como era o pós-morte. Talvez uma alma desesperada tentando recobrar as memórias da vida anterior. Isto explicaria as diferenças: falhas na memória.
De volta
Bem, estava chegando o ponto onde dormiria novamente. Viu, um pouco antes, Helen entrando na ponta do vagão. Não deu tempo para ver se era a “nova” Helen ou a antiga. O sono que vinha era como uma anestesia geral.
Acordou e viu, para seu alívio, que era a doce e e suave Helen de sempre.
- Parece que toda vez que entro no trem você está dormindo, quero dizer, desmaiado.
- E rindo:
- Você está querendo me evitar?
Mark deu um sorriso de alívio, de saber que aquela era a Helen de sempre, e que também serviu como um não para a pergunta que ela acabara de fazer.
- Eu sei que você não perguntou mas eu fui muito bem na prova de Biologia Geral ontem. Você é testemunha de como mereço uma boa nota. Viu como eu estudei ontem. Nem conversei com você. Você se lembra?
Mark não se lembrava de nada. Pudera, estivera num mundo muito distante. Concordou, entratanto, com tudo que ela falava. Essa Helen era uma boa menina. Ficou imaginando o que teria acontecido no trabalho enquanto ele estivera ausente. Quer dizer, este era o problema, ele estivera presente, mas seu outro eu não tinha a mínima ideia do que se passou. Só saberia no dia seguinte. As estações desta vez se comportaram. Voltaram a ser as mesmas de sempre. E mais ainda, lá estava sua mãe, como sempre com seu sorriso, esperando. Ficou imaginando…Onde ela estaria na outra realidade? Ficou preocupado. Estaria viva? Talvez numa instituição? Deu-lhe um beijo na face, mas desta vez um beijo muito mais afetuoso. Sua mãe, alheia ao drama de seu “menino” deu um sorriso gostoso. Esse Mark…
Ele pensou em conversar com a mãe, fazer perguntas sobre o dia de ontem. Pensou bem mas achou que, além de assustá-la, ela não acrescentaria nada ao que já sabia.
O dia seguinte estava lindo e Mark foi trabalhar. Seu trabalho era de analista de pedidos de pagamentos de seguros. Ansioso foi verificar a papelada do dia anterior. Começou a olhar os requerimentos. Todos assinados por ele, preenchidos, respondidos. Inicialmente achou estranho pois não havia trabalhado naquele dia. Mas a seguir entendeu. Ele havia faltado ao trabalho no seu segundo mundo. No primeiro ele havia feito tudo como costumava fazer. Durante o passar das horas seguintes ele foi se lembrando de tudo que fizera – embora não estivesse lá (ou estava?). Na mesma proporção foi se esquecendo das coisas de seu segundo mundo, menos a forte consciência de que efetivamente algo tinha acontecido.
De volta, de novo
À noite, na hora de voltar não se lembrava de quase nenhum detalhe do dia anterior mas sabia que alguns minutos depois de a viagem de trem começar, viria um sono profundo e ele seria jogado naquele mundo alternativo. Ainda assim cumpriu sua sina. Sentou-se, esperou os minutos que tinha de esperar, viu a Helen número 1 entrar na outra ponta do vagão, uma mancha branca invadiu seu cérebro, entrou em sono profundo. Acordou com a voz de Helen perguntando se ele estava bem. Respondeu que sim, que estava apenas cansado ultimamente. Antes de abrir os olhos, pensou em olhar para os livros de Helen para saber se eram de Economia ou Biologia. Não os viu. Perguntou então:
- Onde estão os seus livros?
- Aqui.
Mostrou sorrindo – sim, seu dente com uma pequena lasca estava lá – o seu material do outro lado do banco. Mark já sabia de tudo isto, mas ainda assim ficou perplexo. Sim, lá estava ele começando um novo dia no seu mundo alternativo. Desta vez, sabiamente não falou sobre o novo prédio em construção. Não se lembrava dos nomes das estações mas sabiam que eram diferentes e não fez nenhum comentário que o pusesse em situação difícil. E, claro, sabia que não encontraria sua mãe em casa. Ainda assim entrou com o coração palpitando. A casa vazia era a um tempo triste mas também estabelecia uma certa lógica dentro do absurdo. Preparou-se para dormir pois tinha muito sono: fora do normal, este sono com certeza tinha relação com as suas “viagens”. Antes de fazê-lo, porém, resolveu andar pela casa. Como no trem, havia pequenos detalhes diferentes. Dirigiu-se com certa aflição para o quarto da mãe. Embora soubesse que ela não estava lá – ela jamais se deitava antes de ele chegar – queria saber o que havia lá dentro. Abriu. Era um escritório que ao mesmo tempo era –estranhamente - familiar e desconhecido. Olhou documentos, pastas, arquivos. De alguns se lembrava, de outros não, De repente seus olhos se depararam com uma pasta com a inscrição: “Mamãe”. Ele sabia que ele tinha escrito aquela palavra embora não parecesse a sua letra. Olhou os documentos: certidão de nascimento, certidão de casamento…Estava para examinar os dados para ver se coincidiam com o que sabia quando olhou estarrecido para um documento que dizia: “certidão de óbito”. Percorreu avidamente as linhas. Sua mãe tinha falecido há três anos, no dia 7 de julho. Morte natural, ataque cardíaco. À medida que lia, as imagens iam voltando à sua mente: a ambulância, a noite no hospital, a notícia do médico na manhã seguinte, os parentes chegando de longe, a cerimônia na igreja, o funeral…As imagens vinham aos borbotões. Aquela altura Mark começou a entender que ele tinha uma segunda vida inteira a ser descoberta. Mais do que isto, um mundo inteiro. Era ao mesmo tempo espetacular e assustador.
As duas vidas
Com o tempo as “viagens” de Mark adquiriram um padrão constante. Vivia alternadamente duas realidades distintas embora bastante parecidas. Duas “hipóteses” de vida, ambas bastante plausíveis. Após o tumulto inicial no entanto, não havia com o que se preocupar. Em cada realidade ele só se lembrava daquela que estava vivendo, inclusive do dia anterior, embora ele tivesse estado “ocupado” na outra vida alternativa. Tudo estaria bem se nos primeiros momentos – de quinze a cinquenta minutos - logo após a mudança de estado, ele não convivesse com os dois. Era um momento absolutamente estranho e único. Provavelmente também perigoso.
Tudo era muito difícil naqueles momentos. Além de uma espécie de “angústia” existencial” ele tinha de controlar seu comportamento diante das “duas Helen”, uma a cada tempo,para que elas não o considerassem “louco”.
Naqueles momentos cruciais, Mark fez o que parecia óbvio e que acabou impactando ainda mais “suas duas vidas” . Começou a escrever bilhetes para si mesmo, deixando-os nos seus bolsos. Escrevia sobre “mundos paralelos”, “realidades alternativas”, estados de consciência, sobre a mãe viva e a mãe morta, sobre as profissões diferentes que tinha em seus dois mundos: analista de seguros e agente de propaganda. Na hora que escrevia parecia a coisa óbvia a fazer e a grande solução para achar uma saída. No entanto, durante o dia, quando lia aqueles bilhetes, não conseguia entender por que escrevera aquilo. Não se lembrava de nada. A parte cruel da história era que o que parecia uma saída, acabou virando um inferno. Nos primeiros e únicos momentos de consciência dupla ele tentava engendrar os planos mais engenhosos para o seu problema. Mas os minutos iam passando e ele ia se esquecendo de seu dia anterior e também dos momentos de lucidez dupla e mergulhava densamente na próxima realidade. Durante dia, quando achava bilhetes no bolso, achava que alguém estava brincando com ele, imitando sua letra, escrevendo coisas absurdas como: “Mark, realidade A, Helen Biologia”, Mark, realidade B, Helen Economia”, “mundos paralelos”, etc…Nas duas realidades ele tentava esconder de seus conhecidos o que estava acontecendo, poderia perder o emprego, podiam achar que ele estava enlouquecendo. Na segunda realidade, ele tinha até marcado consulta com um psiquiatra. Na primeira realidade, o seu “eu” achava que isso seria inútil. Começou a escrever nos bilhetes mensagens sugerindo a leitura de livros sobre a “teoria dos muitos mundos” , “universos paralelos”, “ princípio da incerteza na física quântica”. O seu “eu” do segundo mundo não aceitou a sugestão das leituras mas o primeiro “eu” acabou mergulhando no assunto e lendo também livros sobre as teorias de Hugh Everett, Niels Bohr, Copenhage, Heisenberg, etc… De nada adiantava, no entanto. Os bilhetes estranhos continuavam nas duas vidas e na primeira vida, aquelas leituras passaram a ser apenas um passatempo, um gosto que ele adquirira sem nem entender por quê. Nos dois mundos, Mark estava caminhando para um estado de loucura. Os poucos momentos de lucidez, na hora da “viagem” não estavam ajudando a resolver, ao contrário, estavam criando problemas nos dois mundos. Quando ele não fazia a viagem noturna de trem, a realidade em que ele estava naquele dia se prolongava mais, como nos finais de semana, por exemplo.
A chegada de John: o paralelo 38
Foi aí então que algo realmente diferente aconteceu na realidade 2 onde Mark acabara de chegar e entrar no estágio de consciência dupla. Naquele dia Helen não tinha vindo. Após alguns instantes, alguém veio do fundo do vagão e sentou-se a seu lado. Um senhor de uns sessenta anos, de cor negra.
-Acredite, Mark, eu sei o que você está sentindo…
Mark achou que ele se referia a seu aspecto físico, talvez estivesse pensando que ele usasse drogas.
-Não se preocupe, estou bem.
-Mark, eu sei de tudo, eu tenho o mesmo problema.
-Problema? O que você quer dizer com isso?
-Suas viagens de um mundo para outro…escute, temos pouco tempo. Não adianta muito porque você vai se esquecer. Na próxima vez que nos encontrarmos talvez possamos fazer alguns exercícios mentais para guardar algo em sua memória após o “transe”. Mas mesmo assim, você só vai se lembrar numa outra vez como esta, não durante o dia. No momento você não está se lembrando nem desse mesmo momento ontem.
Enquanto ele falava o coração de Mark disparava. Finalmente alguém para compartilhar seu drama. E mais: alguém que sabia mais do que ele.
-A propósito, Mark, meu nome é John. Você já deve ter me visto neste vagão anteriormente.
Era verdade. Agora Mark se lembrava. De vez em quando um senhor, geralmente usando um casaco cinza, viajava naquele trem. John explicou que aquilo não era coincidência. Aquele trem, naquele horário, passava pelo paralelo 36. Era uma região em que as sub partículas atômicas sofriam uma disfunção que poderíamos chamar de cósmica. Só acontecia num determinado horário. Algumas pessoas especiais como ele e Mark também tinham em suas moléculas sub partículas que formavam uma espécie de ressonância com o ambiente. John explicou que todas as pessoas existiam em diversas realidades, inúmeras, com pequenas ou grandes alterações. Somos nós mesmos mas as realidades são diferentes, porque pequenos detalhes causaram mudanças em cada uma delas. Havia, no entanto, uma força que segurava todas as ralidades dentro de um mesmo parâmetro para que elas não se diferenciassem de uma maneira absoluta. Cada eu de um mesmo indívíduo vivia em todas as realidades mas só tinham consciência de uma. Por um motivo não explicado, naquela região, num determinado momento , acontecia algo que fazia com que alguns cérebros ficassem sintonizados em mais de uma existência. Algum tempo passa, explica John, e o cérebro se fixa numa das duas, geralmente na que você não estava antes do episódio.
-Existe solução?, perguntou Mark meio desesperado…
-Um tanto drástica, mas existe.
Mark pensou consigo mesmo, o que poderia ser mais drástico do que a própria situação em que estava.
John acentuou para ele que não haveria nenhum problema se ele absolutamente não se lembrasse das duas realidades ao mesmo tempo. Aqueles momentos de duplicidade de consciência logo após o sono profundo é que causavam a necessidade de entendimento, os bilhetes e tudo isto acabava interferindo nas duas realidades. John então falou que ele não deveria escrever mais nada. De qualquer forma, com toda aquela agitação, certamente ele não tivera tempo de escrever nada. John estava falando, falando, foi ficando meio distante. Mark, então resolveu interrompê-lo para fazer uma pergunta.
-John…
Mark então não conseguia entender o que estava acontecendo. Por que ele estava ali, chamando um estranho de “John”, alguém que estava quieto e não tinha lhe dirigido a palavra. Mark acabara de se esquecer de tudo. Outro dia, quero dizer outra noite, não se lembrava de nada. Que coisa estranha, por que ele estava dirigindo a palavra para aquela pessoa? O “John” que nessa realidade provavelmente tivesse outro nome, olhou para ele com surpresa, levantou-se e saiu. Mark não conseguia entender porque estava ali falando com um desconhecido.
A solução de John
Naquele dia Mark não encontrou bilhetes no bolso. Jogou fora alguns antigos que encontrou. Lembrou-se, no entanto, que estava tendo “problemas com a cabeça”. Algumas semanas se passaram estáveis e nada de especial aconteceu, além das idas e voltas. Viu umas duas ou três vezes o John mas nada veio a sua mente.
Numa sexta-feita à noite, logo após o trem passar pelo ponto “quântico” como John o nomeara durante o breve encontro, Mark, após o torpor normal de suas transferências, notou que um senhor negro acenava para ele do banco normalmente ocupado por Helen. Rapidamente falou para Mark que, mesmo ele não se lembrando, eles já haviam conversado. Mark tentou interromper, fazer perguntas, mas John fez um sinal com a mão que significava que era para ele parar e escutar. Falou então algo que não tinha falado da primeira vez. Que o único jeito de sair daquela situação era eliminar uma das realidades, ou seja o Mark teria de morrer na segunda realidade. Explicou que não poderia ser suicídio. Foi o que ele, John, tinha feito. Ao invés de eliminar uma das realidades, ele criou outras mais e pior que isso ele tinha consciência das outras, pelo menos algumas, ao mesmo tempo. Era um verdadeiro inferno existencial. Agora, o problema estava resolvido, pelo menos em parte. Ele agia de maneira tão estranha na maioria delas que acabou sendo internado ou sendo tratado com drogas fortíssimas. Numa das realidades, estranhamente, ele tinha se deslocado um pouco no tempo. Tinha retroagido algumas horas. Além dos problemas que já tinha, nesta realidade ele tinha o conhecimento do que iria acontecer mas não o poder de mudá-lo. No entanto, ele já tinha a resposta para seus problemas. Primeiro iria ajudar Mark e depois iria de encontro a seu destino. Fez então uma pergunta para ele:
-Você entende que um dos “Marks” precisa morrer? Você entende que, ao mesmo tempo, não pode cometer suicídio?
Mark concordava com tudo. Ele estava entendendo.
-Eu preciso eliminar você, aqui, nesta realidade, para que você possa viver em paz na outra. Você entende? Só vou fazer isso se você concordar, é uma questão de consciência.
Por mais absurda que fosse a situação, por mais que Mark não quisesse aceitar essa hipótese, ele entendia que aquilo que John estava sugerindo era o absurdo tentando por ordem dentro do caos. Fez então sim com a cabeça diversas vezes.
John então explicou que havia pouco tempo, que teria de ser outra vez. Ele podia sentir que Mark “estava indo embora”. De repente Mark viu-se olhando para um senhor negro e não entendia por quê. O senhor também olhou para ele meio interrogativo e cada um voltou para o que estava fazendo antes. Mark já havia esquecido tudo novamente.
Adeus, Mark 2
Três semanas se passaram e Mark estava bem na primeira realidade enquanto na segunda havia sido diagnosticado com paranoia pelo seu psiquiatra. Foi então que John encontrou as condições ideais para encontrar Mark novamente. Dessa vez quando Mark se deu conta de que tinha acabado de chegar da viagem, notou imediatamente um senhor negro, de uns sessenta anos, na ponta do vagão, perto da porta. Tinha uma vaga, muito vaga , sensação de que o vira antes. Viu que ele acenava e fazia sinais para que Mark viesse até ele. Relutou um pouco mas depois levantou-se e dirigiu-se até a outra extremidade. Quando chegou perto, John lhe disse:
-Mark, rápido, rápido, nosso tempo está passando.
Mark não estava entendendo mas sentia um confiança sem explicação no estranho e por isso obedeceu.
-Mark, você não se lembra de nada, eu sei, mas eu estou salvando sua vida.
Ele ainda não estava entendendo mas estava ouvindo.
-Preciso que você venha aqui entre os dois vagões e olhe para os trilhos.
Nesses trens, os espaços entre os vagões eram abertos e podia se ver o movimento rápido do trem comendo a distância. Mark obedeceu, foi para a beirada e olhou para baixo. Nesse momento, John deu-lhe um vigoroso empurrão para fora da composição. Mark ainda sentiu o barulho fortíssimo das rodas, o seu próprio grito de espanto e imagens do seu dia percorreram pela sua mente como um raio. Viu-se primeiro imergido numa grande escuridão e depois numa grande luz. De repente estava de volta no banco do trem, Helen a seu lado, falando dos seus planos para as férias da faculdade. Não sabia de mais nada e essa era a única realidade que tinha, nada mais o afetava. Não sabemos nada mas provavelmente na outra realidade alguém tinha encontrado um corpo e uma investigação policial estava ocorrendo. Mas que importa? Agora havia só uma vida que importava. A lembrança daqueles bilhetes tontos que escrevera quase de todo se desvanecera. Provavelmente o stress do trabalho havia provocado aquelas ações, talvez tivesse sido uma tentativa de fuga da realidade. Como disse, que importa?
Três dias depois, quando entrava no trem, ansioso para encontrar Helen, notou que aquele senhor negro que de vez em quando viajava naquele vagão, acenou sorridente para ele. Não entendeu por quê, mas educado que era, respondeu com um sorriso…
LEIA MAIS: CRÔNICAS AMERICANAS
Sono profundo
No começo era como se fosse um sonho. Um sonho vívido, real, que até assustava. Mark sempre adormecia no mesmo ponto da viagem de trem que fazia de sua casa para o trabalho e vice-versa.
Começava a sentir um forte torpor e não havia como resistir. Dali a pouco acordava na mesma época, no mesmo dia e no mesmo lugar. Sabia que tinha sonhado e se lembrava nitidamente de seu sonho.Ele era incrivelmente igual à realidade. Ele pensou que estava ficando louco, pois às vezes não sabia se estava sonhando ou se estava acordado. Mark tinha certeza de que algo diferente estava acontecendo, mas era tudo tão estranho que nem dava para explicar.
Era a quarta ou quinta vez que ele passava por aquela experiência. Acordou e percebeu que daquela vez tudo era ainda mais estranho do que as outras vezes. Olhou para o lado e viu que no banco estava a sua colega de viagem, Helen. Não se podia dizer que era sua amiga, mas a conhecia muito bem pois viajavam juntos há muito tempo. Mark sentiu que havia algo anormal na maneira de ela agir, parecia mais como uma irmã gêmea dela e não ela mesma. Viu em suas mãos um livro de “Ciências Econômicas”, achou estranho e perguntou:
- O que você está fazendo com este livro? Além de Biologia, você resolveu estudar Economia?
- Do que você está falando? Sempre estudei Economia, não gosto de Biologia, falamos sobre isto inúmeras vezes. Você até me ajudou numa dissertação sobre “crises econômicas mundiais”! Você não se lembra? Você está usando drogas?
Mark percebeu que estava se metendo em encrenca e não insistiu. Ficou quieto por uns instantes e olhou a paisagem que passava acelerada pela janela. Viu ao longe um enorme prédio que estava em construção e que ele nunca vira antes.
- Que prédio é aquele? Nem tinha reparado nele antes…
- Você está me gozando,né? Ainda ontem falamos sobre isto. O que está acontecendo com você?
- Estava só brincando…
Ele não estava brincando. Algo estava errado. A própria Helen estava errada. Aquela não era ela. Não a Helen que ele conhecia. Sua voz era diferente, e até o pouco da personalidade da Helen que ele conhecia não era o mesmo. Notou também que ela tinha um dente ligeiramente lascado no lado superior esquerdo da boca, mas não ousou perguntar. O trem parecia o mesmo a não ser por alguns detalhes. O interior do vagão era cinza claro quando normalmente era branco. As propagandas eram diferentes, o cheiro era diferente. Estava chegando a próxima estação e o trem começava a parar. Era a estação “Crescent”. Qual não foi sua surpresa quando viu a placa que dizia “Latin Circle”. Quase perguntou para Helen o que era aquilo mas segurou sua língua. Quando o trem partiu novamente, arriscou:
- Helen, que estação foi essa, mesmo?
- Você anda meio distraído, hoje, hein? Acabamos de passar por “Latin Circle”.
- Ah, pensei que era “Crescent”…
- O quê???
- Nada, nada…É que estava lendo um livro, outro dia, dizendo que há muitos e muitos anos atrás esta estação se chamava “Crescent”.
- - Acho que você está enganado, acho que esta estação sempre foi “Latin Circle”. Você deve estar confundindo as histórias.
- Estava só brincando…
- As suas brincadeiras estão muito estranhas hoje.
Mark resolveu calar-se pelo resto da viagem. Três estações depois, como ele esperava, graças a Deus, Helen desceu. Ela sempre descia na estação “Central”. Despediram-se, ele ameaçou dar um beijo no rosto dela, como sempre fizeram mas ela nem percebeu e saiu. Mark olhou pela janela e pode verificar com o rabo dos olhos a placa: “Old Station”. Ficou petrificado. Lembrou-se então que teria de descer três estações adiante e a estação era “New Horizon”. E se esta estação não existisse mais? Para seu alívio a estação “New Horizon” chegou e ele desceu. Sua casa era perto dali e ele caminhou, não sem certo pavor, imaginando se sua casa estava no mesmo lugar. Estava. Entrou pensando se contaria para sua mãe o que estava acontecendo. Certamente ela iria achar que era cansaço. Não precisou pois ela não estava. Mark se assustou mas não muito. A essa altura, parece que ele estava voltando à realidade. O que ele lembrava de antes que era o sonho.
O dia seguinte
Resolveu não trabalhar no dia seguinte. Poderia ser perigoso ou pelo menos embaraçoso. Mas algumas horas antes pegou o trem como se fosse trabalhar , foi até a estação de destino e não saiu de lá. Ficou até a hora de voltar. Sentiu vontade de ligar para sua firma mas resolveu não arriscar. Poderia ficar numa situação estranha. E se sua firma não existisse nessa nova realidade?
Chegou o trem que deveria pegar se tivesse tido um dia normal de trabalho. Ficou pensando no absurdo da situação. Lembrou-se então de um professor de física que estava falando sobre a lei da relatividade. Ele havia lhe dito que o absurdo só é absurdo no primeiro instante. Depois que você se acostuma com ele, deixa de ser absurdo. Era o que estava acontecendo. Ele tinha quase certeza de que dormiria de novo no trem e que tudo voltaria ao normal. Em alguns minutos o trem chegou.
Ele pode notar que a locomotiva principal era diferente da que ele via todos os dias. Era azul e não vermelha como costumava ser. Teve certeza mais uma vez de que ainda estava naquela outra realidade, que no entanto tinha muito coisa em comum com a primeira, aquela que sempre conhecera. Entrou, começou a andar pelo corredor em direção ao assento que sempre usava. A maior parte das pessoas era a mesma de todos os dias, com pequenas diferenças, A velha senhora que sempre se sentava do lado esquerdo não tinha os mesmos cabelos brancos de antes. Agora eram grisalhos e ela estava usando óculos. Um senhor relativamente novo, que sempre estava de terno, agora usava camisa esporte e não tinha a costumeira bengala. Não viu as duas meninas que pareciam gêmeas mas isso não fazia muita diferença pois vez ou outra elas não apareciam. Os assentos estavam cobertos com um tecido azul escuro ao invés do couro marrom de sempre.
Mark sentou-se e preferiu não olhar mais nada. Talvez fosse um sonho. O realismo porém era muito forte. Não, não poderia ser um sonho. Talvez estivesse doente e debaixo de fortes drogas. Talvez em coma. E se estivesse morto? Talvez. Ninguém sabia como era o pós-morte. Talvez uma alma desesperada tentando recobrar as memórias da vida anterior. Isto explicaria as diferenças: falhas na memória.
De volta
Bem, estava chegando o ponto onde dormiria novamente. Viu, um pouco antes, Helen entrando na ponta do vagão. Não deu tempo para ver se era a “nova” Helen ou a antiga. O sono que vinha era como uma anestesia geral.
Acordou e viu, para seu alívio, que era a doce e e suave Helen de sempre.
- Parece que toda vez que entro no trem você está dormindo, quero dizer, desmaiado.
- E rindo:
- Você está querendo me evitar?
Mark deu um sorriso de alívio, de saber que aquela era a Helen de sempre, e que também serviu como um não para a pergunta que ela acabara de fazer.
- Eu sei que você não perguntou mas eu fui muito bem na prova de Biologia Geral ontem. Você é testemunha de como mereço uma boa nota. Viu como eu estudei ontem. Nem conversei com você. Você se lembra?
Mark não se lembrava de nada. Pudera, estivera num mundo muito distante. Concordou, entratanto, com tudo que ela falava. Essa Helen era uma boa menina. Ficou imaginando o que teria acontecido no trabalho enquanto ele estivera ausente. Quer dizer, este era o problema, ele estivera presente, mas seu outro eu não tinha a mínima ideia do que se passou. Só saberia no dia seguinte. As estações desta vez se comportaram. Voltaram a ser as mesmas de sempre. E mais ainda, lá estava sua mãe, como sempre com seu sorriso, esperando. Ficou imaginando…Onde ela estaria na outra realidade? Ficou preocupado. Estaria viva? Talvez numa instituição? Deu-lhe um beijo na face, mas desta vez um beijo muito mais afetuoso. Sua mãe, alheia ao drama de seu “menino” deu um sorriso gostoso. Esse Mark…
Ele pensou em conversar com a mãe, fazer perguntas sobre o dia de ontem. Pensou bem mas achou que, além de assustá-la, ela não acrescentaria nada ao que já sabia.
O dia seguinte estava lindo e Mark foi trabalhar. Seu trabalho era de analista de pedidos de pagamentos de seguros. Ansioso foi verificar a papelada do dia anterior. Começou a olhar os requerimentos. Todos assinados por ele, preenchidos, respondidos. Inicialmente achou estranho pois não havia trabalhado naquele dia. Mas a seguir entendeu. Ele havia faltado ao trabalho no seu segundo mundo. No primeiro ele havia feito tudo como costumava fazer. Durante o passar das horas seguintes ele foi se lembrando de tudo que fizera – embora não estivesse lá (ou estava?). Na mesma proporção foi se esquecendo das coisas de seu segundo mundo, menos a forte consciência de que efetivamente algo tinha acontecido.
De volta, de novo
À noite, na hora de voltar não se lembrava de quase nenhum detalhe do dia anterior mas sabia que alguns minutos depois de a viagem de trem começar, viria um sono profundo e ele seria jogado naquele mundo alternativo. Ainda assim cumpriu sua sina. Sentou-se, esperou os minutos que tinha de esperar, viu a Helen número 1 entrar na outra ponta do vagão, uma mancha branca invadiu seu cérebro, entrou em sono profundo. Acordou com a voz de Helen perguntando se ele estava bem. Respondeu que sim, que estava apenas cansado ultimamente. Antes de abrir os olhos, pensou em olhar para os livros de Helen para saber se eram de Economia ou Biologia. Não os viu. Perguntou então:
- Onde estão os seus livros?
- Aqui.
Mostrou sorrindo – sim, seu dente com uma pequena lasca estava lá – o seu material do outro lado do banco. Mark já sabia de tudo isto, mas ainda assim ficou perplexo. Sim, lá estava ele começando um novo dia no seu mundo alternativo. Desta vez, sabiamente não falou sobre o novo prédio em construção. Não se lembrava dos nomes das estações mas sabiam que eram diferentes e não fez nenhum comentário que o pusesse em situação difícil. E, claro, sabia que não encontraria sua mãe em casa. Ainda assim entrou com o coração palpitando. A casa vazia era a um tempo triste mas também estabelecia uma certa lógica dentro do absurdo. Preparou-se para dormir pois tinha muito sono: fora do normal, este sono com certeza tinha relação com as suas “viagens”. Antes de fazê-lo, porém, resolveu andar pela casa. Como no trem, havia pequenos detalhes diferentes. Dirigiu-se com certa aflição para o quarto da mãe. Embora soubesse que ela não estava lá – ela jamais se deitava antes de ele chegar – queria saber o que havia lá dentro. Abriu. Era um escritório que ao mesmo tempo era –estranhamente - familiar e desconhecido. Olhou documentos, pastas, arquivos. De alguns se lembrava, de outros não, De repente seus olhos se depararam com uma pasta com a inscrição: “Mamãe”. Ele sabia que ele tinha escrito aquela palavra embora não parecesse a sua letra. Olhou os documentos: certidão de nascimento, certidão de casamento…Estava para examinar os dados para ver se coincidiam com o que sabia quando olhou estarrecido para um documento que dizia: “certidão de óbito”. Percorreu avidamente as linhas. Sua mãe tinha falecido há três anos, no dia 7 de julho. Morte natural, ataque cardíaco. À medida que lia, as imagens iam voltando à sua mente: a ambulância, a noite no hospital, a notícia do médico na manhã seguinte, os parentes chegando de longe, a cerimônia na igreja, o funeral…As imagens vinham aos borbotões. Aquela altura Mark começou a entender que ele tinha uma segunda vida inteira a ser descoberta. Mais do que isto, um mundo inteiro. Era ao mesmo tempo espetacular e assustador.
As duas vidas
Com o tempo as “viagens” de Mark adquiriram um padrão constante. Vivia alternadamente duas realidades distintas embora bastante parecidas. Duas “hipóteses” de vida, ambas bastante plausíveis. Após o tumulto inicial no entanto, não havia com o que se preocupar. Em cada realidade ele só se lembrava daquela que estava vivendo, inclusive do dia anterior, embora ele tivesse estado “ocupado” na outra vida alternativa. Tudo estaria bem se nos primeiros momentos – de quinze a cinquenta minutos - logo após a mudança de estado, ele não convivesse com os dois. Era um momento absolutamente estranho e único. Provavelmente também perigoso.
Tudo era muito difícil naqueles momentos. Além de uma espécie de “angústia” existencial” ele tinha de controlar seu comportamento diante das “duas Helen”, uma a cada tempo,para que elas não o considerassem “louco”.
Naqueles momentos cruciais, Mark fez o que parecia óbvio e que acabou impactando ainda mais “suas duas vidas” . Começou a escrever bilhetes para si mesmo, deixando-os nos seus bolsos. Escrevia sobre “mundos paralelos”, “realidades alternativas”, estados de consciência, sobre a mãe viva e a mãe morta, sobre as profissões diferentes que tinha em seus dois mundos: analista de seguros e agente de propaganda. Na hora que escrevia parecia a coisa óbvia a fazer e a grande solução para achar uma saída. No entanto, durante o dia, quando lia aqueles bilhetes, não conseguia entender por que escrevera aquilo. Não se lembrava de nada. A parte cruel da história era que o que parecia uma saída, acabou virando um inferno. Nos primeiros e únicos momentos de consciência dupla ele tentava engendrar os planos mais engenhosos para o seu problema. Mas os minutos iam passando e ele ia se esquecendo de seu dia anterior e também dos momentos de lucidez dupla e mergulhava densamente na próxima realidade. Durante dia, quando achava bilhetes no bolso, achava que alguém estava brincando com ele, imitando sua letra, escrevendo coisas absurdas como: “Mark, realidade A, Helen Biologia”, Mark, realidade B, Helen Economia”, “mundos paralelos”, etc…Nas duas realidades ele tentava esconder de seus conhecidos o que estava acontecendo, poderia perder o emprego, podiam achar que ele estava enlouquecendo. Na segunda realidade, ele tinha até marcado consulta com um psiquiatra. Na primeira realidade, o seu “eu” achava que isso seria inútil. Começou a escrever nos bilhetes mensagens sugerindo a leitura de livros sobre a “teoria dos muitos mundos” , “universos paralelos”, “ princípio da incerteza na física quântica”. O seu “eu” do segundo mundo não aceitou a sugestão das leituras mas o primeiro “eu” acabou mergulhando no assunto e lendo também livros sobre as teorias de Hugh Everett, Niels Bohr, Copenhage, Heisenberg, etc… De nada adiantava, no entanto. Os bilhetes estranhos continuavam nas duas vidas e na primeira vida, aquelas leituras passaram a ser apenas um passatempo, um gosto que ele adquirira sem nem entender por quê. Nos dois mundos, Mark estava caminhando para um estado de loucura. Os poucos momentos de lucidez, na hora da “viagem” não estavam ajudando a resolver, ao contrário, estavam criando problemas nos dois mundos. Quando ele não fazia a viagem noturna de trem, a realidade em que ele estava naquele dia se prolongava mais, como nos finais de semana, por exemplo.
A chegada de John: o paralelo 38
Foi aí então que algo realmente diferente aconteceu na realidade 2 onde Mark acabara de chegar e entrar no estágio de consciência dupla. Naquele dia Helen não tinha vindo. Após alguns instantes, alguém veio do fundo do vagão e sentou-se a seu lado. Um senhor de uns sessenta anos, de cor negra.
-Acredite, Mark, eu sei o que você está sentindo…
Mark achou que ele se referia a seu aspecto físico, talvez estivesse pensando que ele usasse drogas.
-Não se preocupe, estou bem.
-Mark, eu sei de tudo, eu tenho o mesmo problema.
-Problema? O que você quer dizer com isso?
-Suas viagens de um mundo para outro…escute, temos pouco tempo. Não adianta muito porque você vai se esquecer. Na próxima vez que nos encontrarmos talvez possamos fazer alguns exercícios mentais para guardar algo em sua memória após o “transe”. Mas mesmo assim, você só vai se lembrar numa outra vez como esta, não durante o dia. No momento você não está se lembrando nem desse mesmo momento ontem.
Enquanto ele falava o coração de Mark disparava. Finalmente alguém para compartilhar seu drama. E mais: alguém que sabia mais do que ele.
-A propósito, Mark, meu nome é John. Você já deve ter me visto neste vagão anteriormente.
Era verdade. Agora Mark se lembrava. De vez em quando um senhor, geralmente usando um casaco cinza, viajava naquele trem. John explicou que aquilo não era coincidência. Aquele trem, naquele horário, passava pelo paralelo 36. Era uma região em que as sub partículas atômicas sofriam uma disfunção que poderíamos chamar de cósmica. Só acontecia num determinado horário. Algumas pessoas especiais como ele e Mark também tinham em suas moléculas sub partículas que formavam uma espécie de ressonância com o ambiente. John explicou que todas as pessoas existiam em diversas realidades, inúmeras, com pequenas ou grandes alterações. Somos nós mesmos mas as realidades são diferentes, porque pequenos detalhes causaram mudanças em cada uma delas. Havia, no entanto, uma força que segurava todas as ralidades dentro de um mesmo parâmetro para que elas não se diferenciassem de uma maneira absoluta. Cada eu de um mesmo indívíduo vivia em todas as realidades mas só tinham consciência de uma. Por um motivo não explicado, naquela região, num determinado momento , acontecia algo que fazia com que alguns cérebros ficassem sintonizados em mais de uma existência. Algum tempo passa, explica John, e o cérebro se fixa numa das duas, geralmente na que você não estava antes do episódio.
-Existe solução?, perguntou Mark meio desesperado…
-Um tanto drástica, mas existe.
Mark pensou consigo mesmo, o que poderia ser mais drástico do que a própria situação em que estava.
John acentuou para ele que não haveria nenhum problema se ele absolutamente não se lembrasse das duas realidades ao mesmo tempo. Aqueles momentos de duplicidade de consciência logo após o sono profundo é que causavam a necessidade de entendimento, os bilhetes e tudo isto acabava interferindo nas duas realidades. John então falou que ele não deveria escrever mais nada. De qualquer forma, com toda aquela agitação, certamente ele não tivera tempo de escrever nada. John estava falando, falando, foi ficando meio distante. Mark, então resolveu interrompê-lo para fazer uma pergunta.
-John…
Mark então não conseguia entender o que estava acontecendo. Por que ele estava ali, chamando um estranho de “John”, alguém que estava quieto e não tinha lhe dirigido a palavra. Mark acabara de se esquecer de tudo. Outro dia, quero dizer outra noite, não se lembrava de nada. Que coisa estranha, por que ele estava dirigindo a palavra para aquela pessoa? O “John” que nessa realidade provavelmente tivesse outro nome, olhou para ele com surpresa, levantou-se e saiu. Mark não conseguia entender porque estava ali falando com um desconhecido.
A solução de John
Naquele dia Mark não encontrou bilhetes no bolso. Jogou fora alguns antigos que encontrou. Lembrou-se, no entanto, que estava tendo “problemas com a cabeça”. Algumas semanas se passaram estáveis e nada de especial aconteceu, além das idas e voltas. Viu umas duas ou três vezes o John mas nada veio a sua mente.
Numa sexta-feita à noite, logo após o trem passar pelo ponto “quântico” como John o nomeara durante o breve encontro, Mark, após o torpor normal de suas transferências, notou que um senhor negro acenava para ele do banco normalmente ocupado por Helen. Rapidamente falou para Mark que, mesmo ele não se lembrando, eles já haviam conversado. Mark tentou interromper, fazer perguntas, mas John fez um sinal com a mão que significava que era para ele parar e escutar. Falou então algo que não tinha falado da primeira vez. Que o único jeito de sair daquela situação era eliminar uma das realidades, ou seja o Mark teria de morrer na segunda realidade. Explicou que não poderia ser suicídio. Foi o que ele, John, tinha feito. Ao invés de eliminar uma das realidades, ele criou outras mais e pior que isso ele tinha consciência das outras, pelo menos algumas, ao mesmo tempo. Era um verdadeiro inferno existencial. Agora, o problema estava resolvido, pelo menos em parte. Ele agia de maneira tão estranha na maioria delas que acabou sendo internado ou sendo tratado com drogas fortíssimas. Numa das realidades, estranhamente, ele tinha se deslocado um pouco no tempo. Tinha retroagido algumas horas. Além dos problemas que já tinha, nesta realidade ele tinha o conhecimento do que iria acontecer mas não o poder de mudá-lo. No entanto, ele já tinha a resposta para seus problemas. Primeiro iria ajudar Mark e depois iria de encontro a seu destino. Fez então uma pergunta para ele:
-Você entende que um dos “Marks” precisa morrer? Você entende que, ao mesmo tempo, não pode cometer suicídio?
Mark concordava com tudo. Ele estava entendendo.
-Eu preciso eliminar você, aqui, nesta realidade, para que você possa viver em paz na outra. Você entende? Só vou fazer isso se você concordar, é uma questão de consciência.
Por mais absurda que fosse a situação, por mais que Mark não quisesse aceitar essa hipótese, ele entendia que aquilo que John estava sugerindo era o absurdo tentando por ordem dentro do caos. Fez então sim com a cabeça diversas vezes.
John então explicou que havia pouco tempo, que teria de ser outra vez. Ele podia sentir que Mark “estava indo embora”. De repente Mark viu-se olhando para um senhor negro e não entendia por quê. O senhor também olhou para ele meio interrogativo e cada um voltou para o que estava fazendo antes. Mark já havia esquecido tudo novamente.
Adeus, Mark 2
Três semanas se passaram e Mark estava bem na primeira realidade enquanto na segunda havia sido diagnosticado com paranoia pelo seu psiquiatra. Foi então que John encontrou as condições ideais para encontrar Mark novamente. Dessa vez quando Mark se deu conta de que tinha acabado de chegar da viagem, notou imediatamente um senhor negro, de uns sessenta anos, na ponta do vagão, perto da porta. Tinha uma vaga, muito vaga , sensação de que o vira antes. Viu que ele acenava e fazia sinais para que Mark viesse até ele. Relutou um pouco mas depois levantou-se e dirigiu-se até a outra extremidade. Quando chegou perto, John lhe disse:
-Mark, rápido, rápido, nosso tempo está passando.
Mark não estava entendendo mas sentia um confiança sem explicação no estranho e por isso obedeceu.
-Mark, você não se lembra de nada, eu sei, mas eu estou salvando sua vida.
Ele ainda não estava entendendo mas estava ouvindo.
-Preciso que você venha aqui entre os dois vagões e olhe para os trilhos.
Nesses trens, os espaços entre os vagões eram abertos e podia se ver o movimento rápido do trem comendo a distância. Mark obedeceu, foi para a beirada e olhou para baixo. Nesse momento, John deu-lhe um vigoroso empurrão para fora da composição. Mark ainda sentiu o barulho fortíssimo das rodas, o seu próprio grito de espanto e imagens do seu dia percorreram pela sua mente como um raio. Viu-se primeiro imergido numa grande escuridão e depois numa grande luz. De repente estava de volta no banco do trem, Helen a seu lado, falando dos seus planos para as férias da faculdade. Não sabia de mais nada e essa era a única realidade que tinha, nada mais o afetava. Não sabemos nada mas provavelmente na outra realidade alguém tinha encontrado um corpo e uma investigação policial estava ocorrendo. Mas que importa? Agora havia só uma vida que importava. A lembrança daqueles bilhetes tontos que escrevera quase de todo se desvanecera. Provavelmente o stress do trabalho havia provocado aquelas ações, talvez tivesse sido uma tentativa de fuga da realidade. Como disse, que importa?
Três dias depois, quando entrava no trem, ansioso para encontrar Helen, notou que aquele senhor negro que de vez em quando viajava naquele vagão, acenou sorridente para ele. Não entendeu por quê, mas educado que era, respondeu com um sorriso…
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