Papa-Figos

Ele chegou vindo da direção do sol poente, que presenteava todos os que o aguardavam com um magnífico arrebol, coroando o horizonte daquela planície descampada ao lado do colégio. As crianças saiam naquele exato momento em direção a suas casas, após uma tarde de aulas. Seu semblante era simpático, a longa cabeleira vermelha era ainda mais realçada contra o sol poente atrás dele. Trazia balas, doces, brinquedos e guloseimas, e as histórias maravilhosas que começou a contar reuniu logo uma roda de crianças em volta para ouvi-lo atentos. Ele descreveu mundos subaquáticos, pedras falantes, árvores que guerreavam e protegiam as antigas florestas que, em suas próprias palavras, "cobriam isto tudo em volta que vocês veem agora, ocupados por feios prédios cinzentos". A conversa era empolgante, e muitos simplesmente se esqueceram de voltar para casa: permaneceram lá, suportando um pequeno frio nem tão intenso assim (naquele mês de julho o inverno estava realmente bastante ameno!), Se empanturrando de açúcar e ouvindo aquelas histórias incríveis, de um tempo tão antigo que nenhum deles era capaz de imaginar.

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"Mais três garotos estão desaparecidos. Até o momento a polícia não tem nenhuma pista. Descarta-se a ideia de sequestro, já que até o momento os desaparecidos são de famílias de classe baixa e média-baixa, sem grandes recursos financeiros, o que elimina o resgate como possível motivação dos crimes"

Dona Zélia ficou realmente preocupada com o noticiário da TV local. Ela inclusive conhecia a mãe de um dos desaparecidos. Não seria melhor que o filho não fosse à escola pelo menos hoje? Ou enquanto durasse esta ameaça?

- Cadu, toma cuidado filho! Não fale com nenhum estranho.

- Relaxa, mãe! - respondeu no típico tom de um pré-adolescente, seguro de que o mundo lhe pertencia. - Eu sei me cuidar!

- Não vai sair por aí...

- Mãe, tá cheio de polícia aí fora! Ninguém vai ser louco de tentar nada!

- Saindo da aula, venha direto pra casa!

- Ah, mãe! Não sou mais criança.

Enquanto Cadu passava pelo portão de casa, Dona Zélia tentou reforçar, assustando o garoto:

- Você sabe, direto pra casa, hein! Senão o Homem-do-saco...

- Ah, Mãe!!! Brincadeira, né? - joga a mochila do lado direito do corpo e sai indignado em direção à escola.

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"Minha mãe tem cada uma!", pensava Cadu, deixando a sala de aula em direção ao portão de saída do colégio. "Homem-do-saco? Ela acha que tenho quantos anos? Tenho doze, caramba! Já sou grande! Isso me assustava quando eu era criança. Agora não assusta mais!"

Saindo dos portões do colégio, vê uma rodinha de moleques a certa distância, no descampado ao lado. "Vou só dar uma olhadinha", pensou, incapaz de conter sua curiosidade. O rosto animado do amigo Tico chamando deu-lhe um empurrãozinho a mais:

- Chega aí, Cadu! - ele comia uma barra de chocolate, e o rosto parecia bem animado - Esse cara aqui está contando cada história incrível! Você tem que ouvir! - olhando bem, Cadu concluiu que o amigo estava bem mais animado que o normal!

- Quer um doce? - oferece o estranho rapaz de cabeleira vermelha, enquanto Cadu tenta educadamente recusar.

- Agora não! Depois!

Os olhos do estranho parecem brilhar.

- Muito bom, garoto! Muito bom! Você é diferente dos outros...

E continua contando as histórias para uma plateia vidrada, incapaz de piscar os olhos.

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"Dois corpos foram encontrados!", noticiava um plantão do jornal local, interrompendo a novela que Dona Zélia assistia atenta. "Os dois garotos, desaparecidos na semana passada, foram encontradas sem o fígado. A polícia federal já foi acionada, e trabalham com a hipótese de tráfico internacional de órgãos. Os outros três garotos desaparecidos ontem ainda não foram localizados..."

- Cadu! Cadê o Cadu? Onde está meu filho? Já deverias ter chegado!

- Calma, mulher! - Seu Mauro acabara de chegar, e tentava tranquilizar a esposa. - Não vá pensar besteiras! Ele deve estar aprontando alguma com os amigos. Daqui a pouco ele chega!

"Ainda é um mistério o motivo de apenas os fígados serem removidos, preservando-se intacto todos os outros órgãos. Segundo o investigador do caso, o Agente da Polícia Federal Afonso Chagas, isto não faz parte do 'modus operandi' de traficantes de órgãos, que normalmente tentam aproveitar o máximo possível de suas vítimas."

- Ouviu? Ouviu isso? Vou ligar para a polícia agora!!

Ela tentou. Várias vezes! Mas as linhas estavam todas congestionadas, como era de se esperar naquela situação.

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Cadu não sabia ao certo o que o convenceu, mas caminhava agora lado a lado com o estranho. Foram duas, três horas ouvindo aquelas histórias maravilhosas? Não sabia ao certo, mas o fato é que era noite fechada de inverno agora, o sol já havia descido o poente a muito tempo!

- Você não gosta muito de doces, não é mesmo... qual seu nome?

- Cadu!

- Cadu... - repetiu o estranho. - Nome bonito!

Ele ainda se lembrava do apelo do amigo Tico, agora vermelho como camarão e visivelmente alterado. O que havia naqueles doces? "Não vai, Cadu! Sua mãe vai ficar preocupada!" Mas para ele eram todos um bando de medrosos. O estranho havia falado de uma festa mágica. Mais que isso, garantiu que haveriam garotas lá. E o rosto do estranho inspirava tanta confiança que o garoto o seguiu sem medo. Cadu, o destemido, que não tem medo de nada! Agora começava a se arrepender... mas seria incapaz de fazer feio perante o estranho.

- Não é muito longe, mas tem uma boa subida! Está bom das pernas?

- Vamos lá! - disse o garoto confiante, cheio de coragem.

Ele sabia que não deveria subir o morro, ainda mais com um estranho! Mas iria mostrar fraqueza? Lógico que não! E foi assim que ele acabou se perdendo em meio aos labirínticos becos daquela favela, acompanhado de um estranho que o encorajava o tempo todo.

- Relaxa, comigo você está seguro! Você nem imagina o que existe onde estou te levando!

Seguiu morrendo de medo, mas confiando no novo amigo.

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- Ah, graças a Deus! É meu filho, ele sumiu! Faz horas que devia ter chegado do colégio! Estou desesperada!

- Calma, senhora! Conte-nos tudo: quem é, de que colégio, desde quando desapareceu, com quem estava...

- Este traficante de órgãos! Sei que ele pegou meu filho! Que eu faço? Que eu faço?!!

- Não vamos nos precipitar, senhora!

- Eu disse para ele não ir pra escola! Eu disse!! - e começa um choro convulsivo. Seu Mauro precisa tomar o aparelho telefônico para continuar a conversa com o atendente da polícia.

- Minha mulher está incapaz de continuar, eu lhes dou os detalhes.

- Por favor, senhor...

- Mauro!

- Senhor Mauro, qualquer informação nos será útil.

- Então... nosso filho costuma sair 17:30 do colégio, e em no máximo 15 minutos está em casa. Mas até o momento... - agora é ele que começa a soluçar.

- Fiquem calmos! Mandaremos uma viatura até aí imediatamente. Podem fornecer o endereço?

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- Já tomou cerveja, Cadu?

- Lógico que não! Por quê?

- Só curiosidade! Você é bem novo, né?

Continuam caminhando, subindo ladeiras cada vez mais íngremes. “Mesmo alpinistas teriam dificuldade em subir aqui”, pensa Cadu.

Olha para o abdômen do garoto.

- Você não tem barriga dágua também, né?

- Que é isso?

O estranho olha abarriga retíssima do garoto:

- Esquece! Você não tem...

Depois de atravessarem becos tortuosos, chegam no alto do morro. Uma grande pedra negra se ergue no centro de uma espécie de praça, rodeada de construções mal acabadas de alvenaria e algumas de madeira.

- É aqui!

- Aqui? - estranha Cadu.

- Você precisa confiar em mim agora, Cadu. Nós vamos entrar!

- Na pedra?

- Sim, na pedra! Você acredita em Mágica? - remexe seu bolso, e tira uma pequena bolota esverdeada dele. - Mas antes você tem que tomar isto aqui! Para entrar!

Cadu olha desconfiado. Seria educado recusar?

- As pessoas normais não veem a entrada. Procuram, procuram... mas não encontram nada. Porém ela existe! Mas você precisa tomar isto, garoto! Para ver onde ela está.

Cadu olha em volta. A certa distância, vê uma rodinha de moleques fumando qualquer coisa mal-cheirosa. Pensa: "Vou fingir que tomo, e depois eu cuspo". Assim pega a bolinha esverdeada oferecida pelo estranho e a leva à boca. Mesmo sem engolir, o efeito surpreendente é mágico! Vê claramente uma abertura levando para dentro da rocha! Como não vira antes? Acompanhando o estranho de cabelos ruivos, ambos entram na pedra e encontram uma escadaria em seu centro talhada em rocha, que começam a descer.

A paz jamaicana daquela roda é interrompida por uma observação inesperada.

- Cê viu aquilo, maluco??? - um dos integrantes da rodinha, de pele bem negra e com um boné vermelho vivo sobre a cabeça, dá o alarme. - Os caras entraram na pedra!!! Entraram na pedra, cara!!!

- Ah, Perê! Nem vem com história!

- Sério! Eu vi!

- Para de inventar coisas e passa logo esse cachimbo aí! Esse fumo tá bom mesmo...

Quando o moleque se levanta da roda num pulo, fica claro que ele tem uma única perna. Salta em direção à rocha, passa as mãos incrédulo sobre a superfície negra.

- Eles entraram por aqui! Eu vi! Juro!!

Mas só havia uma parede de pedra sólida. Todos começam a rir.

- Cê ta bem lôco mesmo, Perê! Acho que já fumou demais!

- Eu vi! Eu vi! Juro!

- Ah, Perê! - se impacienta um da turma. - Deixa de lorota e volta aqui, põe logo este cachimbo na roda de novo!

Saci Pererê, vulgo Perê, volta com a pulga atrás da orelha. Que ele viu os caras entrarem na pedra, isto ele viu! Fumava a bastante tempo, sabia muito bem separar o que era alucinação do que era real. E o que ele viu era real! Os dois caras, um garoto e um rapaz de pernas tortas, literalmente ENTRARAM na pedra!

...

A descida era interminável! Cadu ainda não tivera chance de cuspir a bala de estranho sabor. Não era doce, nem azeda, nem salgada, nem amarga... mas tinha um gosto! Ele não saberia explicar qual, mas tinha! Uma palavra lhe surgiu na cabeça. Ele tentou afastar como absurda, mas não conseguiu: a bala tinha um gosto de “verde”! Gosto de “verde”. Sim, agora estava claro: a bala tinha gosto de verde!

A descida só não se dava em completo breu porque uma luz alaranjada parecia vir do fundo daquele poço, ladeado pela escada em espiral. O estranho vigiava Cadu o tempo todo, desconfiado de algo. Enfim Cadu aproveitou um momento de distração e cuspiu a "bala verde". Mas, embora não a tendo engolido, uma sonolência seguida da clara impressão de que as paredes se moviam e respiravam indicava que o pouco do que consumiu fez algum efeito.

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O novo dia mal havia amanhecido quando o investigador Afonso subiu o morro em busca de informações. Os amigos do garoto deixaram claro que ele e o desconhecido ruivo seguiram em direção à favela! Como era de se esperar, na favela ninguém viu nada, ninguém sabia de nada... Um garoto e um rapaz de cabelos ruivos? "Imagina, doutor! Por aqui não passou ninguém assim não..."

Mas um moleque de pele bem negra usando boné e bermuda vermelhos se apresentou. Na verdade, quase é impedido pelos amigos, aflitos: "Vê lá o que vai falar, cara! Ele é polícia, entendeu? Polícia! Mango! " Mas o moleque se apresentou ao investigador apesar de todas as recriminações dos amigos. Só que seus olhos vermelhos injetados fizeram com que o inspetor não desse, logo de cara, muita importância ao que ele porventura teria para dizer. Ainda assim, ouviu! No pé em que estavam as coisas, qualquer informação era informação.

- Eu vi bem assim, doutor! Um menino e um rapaz de cabelo vermelho! Eles entraram na pedra!

Entraram na pedra? Que história era esta? Que alucinação louca aquele “nóia” veio lhe descrever? Olhou os olhos vermelhos do moleque. Seria ocasião de dar logo um flagrante? Melhor não, havia algo muito mais importante para resolver. Continuou ouvindo:

- Pedra? Quem? Que pedra? - com sede, pega uma garrafinha com um resto de água ao fundo. Havia falado com muita gente, não havia pregado o olho desde que aquela mãe avisou de um novo desaparecimento. A madrugada inteira acordado, falando com possíveis testemunhas. Estava com a boca seca.

- O rapaz mais velho tinha pernas bem tortas... - Perê olha triste sua perna única, mostrando que isto ainda não estava superado, e completa: - Mas pelo menos ele tinha duas... Tortas ou não, ele tinha duas...

- Tortas? Como assim?

O investigador abre a garrafa, toma o último gole, e coloca a garrafa plástica vazia sobre o capô da viatura. Perê olha apavorado para a garrafa. Vê-se claramente terror em seus olhos! Corre como ninguém seria capaz de imaginar que alguém de uma única perna fosse capaz de correr. Afonso faz uma cara de "quê foi" para os amigos do moleque, que estavam em volta observando tudo.

- É uma maluquice do Perê, doutor!

- Maluquice?

- Um desses negócios de psicólogo, sabe? Como chama mesmo? Fobóide, fobina...

- Fobia! - completa Afonso, querendo demonstrar cultura.

- Isso aí! Fobia!

- Fobia de quê?

- Uma coisa bem doida mesmo! O Perê morre de medo de garrafas vazias! Foge delas como o diabo fugindo da cruz!

Comprovado: estava lidando com um maluco! Tratou logo de descartar o depoimento inútil.

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Cadu acorda dentro de um saco de estopa, pendurado num gancho nas paredes do fundo daquele poço.

- Ele recusou mesmo os doces?

- Sim senhor!

- Ótimo! Bom trabalho! Sabe como açúcar me faz mal, não é mesmo?

Ele ainda não controla plenamente seus músculos, mas pode ver claramente a cena macabra pelas aberturas do saco. Meu Deus, por que será que ele não conseguia mover um único músculo? Percebeu estar numa grande câmara no fundo daquele poço com escada em espiral. Há uma espécie de bancada de pedra no centro, e um garoto sobre ela, com o abdômen exposto. Viu que estava acordado, mas... por que não reagia? Provavelmente pelo mesmo motivo que ele mesmo não conseguia mover um dedo.

- Você sabe muito bem que eu não sou sádico, nem perverso, não é? Simplesmente não tenho escolha, entende? Preciso fazê-lo!

- O senhor paga, eu faço meu serviço: te trago os garotos. Nada mais me interessa! Não estou aqui para julgar nada! Executo o trabalho pelo qual fui pago para fazer, nada mais do que isso! Na verdade, não sinto um pingo de simpatia por esta gente, que fez minha floresta desaparecer...

- Sei sei... mas queria deixar isto bem claro, porque... Bom, vamos lá!

É quando Cadu vê as unhas. Que unhas medonhas! Afiadíssimas, como unhas de ave de rapina!

- Traficante de órgãos... que absurdo! Que rótulo ridículo! Só idiotas não sabem que o fígado é uma glândula hipertrofiada, e não um órgão!

Com as unhas afiadíssimas, corta o abdômen do garoto na diagonal. De cima para baixo, entre o peito e o umbigo, seguindo as costelas em direção ao hipocôndrio direito. O pobre garoto está visivelmente horrorizado, mas não demonstra sentir dor. Enfiou a mão por baixo das costelas, e tirou de lá uma massa arroxeada, ainda pingando sangue. Levou à boca, deu uma boa mordida, mas cuspiu longe o pedaço arrancado.

- Argh!!! Este está estragado!!

Olhou com fúria o assistente de cabelos ruivos?

- Quantos anos tinha este garoto? Você perguntou se ele bebia?

- Senhor, eu... posso ter esquecido...

- Incompetente! - joga o fígado recentemente extirpado do garoto na parede. Vendo que o garoto sangrava sem parar, explode: - Fecha logo este aí, pra não fazer muita sujeira!!! Odeio cheiro de sangue!

Obediente, o rapaz ruivo começa a costurar o corte enorme no abdômen do garoto.

- Me passe aquele outro.

É quando Cadu percebe existir outro saco pendurado ao seu lado. E ele agora sabia muito bem qual era o conteúdo dele... O primeiro garoto (agora claramente sem vida) é retirado do "altar satânico". Um garoto novo é colocado no lugar, igualmente atordoado. "Por quê eles não fogem??", Cadu se pergunta. Mas não é a pergunta correta. O que ele deveria perguntar, na verdade, deveria ser: "Por que EU não fujo?"

O ritual macabro se repete, iluminado por aquela luz alaranjada diabólica que parecia emanar das próprias paredes do lugar. Ele crava as unhas no lado direito do garoto, retira um fígado de cor arroxeada, leva à boca, e diz, satisfeito:

- Ah, este está maravilhoso! - Cadu percebe claramente agora os dentes afiados do carrasco, tintos de sangue vermelho. - Como eu estava faminto!! - esfrega o fígado no rosto com satisfação insana.

Quando se pergunta mais uma vez, apavorado, "Por que não fujo?", Cadu começa a perceber que pode controlar parcialmente seus movimentos.

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Incapaz de conseguir qualquer informação útil na favela, o investigador volta para o último lugar em que o garoto fora visto. O sol já havia nascido a alguns minutos. Dezenas de amigos do Cadu, preocupados, já se encontravam no local para contribuir com qualquer ajuda que fosse possível oferecer, qualquer informação pertinente que pudesse ajudar o investigador. Muitos se decepcionaram com a figura de Afonso, esperando de alguma forma acompanharem o trabalho de algum tipo de “Sherlock Holmes”. Era o ídolo de infância de Afonso! O que o levou a seguir a atual carreira. A realidade foi cruel... Vários foram os golpes que recebeu ao perceber, caso após caso, que a realidade não era assim tão “bonita”, interessante e previsível por indução lógica quanto a ficção...

- A gente estava aqui, doutor! - de fato, os rastros em forma de roda na terra não deixavam dúvidas.

- Como era ele? Este estranho?

- Um rapaz de cabelos BEM vermelhos! - a cabeça de Tico ainda doía muito, e o inspetor, observador perspicaz, não deixou de notar isto.

- Ele ofereceu algo a vocês?

- Alguns doces, mas o Cadu não comeu!

"Típico!", pensou Afonso. "Traficante tentando conquistar novos usuários oferecendo guloseimas recheadas de drogas para os garotos! Achava que a moçada de hoje estava mais esclarecida, mas parece que não..." E, do fundo da alma, emerge aquele ódio: "Ah, se eu pego este canalha!!" Mas, apesar de tudo, ele realmente não conseguia ver ligação nenhuma entre aquilo e tráfico de órgãos...

- Pra onde mesmo eles seguiram?

- Pra direção da favela, doutor!

Ele seguiu aquela direção, procurando pegadas. A terra era seca e dura, de forma que ele não teve sucesso. Continuou seguindo aquela direção. Enfim encontrou o que queria: terra úmida! Se procurasse direito, encontraria o que queria!

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- Me traz o saco novo, e joga estes outros dois aqui junto com o de ontem! No lugar combinado, você sabe onde!

Cadu tremeu sem parar: o próximo saco era ele! A tremedeira não passou despercebida!

- Você deu a verdinha pra ele?

- Sim, senhor!

- Viu ele engolir?

De novo, o ruivo percebe que provavelmente tinha feito besteira.

- Ele pode ter cuspido... sem que eu visse...

O urro desumano deixou até o ruivo de cabelos em pé!

- Traz assim mesmo, incompetente! Estou dois dias em jejum! Você só me trouxe fígados estragados até agora...

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Haviam pegadas recentes naquele terreno argiloso. Levavam à favela, indicando que sua primeira intuição estava correta. Mas havia algo muito estranho aqui... Eles caminhavam lado a lado, não é? De fato haviam marcas de tênis indo em direção ao morro. Haviam mais pegadas ao lado destas. De pés descalços. Acompanhavam as primeiras? Bom, de fato eram paralelas. Só que seguiam direções opostas...

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Cadu tentou resistir. Mas, fraco, acabou permitindo que o rapaz ruivo lhe enfiasse outra "verdinha" goela abaixo. O fato dele ter cuspido a primeira só fez o efeito durar menos tempo, mas ele ainda estava atordoado o bastante para não conseguir resistir. engoliu a segunda sem resistência. E sem perceber, era ele quem estava agora deitado sobre aquele altar do demônio.

- Senhor, por favor, sei quem você é! Vamos conversar! - ele ainda controlava parcialmente os músculos faciais.

- Garoto. - começa a dizer com frieza o Papa-Figos. - Não costumo conversar com minha refeição...

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- Não sei o que viram. - começou o investigador. - Mas as evidências das pegadas provam que o garoto não saiu acompanhado! Os garotos foram drogados, estou quase certo que este "acompanhante" que afirmam ver foi pura alucinação!

- Mas EXISTIU alguém, não é, inspetor?

Ele ficou furioso.

- Agente da Polícia Federal, por favor!

- Certo, Agente Afonso! Me desculpe...

- Mas é certo que tal estranho VEIO da favela, as pegadas provam isto! Vêm desta direção!Para onde ele foi depois?

Um policial chega com a notícia.

- Encontramos mais pegadas, pés descalços que combinam com os primeiros!

- Ótimo! Pra onde foi o sujeito?

- Foi na direção oeste!

- Vamos lá! Sigam as pegadas! Vamos encontrar este canalha!!!

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- Papa-figos! Minha avó costumava me contar estas histórias... - com muita dificuldade, Cadu tentava coordenar suas ideias. - Papa-figos, papa-figos, papa... - o controle começou a lhe escapar rapidamente, impregnado como estava seu corpo pela substância alucinógena e anestesiante daquela bala verde.

Seria efeito da droga, ou Cadu viu uma lágrima de arrependimento descer pelo rosto de seu carrasco? Tanto faz agora, ele não iria desistir de seu intento. De fato Cadu estava anestesiado. Não diria que não sentiu nada: sentiu sim, mas não era dor. Parecia mais como se estivessem rasgando um pano sobre sua pele, e não que estavam rasgando sua própria pele. Mesmo não sentindo nada, era incapaz de ver a própria barriga sendo aberta. Não podia aguentar a terrível visão. Tombou a cabeça para o lado. Foi quando viu os pés do rapaz de cabeleira vermelha. Estaria vendo coisas? Não, ele estava bem certo do que vira: os pés do rapaz apontavam para TRÁS!!!

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- Dona Zélia! Lamentamos dar esta notícia, mas... encontramos outro corpo! Acreditamos que seja teu filho... Meus pêsames, senhora. Mas precisamos que reconheça o corpo. Sentimos muito...

Mesmo padrão dos anteriores: o corpo apareceu sem fígado! Mesmos responsáveis, ao que tudo indicava! Mas, ainda agora, completo breu! Nenhuma pista..

- O Papa-Figos! Foi o Papa-Figos!!

Seis fortes policiais mal conseguiam segurar a mãe ensandecida pela dor. Que agora deixava o necrotério.,

- Minha mãe sempre falou dele! O Papa-Figos pegou minha criança! Ah Deus! Que dor!!!! Que dor!!!

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- Nossa presença aqui começou a ficar perigosa, meu caro Curupira!

- Fiz algo errado, Senhor Papa-Figos?

- Muita coisa! Mas isto não importa agora... - seu estômago roncava. - Precisamos procurar rápido novos ares. Este Rio de Janeiro é povoado demais, precisamos fazer isto em cidades mais calmas, do interior... Onde os sumiços não irão repercutir tanto assim.

- Bom... continuo contratado, não é?

- Lógico que sim! Apesar das besteiras imperdoáveis da última vez, ainda confio muito mais em você para fazer isto do que em qualquer outro. Aquele Pererê sem noção por exemplo, que quase nos entregou... Acha que o trocaria por ele para fazer o serviço?

Curupira se sentiu lisonjeado.

- Estou ao seu dispor, Senhor Papa-Figos!

Ambos abandonam o morro, em busca de uma nova cidade do interior do Brasil mais segura para Papa-Figos continuar satisfazendo sua fome implacável por fígados saudáveis de garotos jovens...

* FIM *