Relojoeiros Cósmicos - Parte 1
Chegamos longe, sem dúvida alguma! Muito mais longe do que poderíamos imaginar alguns séculos atrás. Mas não tão longe quanto desejávamos... Dominamos nosso sistema solar? Sim, há muito tempo!!! Era simples questão de querer, para sairmos do sistema binário plutão-caronte e em questão de horas pousarmos no infernal mercúrio. Qualquer um fazia tal viagem hoje em dia.
Alfa de Centauro? A pouco mais de 4 anos luz? Viagem corriqueira! Estrela de Barnard? Colônia de férias para quase todo mundo! Havíamos dominado a hiperpropulsão, distâncias de dezenas de anos luz já eram corriqueiras! Mas ainda estávamos aprisionados à relatividade geral! Uma viagem para um sistema a 20 anos luz demoraria, no mínimo, 20 anos para quem ficasse estático no nosso sistema planetário natal, nos aguardando! Na verdade, o dobro disto, pois era uma viagem de ida e volta! Vivíamos muito mais graças aos avanços da medicina, mas... 40 anos sempre eram 40 anos! Era hoje em dia muito comum que os avós voltassem de uma longa viagem a um sistema planetário remoto muito mais jovens que seus netos que haviam permanecido na terra, ou em uma de suas várias colônias do sistema solar...
Nos deparamos com outras civilizações nestas nossas incursões? Sem dúvida alguma! Mas a maioria num estágio evolutivo bem inferior ao nosso! Fomos, na verdade, grandes benfeitores, ajudando nossos vizinhos a evoluirem em décadas o que levariam alguns milhares de anos para atingir. Conhecemos também muitas em estágios evolutivos semelhantes. Algumas um pouco mais, outras menos... mas num equilíbrio saudável. Quanto a civilizações muito mais avançadas que nós? Nos deparamos com algumas delas. Ao menos achamos que sim. Mas elas sempre fugiam. Não pareciam muito dispostas a entrar em contato com estes seres primitivos, que se arrastavam pela galáxia submissos às limitações da relatividade geral, esperançosos em encontrar vez ou outra uma falha no tecido do espaço-tempo na forma de um raro buraco de minhoca, única forma de encontrarmos um atalho para distâncias que nossas primitivas tecnologias eram incapazes de nos levar pelo nosso próprio esforço.
Ainda assim, nunca tivemos a sorte de encontrar um atalho cósmico capaz de nos levar mais longe do que dos sistemas estelares localizados num braço desgarrado da via láctea, uma faixa de poeira embalada entre os braços principais de Perseu e Sagitário. Dos quais, a propósito, ainda estávamos longe de conseguir atinguir algum dos sistemas estelares. Mas continuávamos procurando por exoplanetas, e exosistemas. E no braço de Perseu encontramos um bem curioso. A ponto de valer a pena uma ousada visita...
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- Duas estrelas gigantescas, e 50% dos 300 planetas orbitam a primeira, enquanto os outros 150 orbitam a segunda!
- Quê? Um sistema binário com 300 planetas?
- A estrela vermelha tem o dobro do tamanho da estrela amarela, mas ambas descrevem um círculo perfeito em torno de um centro gravitacional comum, como se ambas tivessem a mesma massa.
- Diferentes densidades podem explicar isto, a vermelha pode ter mesma massa que a amarela, embora tenha oito vezes seu volume... Mas e os sistemas independentes girando em torno delas? Sem interferências? Como é possível colocar 150 corpor girando em torno de um plano de eclípitica que não interferem, apesar da proximidade, com outros 150 de um sistema vizinho...
- Aí é que está: não existe um plano de eclípitica... Uma das muitas particularidades deste sistema.
- Como assim?
- Os planetas não se formaram em torno de um disco de poeira primordial. Eles orbitam a estrela usando vários planos possíveis no espaço tridimensional! Não tentam seguir um plano ao redor do equador de sua estrela central, como todos os sistemas estelares que conhecemos até então! As orbitam de todo o círculo tridimensional possível em torno delas, sem um plano eclíptico preferencial.
- Mas isto é... inimaginável!
- Eu sei! Eu sei! Este sistema binário que descobrimos é mesmo bastante particular! Ainda nem te contei nada!
Eles se dirigiam rápido ao sistema estelar. Estavam a milhares de anos luz. Nenhum tripulante pensava em voltar à Terra: depois de três mil anos da viagem de ida evolta, o planeta natal estaria irreconhecivel! Todos a bordo da nave, agora a 97.3% da velocidade da luz, sabiam que era uma viagem só de ida até o braço de Perseu da via Láctea, para explorar aquele sistema planetário tão particuar!
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- Círculos perfeitos! - concluiu o tataraneto do astrônomo chefe original da expedição, pulverizado agora em simples poeira cósmica lançada a centenas de anos luz atrás. Seu cérebro permanecia copiado no computador central da expedição, mas... estaria mesmo vivo? Difícil responder... Viveu plenamente seus 300 anos de vida, mas foram insuficientes para presenciar o fim de sua jornada. Mesmo com o tempo dilatado pela alta velocidade, ainda era muito tempo! Forneceu a herança deste privilégio a seus descendentes.
- Órbitas circulares perfeitas! O sonho de Copérnico...
Longe de se esclarecer, aquele incrível sistema planetário ficava cada vez mais misterioso à medida em que eles se aproximavam. Todos os atuais habitantes nasceram no espaço mesmo. Ninguém tinha noção do que era um planeta, terra firme... Haviam ancestrais fundadores cujas personalidades eram preservadas digitalmente nos computadores da nave-habitat, mas muitos já se questionavam se suas existências eram mesmo reais ou apenas um simulacro muito bem programado de consciências já mortas a muito tempo. Seria correto mantê-los "pensando" dentro de dispositivos artificiais? Não seria cruel, algo equivalente há, séculos atrás, manter pessoas vivendo artificialmente numa vida vegetativa mantida por máquinas? Sim, de fato eles podiam interagir com os antepassados! As memórias estavam lá, eles reagiam, respondiam, aconselhavam... mas o que havia de real nisso tudo? O que garantia que não passavam de programas de computador muito bem elaborados para imitar a personalidade de entes que já haviam deixado de existir a séculos? Não seria para a "alma" deles um sofrimento sem tamanho serem obrigados a continuarem existindo artificialmente desta forma, como algoritmos mentais processados por uma máquina?
- Não vejo a hora de ver isto de perto, Jonathan...
- Vamos ver! Estamos acelerando, nosso tempo se dilata. Talvez estejamos bem velhos, com uns 500 anos... Mas vamos ver esta coisa coisa com nossos próprios olhos!
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Quanto mais se aproximavam, mais conheciam. E quanto mais conheciam, mais se surpreendiam! Mensagens à Terra original? Continuavam mandando como de costume. Mas nem faziam idéia se ela continuava existindo. E se receberiam os dados que enviavam insistentemente. Mas continuavam enviando. Isto não importava mais. eram agora cerca de 100 mil pessoas, naquele habitat móvel estendido. Seriam bem mais, se quase metade deles não tivessem decidido se estabelecer em sistemas estelares mais convencionais encontrados ao longo do caminho. Ninguém era obrigado a ir até o fim, estavam todos livres para parar no meio do caminho, se encontrassem algum sistema planetário interessante ao longo da viagem, ou mesmo desafiante, o que era grande estímulo para alguns aventureiros: quanto mais inóspito, melhor! Alguns dariam tudo para fugir daquela estabilidade esteril das naves (sim, eles precisaram aumentar a frota, usando o material que encontraram ao longo do caminho!). Mas grande parte estava mesmo decidida a encontrar aquele estranho sistema, a tempos batizado de Sistema Chronos. Por funcionar perfeitamente sem falhas a milênios, como verdadeiro relógio...
- A coisa fica cada vez mais estranha, mestre! - era como todos tratavam o astrônomo chefe, conhecedor dos sistemas planetários mais estranhos já encontrados. Mas nenhum se comparava ao Sistema Chronos...
- Planetas minúsculos com satélites de massa enorme orbitando-o em círculos perfeitos. É disto que você está falando, não é?
- Descobrimos algo mais desafiador ainda, mestre...
Ele já estava preparado. Aberrações à lei de gravitação universal de Newton já se tornaram comuns há tempos naquele estranho sistema planetário. Que mais poderia ser agora?
- É um satélite que orbita dois planetas...
- Orbita dois planetas? Você quer dizer que ele orbita o centro de massa destes dois planetas, não é?
- Não, mestre! Ele orbita mesmo os dois planetas, um de cada vez!
Isto era impossível! Insustentável pelas leis de gravitaçao universal de Isaac Newton. Nem a relatividade de Einstein conseguiria ajustar tal deturpação das leis naturais!
- Explique melhor, meu caro! Não estou entendendo...
- Uma lemniscata, mestre!
- Quê?!?!?!
- Uma lemniscata gravitacionalmente estável! Esta é a trajetória do satélite!
- IMPOSSÍVEL!!! Você sabe muito bem que isto é impossível!
- Saber eu sei, mas... eu vi! Ele descreve mesmo esta órbita! E é estável!!!
- Não pode ser! Não pode ser!!! - o velho astrônomo não se conformava! - Que parte do universo é esta na qual estamos entrando ?
... continua...