Voz de pato - Parte 3

A vida em Aqualang-15 corria como a de qualquer outra megametrópole do século XXII. Trens de levitação levavam seus habitantes para todos os cantos da cidade, enquanto enxames de hovercrafts congestionavam o céu artificial sobre nossas cabeças. Afinal, naquela atmosfera extremamente densa, eles podiam fazê-lo usando uma fração da energia dos hovercrafts convencionais, que se deslocavam na superfície do planeta à irrisória pressão de 1 atm. Comentei com meu primo que acreditava até ser capaz de levantar vôo, se sacudisse rápido meus braços como se fossem asas.

- Coitado do meu primo! Já está falando besteiras antes mesmo de ficar bêbado... - e rimos todos juntos da minha idéia absurda.

A "Casa do Azôto" não parecia grande coisa visto de fora. Uma estreita portinha, aparentemente pressurizada, no meio de uma parede metálica com uns caracteres desprentenciosos grafados em azul marinho acima dela. Nada mais... Ele encostou seu ID Card numa ranhura ao lado da porta e anunciou:

- Lugar para quatro pessoas, por favor!

- Maiores de idade? Posso ver os ID Cards deles?

- Lógico que sim, zé mané! Sou eu, caramba. Não está reconhecendo a voz? Eu mais meu primo da superfície e outros dois amigos. Todo mundo aqui tem mais de 21...

- Entrem rápido pra atmosfera não vazar!

A portinha se abre rápido, e nos apertamos logo numa espécie de câmara de descompressão. Pelo menos era o que eu imaginava... Perguntei, enquanto vi os três ajustarem algo na altura de seus pomos de adão.

- Vamos entrar num lugar de pressão diferente?

- Não necessariamente, primo. Atmosfera diferente, mas pressão igual. É aí que está a graça da brincadeira, hehehe.

Passamos por mais umas 4 câmaras intermediárias.

- Mas pra que tanta chatisse só para se entrar num boteco? - disse, percebendo que minha voz engrossava cada vez mais.

- Você já vai ver o boteco! - disse meu primo, com sua voz natural.

Atravessando a última porta que dava acesso à Casa do Azôto, meu queixo caiu! Lembram de uma tal de TARDIS daquela série clássica dos tempos dos filmes bidimensionais? Que era muito maior por dentro do que por fora? Pois foi exatamente o que senti ao entrar naquele ambiente de deixar qualquer um sem fôlego! Berrei:

- Cara, este lugar é fantástico!!!

Só então percebi minha voz extremamente grave e vi todo mundo rindo, repetindo: "Voz do Demo! Voz do Demo! Hehehehe".

- Primo, pode desativar aqui o redutor de oitavas!

- Como faço isso?

- Eu te mostro...

Mas pedi que esperasse um pouco. Era irresistível! Respirei fundo e então berrei o mais alto que pude, citando o trecho de uma obra daquele famosíssimo compositor clássico do século XX, Ozzy Osbourne:

- I... AM... IRONMAN!!!!!!

Foi uma gargalhada geral dentro do bar, enquanto meu primo me ajudava a reafinar o redutor de oitavas ao tom original de minha voz.

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As pessoas à volta conversavam animadas. Estavam todas já bastante altas! Um garçom, usando uma máscara de ár em frente ao rosto, nos indicou uma mesa. Todos os garçons daquele bar usavam máscaras! Por quê?

- O que tem de bom pra se beber aqui, primo?

- Água e refrigerante, hehehhee. - ele já ria à toa, parecia já ter tomado meia dúzia de cervejas.

- Um bar sem bebidas?

- E precisa? - riu de novo, de nada...

Olhei em volta. Eu próprio comecei a me sentir meio alterado. Mas como? Ainda não havia colocado uma única gota de álcool na boca!

- É o azôto, primo! Você sabe o que é azôto, né?

Não sabia. E nem tentei disfarçar.

- Não faço a mínima idéia...

Ele e os amigos ficaram espantados.

- Por que ele ainda não está bêbado, hein?

- Ele é da superfície! Respiram isso o tempo todo, devem ser mais resistentes...

- Resistente a quê, primo? - resolvi esclarecer de vez o mistério.

- Azôto, primo, é o nome antigo do nitrogênio! A atmosfera deste bar possui uma concentração de 50% de nitrogênio. Estamos todos aqui sofrendo de uma crise de... - e ri incontrolávelmente. - ... de narcose de nitrogênio, hahahahahah! Nitrogênio a altíssima presão, hehehehe!!! Interferindo na condutividade de nossas sinapses. Hahahaha!! Que doideira!!! Como isso é bom!

Um dos amigos dele, visívelmente alterado, berra:

- Garçom! Garçom! Tráz aqui uma laranjada pra gente! Hehehehehehe!!

De fato, como eu respirava N2 o tempo todo, era mesmo mais resistente a ele. Mas aos poucos o nitrogênio pressurizado começa a fazer efeito! Vou me alegrando, rindo de coisas estúpidas, ficando mais falante... um verdadeiro pileque gasoso!

- E isso não faz mal, primo? - minha face está corada.

- Nem dá resaca! Bom, nós e nossos antepassados sempre respiramos isto a milhares de milhões de anos, e nunca deu problema, hehehehee!!

- Mas, hahahhaha... - nem sabia mais do que ria. - Os primeiros aquanautas nao tentavam evitar isto?

- Eles estavam dentro de escafandros! Era arriscado ficar bêbado de nitrogênio numa situação tão arriscada. Mas aqui? Entre amigos? Num barzinho, jogando conversa fora? Hehehehe! Não tem perigo nenhum!

Acho que passamos horas ouvindo música, falando bobagem e tomando laranjada. Resolvemos ir embora. Ou fomos conduzidos para fora por seguranças forçudos usando máscaras de Nitroheliox-3 na frente da cara? Bem, nenhum de nós quatro consegue se lembrar direito do que houve...

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Algo sagrado em qualquer habitat humano, seja na terra, marte, lua, era o período claro-escuro de 24 horas. Em Aqualung-15 o céu artificial escurecia sempre às 18:00 do horário local. Era a noite do habitat. Por conveniência, correspondia ao fuso horário daquela região do Pacífico no fundo do qual se encontrava o habitat.

- Minha casa é aqui, primo! Você deve estar cansado da viagem.

Na verdade, estava mas não o percebia. Era o habitat mais curioso que havia visitado em toda a minha vida! Mas ele me convenceu.

- Amanhã caímos na água! Vou te mostrar uma fonte hidrotermal que existe aqui perto! Mas antes, precisamos descançar. Vocês dois aí, amanhã às 8, hein!!! Se demorarem, vamos sozinhos. Seus dorminhocos...

Me mostrou um quarto bem arrumado para mim, cuidadosamente preparado por um autômato da altura de um criado mudo.

- Dorme, primo! Com sorte, amanhã vamos poder entrar em contato com um ser fantástico!

- Quem?

- Surpresa! Uma espécie nova que começa a aparecer. Amanhã te conto...

Mas ele percebeu que não pregaria os olhos se ele não me desse ao menos alguma informação adicional.

- Tá certo, tá certo. Sei que você não vai dormir sem saber.

Me olhou mais uma vez, preparando o terreno.

- Primo, é possível que amanhã entremos em contato com um...

Faz um suspense até ridículo de tão dramático.

- Com um perfeito exemplo de um espécime dos novos Homo Aquaticus!