O Absoluto de Ártemis
Os passos ordeiros e impacientes de Isaac Wells ecoavam pela sala fulgente. Andava enquanto recitava para si, e para o computador central da nave, a nova música que havia composto. Enquanto não estava treinando ou trabalhando na nave, Isaac mantinha como hobby a composição de músicas e o deslumbre das fotos animadas de sua mulher. As músicas não eram muito boas, mas o mantinham ocupado e de certa forma orgulhoso. Essa falava sobre os grandes rios, vistos por ele somente em fotos e réplicas na estação espacial semelhante a uma cúpula em que morava com o resto da população humana. Haviam fugido da terra em busca do novo planeta, do novo lugar que poderiam chamar de “casa”. Wells havia nascido poucos momentos antes dessa fuga. Eram cerca de 20 gigantes estações acopladas a uma nave de comando. Isaac e sua mulher moram na décima primeira. Todos os moradores têm empregos relacionados à sobrevivência da humanidade, como: médicos, engenheiros, seguranças, militares, pesquisadores, cultivadores e muitos outros; Isaac era militar e Katherine Wells, sua mulher, médica.
Sua missão era de retornar a Terra, ver as condições atuais, e regressar com o relatório para seus superiores. Missão que o computador central da nave o relembrou antes de começar a sequencia de aterrissagem. Para lembra-lo que sua missão era de reconhecimento em um terreno muito hostil. A Terra havia sido devastada pela radiação que a Terceira Guerra Mundial havia deixado, fazendo com que as grandes cidades se lacrassem em gigantescas cúpulas, mantendo a vida e uma parte da condição da população local preservadas nos primeiros doze anos pós-guerra. As pessoas afastadas dos centros de cada país começaram a sofrer mutações e se adaptar ao habitat extremo. Até que no ano treze, a segurança dos centros foi comprometida. Os humanos que não sofreram mutações e apresentavam condições financeiras boas, fugiram e orbitaram uma das luas de Saturno, enquanto procuravam por possíveis novos planetas distantes ou uma melhora quase milagrosa, porem esperada, no planeta Terra.
Isaac veste suas roupas militares especializadas em condições extremas, enquanto ainda cantarola sua canção. Depois de se vestir e selar seu capacete, ele se segura em um tecido fortalecido e conectado à estrutura com sua mão direita e brande seu fuzil de assalto com a esquerda, no tempo que a nave desce pelas nuvens e desvia de prédios velhos e destruídos. As ruas estavam tomadas por carros batidos, destroços e alguns corpos quase totalmente decompostos. O relógio marcava quatorze horas e vinte minutos, mas a nuvem de poluição e algo que lembrava cinzas vulcânicas ocultavam o sol, e davam a aparência de um final de tarde ou um dia muito nublado.
Após o pouso, a porta da nave se abre e o vidro do capacete embaça pela mudança de temperatura. As nuvens que escondiam o sol fizeram com que abaixo delas a temperatura ficasse relativamente baixa. O computador central, que é ligado ao computador de suas vestes, informa a temperatura de dois graus Celsius, e em seguida limpa o vidro e tira o embaçado do mesmo. Wells teria que ser cauteloso para não se contaminar. Caso ocorresse, ele não teria permissão de retornar à estação e seria abandonado no espaço juntamente de sua nave.
Ele caminha pela cidade cinzenta. Tudo o que se podia ver era uma variação dos tons cinza e preto. Havia marcas de queimado nas paredes, nos carros abandonados e nos destroços. Em sua maioria, os postes estavam caídos, os carros batidos no acostamento ou um nos outros, e em muitos pontos o asfalto se encontrava rachado. Isaac caminha por uma hora e alguns minutos, mas o peso da proteção simulavam longas horas. Ainda se encontrava alguns cartazes antigos que falavam sobre A Grande Viagem, e que o futuro da humanidade se continha somente nela. Era a chamada “única esperança”. Os cartazes estavam vandalizados pelos que foram deixados para trás, por não terem condições financeiras suficientes. Chamavam de demônios, de malditos, corruptos e injustos aqueles que os deixaram fora da “única esperança”. Praguejavam em forma escrita todos os nomes possíveis pelos muros em volta e por cima dos cartazes.
O único som que Isaac escutava era de sua respiração meio ofegante e os movimentos virtuais que o computador fazia enquanto escaneava o ambiente. O computador verifica as substancias presentes no ar, investiga o chão e as paredes em busca de alguma planta ou fungo entre as fendas e falhas.
- O que é isso? – Pergunta Isaac ao computador enquanto se abaixa e pega um celular velho e quebrado.
- É um telefone móvel, ou celular, um aparelho usado antigamente para comunicação via ondas eletromagnéticas que permite a transmissão de voz e dados por uma área restrita. Infelizmente não podemos…
-“Não podemos levar com a gente”. Eu sei, eu sei. – Isaac fala em um tom desapontado, interrompendo o computador.
Um alarme de três toques seguidos de uma mensagem pré-gravada do computador informa que foi detectado movimento atrás de Wells, que se vira lentamente e avista um grande cervo. O animal olha diretamente para ele enquanto permanece imóvel e em silêncio. Entre respirações profundas, e o olhar que focava entre o animal e o fuzil de assalto que era erguido lentamente, pairava uma tensão. Sua respiração forte embaçava um pouco o vidro perto de sua boca e nariz. Suas mãos tremiam. Ele só havia conhecido esses animais por sua grande curiosidade, dada às visitas constantes ao museu de história natural feito na estação. Agora havia um vivo, selvagem, e de certo modo, intimidador. Não por ser tão grande, mas sim, por ser algo não esperado.
A tensão foi gradativamente sendo quebrada pela voz que crescia. O computador chamava por seu nome em vão. Isaac finalmente é liberto de seu transe, e o animal não estava mais em sua frente. Não havia mais nenhum sinal do cervo, nem de rastros. Como se sumisse em um piscar de olhos. De fato parecia ter simplesmente desaparecido no piscar dos olhos de Isaac. Sem palavras, ele procura entender o que acabara de acontecer; olha para o fuzil apontado para o nada, e em seguida às suas mãos. O sinal do relógio, em seu painel de visão, marcava exatamente dezesseis horas. Isaac se perguntava, deslumbrado e confuso, como era possível um cervo continuar vivo nessas condições. Parece impossível, e se não tivesse visto com seus próprios olhos, duvidaria eternamente. Estava ciente, porém, que sua visão poderia ter-lhe enganado. Parecia ainda mais incoerente, o cervo ter desaparecido sem deixar rastros.
Wells, após abaixar seu fuzil, caminha receosamente até onde o animal estava outrora. Novamente a vós pré-gravada juntamente dos três toques, o informa de movimento à sua direita. Isaac se vira rapidamente, e se depara com um beco precariamente iluminado e longo que se bifurcava. Logo na entrada, a frase “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” havia sido escrita em tinta, com uma caligrafia desleixada de riscos secos. Os passos ecoavam, e a cada metro que se aproximava da bifurcação, Isaac segurava mais firme sua arma. No lado esquerdo, existia um portão de ferro. No direito o caminho continuava por um breve momento, mas logo terminava em uma parede e uma tampa de esgoto meio aberta. Wells tenta empurrar o portão para se certificar de que o que havia passado por ali, não poderia ter ido por outro caminho a não ser o direito. O portão estava trancado, e os empurrões de Isaac não o moveram nem por centímetros. De modo cauteloso, ele chega a um passo do esgoto e termina de abri-lo com sua mão esquerda, enquanto empunha a arma com a direita. Ainda agachado, uma película em seu vidro regula a luz, tornando o local mais nítido. O sistema de esgoto era enorme. Um carro ou uma nave pequena passariam facilmente.
A descida era longa e não parecia muito segura, mas algo o fez prosseguir sem demonstrar sequer um pouco de hesitação. Havia uma escada de mão em péssimas condições, e que fazia um ruído a cada movimento. Uma das barras cede, fazendo com que Wells caia de uma altura ainda consideravelmente elevada. Ele colide com o solo primeiramente com seu braço esquerdo, e em seguida com a parte lateral de sua cabeça. Isaac desmaia por alguns minutos. Após retomar a consciência, ainda com a visão turva, começa a se levantar apoiando nas paredes. Enquanto estica o braço para recolher sua arma do chão, se depara com uma folha de papel. Na folha havia uma passagem, que se assemelhava a um fragmento qualquer de um diário.
"Passei boa parte da minha vida, sozinho.
Não sei se eu gosto, ou estou acostumado. Mas o que eu sei é:
Ficar sozinho faz coisas com você.
A solidão te devora por dentro e mostra o quão selvagem nós podemos ser."
Dessa vez a caligrafia era mais trabalhada. Era uma escrita cursiva em tinta preta de caneta, em uma folha de papel com pouca sujeira. O computador transcreve as palavras contidas na folha, e as guarda em seu banco de dados. Isaac, ainda muito confuso, larga a folha e segue andando lentamente pela reta. Levanta seu fuzil com certa dificuldade, e liga a pequena lanterna contida na parte inferior. A luz revela alguns livros velhos e sujos juntamente de sangue seco. Na medida em que avança, algumas luzes fracas e avermelhadas que iluminavam muito precariamente, surgem das paredes da estrutura. O latejo em sua cabeça, devido a pancada anterior, se sincroniza com as visões de sangue e restos humanos dilacerados que vinham intermitentemente. Intercalava-se na visão da linha do sistema de esgoto normal, e os flashes das visões hediondas. Aterrorizado, acelera o passo em busca de uma saída daquele local. O desespero faz com que ele tropece no piso desnivelado, e caia com seus braços na frente e olhos fechados.
Uma voz que começara baixa e crescia gradativamente, o chamava. Era uma voz doce e suave.
-Isaac… Isaac… Isaac…
-Kat?
- Isaac, estou aqui.
-Katherine, é você?
Isaac estava em sua casa. Katherine, sentada com um livro de medicina em sua mão, o olhava e questionava por onde sua cabeça andava. Wells olha para os lados, confuso e sem responder sua mulher. Ele começa a andar em sua direção. Suas mãos se erguem lentamente. Quando se aproxima para lhe tocar o rosto, pisca, e está novamente no sistema de esgoto com sua mão em uma das barras de outra escada.
Não tinha ideia o quanto acabara de correr, mas ao sair pela escada de mão, o centro da cidade estava para trás. O relógio marcava dezessete horas. Wells queria voltar, mas era preciso seguir o protocolo. Uma vez que avistada alguma forma de vida ou movimento, era seu dever investigar e relatar. Seu dever de continuar a missão era mais forte do que o temor por sua vida. Como militar, foi treinado para isso. A rigidez do novo treinamento militar era incomparável. Para os militares, o protocolo seguia semelhante a uma doutrina extremista de sobrevivência da raça humana. Ele não iria simplesmente voltar correndo para sua nave e sair o mais rápido possível. Não, Isaac iria até o fim.
À medida que escurecia, a película virtual se atualizava e mantinha a nitidez. O céu cinzento ia gradativamente se tornando negro, e com ele, a ferrugem dos alambrados da ponte aonde chegara ia se escondendo. Embaixo da ponte passava um trilho de trem, e ao fundo em meio das árvores mortas, via-se uma grande usina desativada. Algo parecia o estar atraindo até ela, mas mesmo se fosse uma armadilha, Isaac iria. Suado e cansado, seus passos eram pesados. Embora o treinamento que recebera fora excepcional, o terror e o suspense anterior abateria o melhor dos soldados. Wells ainda estava abalado com o que vira. Os corpos dilacerados e o sangue espalhado por toda a parte, como um matadouro sujo. E o mais intrigante e assustador de tudo: A visão e a voz de sua mulher. Com seu fuzil firme em sua mão, Isaac aperta o passo.
Passa por um condomínio abandonado, um parque de diversões velho e quebrado, casas parcialmente queimadas e cobertas de cinzas. Uma cidade fantasma. Um cenário similar à cidade de Chernobyl.
Um som agudo começa a emanar de todas as direções. Isaac coloca uma das mãos em sua cabeça, como se sentisse um pequeno incômodo. O latejar forte de sua cabeça, agora, o faz cair de joelhos ao chão, próximo de uma boneca parcialmente queimada. A cabeça estava arrebatada do corpo, mas agarrada por um laço de sua roupinha. Os olhos da boneca se mechem e focam atrás de Wells, que escutava um barulho intermitente de interferência. Isaac olha rapidamente para trás, segurando o fuzil com as duas mãos, e avista uma figura humanoide completamente negra. Não se via olhos, boca, nariz e nenhum detalhe. Era como um espectro que se arrastava em movimentos bruscos acompanhados de um som de interferência e o arranhar um de quadro negro.
O único pensamento de Isaac no momento era sair mais rápido possível de perto da criatura. Enquanto se arrastava em fuga, disparava sua arma. Primeiramente alguns tiros de aviso, mas logo passara a uma rajada de projéteis. As balas não afetavam a sombra, que continuava se aproximando enquanto Wells tentava se esgueirar por entre as casas destruídas. A voz do computador era abafada pelo zumbido em seus ouvidos. Trombava contra os móveis velhos enquanto pegava atalhos pelas paredes quebradas das casas. Embora a sombra se arrastasse, Isaac ouvia passos vindos dela. Os passos não eram sincronizados com seus movimentos, mas sim, como um passo de um humano em perseguição. Não havia tempo para pensar muito. Era correr, se esconder e tentar sobreviver. O espectro o caçava; não desistia nem por um segundo, mesmo quando os passos ficavam mais distantes.
O treinamento militar avançado valera a pena, pois ele corria e se esquivava da sombra com maestria. Enquanto corria pelos corredores, via a imagem turva de Katherine o guiando. Apenas chamando por seu nome. Katherine desaparecia após cada virada. Wells chega a um corredor mais longo com uma janela meio quebrada no final, e como ultimo esforço, corre e pula contra o vidro. O vidro se despedaça enquanto Isaac transpassava por ele, deixando a criatura para trás. Ao se encontrar com o solo, os barulhos e a dor na cabeça desaparecem. Agora podia ouvir o computador, que o chamava ininterruptamente.
- Desculpe-me, estava ocupado demais fugindo por minha vida. – Responde ofegante – O que foi?
-Detectado duplo movimento, padrão acelerado de batimento cardíaco sobre-humano. Sujeito um com possível doença indeterminada. Temperatura consideravelmente elevada. Sujeito dois se aproximando pela frente, padrão acelerado do batimento cardíaco humano.
Isaac recarrega sua arma e aponta para o sujeito um, que aparecera no escuro da janela da casa. Trocava olhares na direção do sujeito um e do sujeito dois. Uma voz de criança se propaga da direção oposta a casa.
- Homem da lua! Homem da lua venha!
- Quem é você?
- Meu nome é Lucy. Lucy Gustav.
Wells se arrasta sentado com a ajuda de sua mão esquerda, em direção à voz. Uma menina com uma proteção improvisada contra radiação e uma máscara de gás, surge de dentro de um bueiro e o puxa para baixo.
O canal era estreito e consideravelmente iluminado por algumas lâmpadas interligadas. Todos os fios se aglomeravam e seguiam reto até entrarem em uma parede. No centro da parede havia um portão blindado, típico de bancos. Lucy roda uma pequena peça, e abre um compartimento que continha um painel. Wells, cauteloso, discretamente olha o movimento dos dedos da garota, gravando as posições. As travas do portão se abrem, e Lucy começa a puxar o portão pesado com dificuldade. Antes mesmo do primeiro passo de Isaac, é avisado de que não se aproximasse. A garota franzina e jovem parecia não aceitar nenhum tipo de ajuda. Era corajosa e forte de um jeito diferente. Do seu próprio jeito. O portão começa a se mover, e com ele, um pouco de sujeira e pó se espalham pelo ar. Os dois chegam a uma câmara com outra porta. Era uma câmara improvisada, usada para descontaminação ou para separar um ambiente de outro. Após fechar o portão atrás e ouvir os lacres, o lugar é selado. Lucy retira sua máscara de gás e encara Wells, com seus belos e peculiares olhos verde turquesa que brilhavam em meio a sua pele pálida e sardenta. Seu cabelo curto, avermelhado e bagunçado caia um pouco em seu rosto. Era uma jovem muito bonita, mesmo com seu rosto um pouco sujo; aparentava treze anos, mas era um pouco mais velha.
-Então. Não vai tirar seu capacete? Não vão nos permitir entrar usando as vestes que usamos no lado de fora.
-Não posso, o computador de minha nave se comunica comigo através desta roupa especial. Além do mais, retirar minhas vestes seria um risco a minha missão.
-Em risco? Sua missão? Eu não sei o que veio fazer por aqui, mas se quer continuar vivo sugiro que considere entrar. Aquela… Coisa horrível estava te caçando. Ela só sabe caçar. Não sabemos o que faz com os capturados, já que nunca saem vivos para nos contar, mas aqui é seguro.
-Não posso me pôr em risco de contaminação. – Diz Isaac, relutante.
-Contaminação? Prefere voltar lá para fora e morrer? Porque você não poderá entrar com as mesmas roupas que usara lá. Garanto-lhe que deve estar atrás de você faz tempo, e vai continuar. O Caçador Ilusionista não desiste de sua caça.
Mesmo ainda relutante, a garota parecia fazer sentindo no que dizia. Isaac começa a retirar suas vestes, e a respirar o ar do planeta pela primeira vez na vida. Cheirava mal. A câmara nunca havia tomado uma luz solar. Era abafada e silenciosa. Ambos terminam de retirar as vestes externas. Isaac vestia por baixo um traje militar semelhante a uma sub-roupa negra, de tecido avançado que regulava a temperatura. Lucy vestia uma pequena camisa branca, porém um pouco rasgada e suja, e um pequeno short de mesmo estado. Descalça, Lucy segura sua mão e o puxa em direção à porta que se abria lentamente.
A primeira visão o surpreende. Naquele local havia toda uma civilização organizada, como um submundo que vivia independente de todo o resto que fora excluído do lado de fora. Não era muito limpo e bonito, mas mantinha as pessoas seguras e vivas. Bem ao centro havia uma pequena praça com uma fonte seca. Ela ligava todas as ruelas e corredores, que por sua vez, continham casas feitas em sua maioria de lata, ferro e pedra. No teto de formato côncavo, havia desenhos relativamente velhos das nuvens e do sol, feitos de giz e tinta. Na direção dos olhos de quem entrava pela porta, se via uma casa maior e mais bem estruturada logo atrás da praça. Em sua maioria, as pessoas ali eram um pouco sujas e vestiam roupas rasgadas e não muito coloridas. Basicamente cinza, branco, preto e variações do marrom. Mas ao redor e dentro da casa que se destacava, se podia ver pessoas de armaduras feitas de aço ou ferro. Portavam armas de fogo velhas e algumas enferrujadas, ou longas facas e arcos. Havia uma diferenciação e separação dos pseudo-militares, caçadores e do resto dos civis. Enquanto Isaac caminhava, sendo guiado pela menina que andava apressadamente, ouvia um grupo rezando na praça, aclamando por uma salvação divina, e culpando a natureza humana pela sua destruição. Outros varrendo as ruas ou negociando comida e peças velhas. Algumas crianças corriam para lá e para cá, mas pareciam nem notar ou dar confiança para ele. Não só as crianças, mas também a maioria das pessoas não ligavam para sua presença ali, com exceção dos de armadura e de negociadores de roupas.
Chegando a casa de Lucy, ela o solta e corre em direção ao pai, que consertava um pedaço da casa. O pai da menina aparentava força e coragem, expostas por suas cicatrizes, rosto barbado e marcas duras de expressão. Após um breve abraço e um afago na cabeça da filha, Edgar Gustav fixa seu olhar sério em Wells. Eles se cumprimentam e se apresentam rapidamente, enquanto o homem o convidava para entrar em sua casa. A voz de Edgar era forte e grossa, concebendo muito bem sua aparência. Eles se sentam em volta de uma mesa arredondada que ficara ao centro de uma pequena sala. Lucy explica o que havia ocorrido, mas o pai não demonstrava grande preocupação.
- Não se preocupem. Esta cidade-fortaleza, erguida com o esforço meu e de muitos dos meus homens, não será perturbada por Ártemis.
- Ártemis?
- Sim, Ártemis ou Caçador Ilusionista, como é conhecido por alguns. Ártemis, a deusa da caça, para os “Cabeças de vento”. Acham que os condicionamentos sobre-humanos e o fato dele sobreviver à radiação sejam características atribuídas a um deus, que veio para acabar com a raça humana pecaminosa. Você deve ter lhes visto, ao entrar. Religião não os salvou e não irá os salvar agora. Você deve lutar com suas mãos por aquilo o que quer.
- Pai… – Lucy o encara com ar de desaprovação. – Você não deve falar essas coisas. Você deve lutar com suas mãos, mas a religião deles os ajuda a manter suas cabeças no lugar.
- Veremos. Enquanto essa palhaçada não causar muitos problemas, eu não tomarei nenhuma atitude. Mas não estamos aqui para discutir sobre isso.
Edgar, que portava força física e uma convicção igualmente forte, se levanta da cadeira e caminha até sua geladeira velha. Serve um copo de água para Isaac e para sua filha. A água era um dos produtos mais caros e preciosos negociáveis na cidade. Quanto mais limpa, mais cara.
- Não sei exatamente o que pretende, mas se quiser ficar aqui, terá que trabalhar. Por seu porte e resistência, eu o colocaria como um caçador. Iria até o outro lado da cidade junto dos outros para buscar água e tentar achar comida.
- Senhor Gustav, eu agradeço a confiança, mas tenho meus próprios objetivos. Posso dizer que já encontrei o que procurava, e tenho que relatar a meus superiores. Se puder me ajudar a chegar a minha nave, o relatório poderia lhes trazer ajuda. Ajuda de verdade. Poderíamos tirar todos vocês daqui, para um lugar mais seguro e livre da radiação e do Caçador Ilusionista. Levar-lhes a um lugar melhor. À estação espacial.
- Eles já nos abandonaram uma vez! Como posso confiar meus homens a uma promessa de quem já nos ignorou?
- Minha missão é justamente encontrar vida vegetal ou alguns sobreviventes. Se estiver no relatório que há sobreviventes, eles virão aqui os resgatar. Provavelmente fariam perguntas e os estudariam, mas os que não estiverem infectados com níveis perigosos de radiação serão incluídos. Aqui parece ter uma boa fiscalização e proteção. Poderia afirmar que quase ninguém teria problemas em passar pelos testes.
Isaac explica para Edgar que a fuga da Terra foi emergencial. Agora que estaria tudo estabilizado, a recuperação de sobreviventes era a maior prioridade. Ele mentiu enquanto a prioridade, mas não mentia que o plano era também de resgate.
A barba de Isaac já sujava seu rosto, quando conseguira convencer seu anfitrião de que essa era a decisão correta a ser tomada. Mas para dar certo, precisaria chegar à sua nave. Teria que passar por todo aquele caminho novamente. O árduo caminho pelo centro sombrio da cidade. O coração de Wells já palpitava mais forte, de pensar no demônio que o seguia. Que o caçava sem dó e sem descanso. Edgar resolvera envia-lo junto dos Caçadores, que iriam aproveitar a viagem por busca de mantimentos, e levá-lo com mais segurança e apoio. Aquela não era mais uma simples busca por alimento e água, aquela era a grande busca do seu futuro. Todos estavam dispostos a morrer se Edgar dissesse para conduzi-lo. Gustav era um nome muito respeitado dentro daquela sociedade, era o nome do fundador com “Braços de Aço”. Aquele que liderou a construção dessa pequena fortaleza que os segurava. Pelo “Gustav Braços de Aço”, como gritavam seu nome no anuncio da missão, iriam ajudar Isaac. O anuncio foi dado no centro da praça, onde Edgar falava no topo da fonte seca, como um grande líder que se tornara. Muitos permaneciam com a dúvida em suas cabeças, mas seus corações os diziam para continuar confiantes. A voz de Edgar crescia ao meio de todas as pessoas que se juntavam. Ecoava pelo teto côncavo, como uma música divina. A música da salvação. Seus corações gritavam como um coral às palavras dele. Lucy segurava a mão de Isaac e ambos permaneciam na base da fonte, ao lado direito de Edgar.
Todos se preparavam mental e fisicamente para a grande missão que lhes fora dada. Os que conseguiram dormir, logo acordaram e começaram a preparar suas vestes e armas que usariam no lado de fora. Edgar e Lucy esperavam os sete voluntários e Isaac no portão principal. No dia anterior, logo após o discurso, sua filha tinha confrontado seu pai. Ela iria junto dos voluntários. Ela o explicara que conhecia a cidade melhor que todos eles. Que já havia fugido para a cidade, e que conhecia todos os atalhos e pontos mais seguros. Sem ela, eles teriam menos chances de completar sua missão. A discussão durou por horas, mas Edgar sabia que nada poderia impedir o sangue Gustav de fazer o que achava certo.
Na câmara, todos faziam os preparativos finais. As vestes e o rifle de Isaac foram devolvidos. O grande portão se abre, e com o ato, o grupo da o seu primeiro passo em direção a terra sem segurança. Já haviam passado quase dois dias desde a chegada de Wells à fortaleza. O relógio em seu visor marcava dezesseis horas e cinco minutos. Um por um, saiam do bueiro de outrora. Por mais que olhassem atentos, não havia mais indícios de que Ártemis estava no local. Isaac é alertado para não relaxar. Você nunca conseguiria enxergá-la se essa não fosse sua vontade. Todos pareciam mais tensos que o comum; eles sabiam que Isaac era seu alvo, portanto seu caçador não estaria muito longe. Wells, que havia ficado mais ao final do grupo que se movimentava por entre ruas estreitas, e outras parcialmente bloqueadas, notara algo diferente que piscava em vermelho no seu painel de visão. Ele redireciona a saída de voz do computador para seu fone, e confere a mensagem gravada dias atrás.
- Detectado violação de segurança do traje. Possível contaminação. Analisando falha do traje na perna esquerda.
As palavras que acabara de ouvir abateram-lhe como uma facada em seu peito. Isaac congelou seus movimentos, e tudo que pensava era em Katherine. A voz de um dos Caçadores era abafada pelo bater acelerado de seu coração. Ele volta a andar lentamente com o grupo, sem poder dizer uma só palavra. Enquanto caminhava, levara seu braço discretamente para um minúsculo rasgo que não havia notado antes. O rasgo chegava até sua pele, e fazia um pequeno ferimento quase imperceptível. O computador, após a análise do ferimento, o informa de um componente em seu organismo. Composto de uma parte de um forte remédio dado aos astronautas, que passavam muito tempo isolados em estruturas espaciais. O remédio era usado para combater a “Loucura Espacial”, como ultimo recurso. O elemento, sozinho, causava efeitos alucinógenos muito fortes. O corte indicava que havia sido utilizado um tipo de projétil, com objetivo de arranha-lo. Como uma agulha, ou um pequeno espinho atirado. Uma voz masculina, que não era de seu computador, emana em sua mente. A voz recitava as palavras que havia lido no fragmento de diário de outrora. Cada palavra vinha como se estivessem sendo ditadas enquanto escritas. Descrevia um sentimento esvaindo-se pelo ar. Descrevia a sanidade esvaindo-se por entre o caos. Isaac já não conseguia disfarçar muito bem sua preocupação e agonia. Lucy chega perto dele, e o puxa pela mão. Eles se entreolham e logo continuam a andar por entre os Caçadores.
O grupo havia chegado onde Isaac antes tinha visto o grande cervo, em tempo de ver algo espantoso. Todos eles viam a Lua surgir gigante dentre as nuvens densas que a moldavam. Com exceção de Wells, ninguém ali jamais havia visto pessoalmente a Lua. Só sabiam e a identificaram pelas imagens de livros e de desenhos dos mais velhos. A visão da Lua acompanhava um brilho de esperança e fascinação em seus olhos. Aquilo não era efeito da droga. A música de pavor em seus corações some, dando lugar a uma melodia brilhante que crescia à medida que a Lua subia pelo céu. Tudo se cala, quando uma flecha atinge ferozmente a cabeça de um dos Caçadores. A violência da colisão faz com que a cabeça da vítima se desloque para cima, espirrando sangue para trás e para cima. O vulto fugaz some por entre os destroços, enquanto os integrantes desesperados atiram aleatoriamente. Outra flecha que vinha dessa vez da direção oposta acerta a perna de Isaac, que caí de dor ao chão. Lucy o levanta com dificuldade, dando suporte a seus passos em direção da luz de sua nave. Wells larga seu rifle, que o sobrecarregava. Enquanto as flechas acertavam os Caçadores, que protegiam Isaac com suas vidas, Lucy puxava-o com bravura. Um por um, os voluntários caíam mortos ou gravemente feridos.
Como últimos sobreviventes, Wells e Lucy chegam à nave, que abria o portão e descia uma pequena rampa. Isaac olha para trás e avista a silhueta humanoide parada alguns metros deles. O corajoso militar empurra Lucy para dentro da nave, e ordena que o computador feche a porta. Lucy se levanta com dificuldade, e por mais que batesse na porta lacrada, nada acontecia. Ela gritava e chamava pelo nome de Isaac. A silhueta na noite esperava pacientemente pela próxima reação de sua caça. Ele abre o canal de voz da roupa com a nave, e diz de modo conformado, que Lucy prestasse muito atenção ao que seria dito a seguir.
- Estou passando todos os dados e o conteúdo gravado pelo meu traje para o computador da nave. – Sua voz não falhava, mesmo diante de sua morte. – A nave já está automaticamente programada para voltar à nave de comando. Preciso que compreenda muito bem o que eu vou dizer agora.
- Não! Isaac! Entre aqui!
- Lucy, eu estou exposto há muito tempo a um nível elevado de radiação do ar. Nunca conseguirei passar pelos testes. O Caçador Ilusionista deve ter me acertado, sem ao menos eu ter notado, há dias atrás.
Lucy olhava atentamente pelo monitor da nave, que mostrava a imagem embaçada por suas lágrimas, que caíam e destacavam a bravura de Isaac se mantendo parado em frente da silhueta imóvel. A luminosidade da nave não conseguia mostrar muito de Ártemis, mas se podia ver o arco e flecha em suas costas, e uma longa faca na sua mão.
- Quando abrirem uma linha de conversa com a nave, você lhes informará seu nome e a razão de estar sozinha na nave. Em seguida, dirá para baixarem o ultimo arquivo transferido para o computador. Isso irá dar conta de qualquer problema que venha a ter. Quando estiver lá, procure por Katherine Wells. – Isaac fecha o canal de rádio com a nave, ordenando sua partida. – Adeus Lucy.
A nave projetava uma grande quantidade de vento, que espalhava a poeira e bagunçava o cabelo castanho de Isaac, que já estava com seu capacete na mão. Wells o larga ao chão, enquanto alternava o olhar entre a Lua e Ártemis. O caçador começa a caminhar lentamente em direção a seu alvo ferido e desarmado. Katherine aparece em sua frente, com seu belo sorriso de dentes brancos como a neve. O sol artificial se punha no parque em que estava, e formava uma aura em sua mulher. A Lua surgia grande, por trás do sol, e engolia toda a luz com um sopro avermelhado e um silêncio eterno.
Fim.
“Sometimes human places, create inhuman monsters.”
-Stephen King, The Shining