Voz de pato - Parte 2

Nem é preciso muita explicação. Qualquer pessoa bem esclarecida hoje em dia sabe que é muito mais fácil impedir a saída de gases à pressão de uma atmosfera dentro de uma cápsula espacial do que impedir de entrar uma pressão de centenas de atmosferas de água salgada fora de um batiscafo! Sem contar que no primeiro caso estamos apenas evitando a saída de uma mistura gasosa tênue de oxigênio e nitrogênio para o vácuo do espaço exterior, e no segundo, muito mais difícil, tentamos evitar ser esmagados por um líquido denso com cloreto de sódio diluído, a centenas de atmosferas, como disse antes! Na verdade, com uma atmosfera de pressão sendo adicionada para cada 10 metros de profundidade que descemos, é fácil entender o quanto este segundo problema é bem mais complexo...

Sempre se tenta manter um ambiente à pressão de uma atmosfera nos habitats extraterrenos. Não estamos preparados para viver a pressões muito menores que esta. Qualquer alpinista é capaz de te explicar o que existe de errado com tais pressões. E quanto a pressões maiores? A existência de criaturas abissais no fundo dos oceanos prova que isto é possível! Com engenhosidade e algumas adaptações, nós também somos capazes de fazer isto. Viver respirando água? Não, acredito que ainda estamos longe disto. Mas podemos pelo menos parar de disputar este cabo de guerra com o ambiente exterior do fundo dos oceanos, respirando um ár altamente comprimido com uma pressão equilibrada com a do exterior. É inevitável que precisemos fazer isto se pretendemos colonizar seriamente a lua Europa, e nada melhor do que testarmos antes aqui perto, em nosso próprio planeta. Isto se quisermos fincar lá colônias sobre uma superfície sólida que não seja gelo...

O batiscafo no qual me encontrava poderia muito bem ter feito aquela viagem a 2 quilômetros debaixo das águas em 10 minutos! Por que 2 quilômetros? Bom, era a nova fronteira terrestre. Os oceanos cobriam pouco mais de 70% da superfície do planeta, e destas uns 60% estavam a profundidades iguais ou menores que 2000 metros. Era bem interessante aprender a viver em tais lugares!

Luz solar? Esqueçam! Meros 200 metros de profundidade já eram inatingíveis pela radiação de nossa estrela. Daí para baixo nenhum sinal de produtores primários baseados em fotossíntese, pois (perdoem o trocadilho ruim) não existe mais "photons" para se fazer nenhuma "síntese". Mas a vida é criativa, sempre encontra seus meios para existir! Nesta região de fotossíntese impossível, algumas bactérias se aproveitam das temperaturas acima de 100 graus e alta concentração de sulfureto de hidrogênio (H2S) presentes em fontes hidrotermais no fundo dos oceanos para fabricarem seu sustento. Algumas criaturas se alimentas delas, outras convivem em simbiose. Têm-se um ecosistema complexo num lugar onde nunca se imaginou possível, cujo produtor primário vive, basicamente, de uma substância composta de enxofre e hidrogênio, normalmente venenosa para outras formas de vida, digamos assim "normais". E neste ambiente insólito a vida continua fazendo o que melhor sabe fazer: crescer, sobreviver e se replicar. Especula-se que Marte já teve oceanos a uns quatro bilhões de anos e, rico em enxofre, pode ter desenvolvido algum tipo de vida bem semelhante a este. Mas deixemos Marte de lado. Como vocês já sabem, não morro de amores por este vermelhinho metido.

Meu habitat destino se localizava a 2500 metros debaixo do Pacífico. Fora da média de 2000 metros da maioria dos habitats atuais. A estrutura de lá não fôra feita para suportar a pressão destas profundezas. Eles não brigavam com o oceano, e sim viviam sob 250 atmosferas de pressão! Por isso minha descida foi tão demorada: precisava me adaptar aos poucos a ela, ou seria esmagado feito um pastel de gente.

Há séculos se conhece o incoveniente do nitrogênio em altas pressões. Por isso, a cada metro descido diminuia sua concentração dentro do ár do batiscafo. Mas oxigênio em altas concentrações era tão perigoso quanto qualquer outro veneno! A pressão tão alta, ele precisava até mesmo diminuir um pouco de concentração, até uns 14 ou 15 porcento. O que colocar no lugar? Sabia-se a resposta a pouco menos de um século: Hélio-3! Sim, na antiguidade se utilizou o Hélio comum, mais pesado. Mas seu limite seguro era de uns 700 metros. O Hélio-3, com um nêutron a menos, permitia que se atingisse com segurança profundidades maiores. Depois do fracasso total de sua utilização para fusões nucleares, uma nova utilidade voltava a colocar o raro isótopo em evidência. Aos poucos se estabilizava dentro do batiscafo altamente pressurizado a mistura conhecida como "Nitroheliox-3", formada de 15% de O2, 80% de Hélio-3 e 5% de N2.

A história deste nitrogênio residual é bem curiosa. Preparados para mais uma historinha? Vamos lá então... Bem na pré-história da exploração submarina a grandes profundidades, percebeu-se que em pressões muito altas o nitrogênio atmosférico causava no sistema nervoso humano uma sensação curiosa, de fuga da realidade, falta de concentração... a temida "narcose de nitrogênio", de características que muito lembravam um pileque alcoólico. O problema foi parcialmente resolvido substituindo-se neste ár comprimido o nitrogênio pelo hélio, gás nobre muito mais leve e, consequentemente, receptivo a maiores pressões sem causar danos. O Hélio, sendo nobre, não reage com nada, não participa de reações químicas que estragariam o metabolismo de nossos corpos. A priori sua única função era manter a concentração do oxigênio depois de se retirar o nitrogênio. Em resumo, ele não fazia nada, só estava lá para ocupar espaço.

A resposta dos primeiros aquanautas foi inesperada. Os primeiros consumidores da mistura "Heliox" apresentavam tremedeiras incontroláveis, como se sentissem a falta de algo. Um alcoólatra em crise de abstinência.... Do quê? Bem, sendo o Hélio inerte, a única coisa que faltava na mistura era o nitrogênio! A adição de uma pequena concentração de nitrogênio à mistura pareceu resolver o problema. Como uma dose de martini apaziguando a crise de um alcólatra. Quem poderia imaginar que, embora não o usássemos diretamente na forma gasosa para nada, na verdade éramos todos de certa forma "nitrólatras"? Sim, apesar dele não ter função alguma quando respirado, precisávamos respirar sempre ALGUM nitrogênio para nos sentir bem.

Fui aos poucos me acostumando a pressões cada vez mais colossais. Existia um primo morando já a algum tempo no tal habitat, e era quem me receberia neste estranho mundo. Embora ainda demorado, inovações tecnológicas e médicas permitiram acelerar um pouco o processo de descida, abreviando o que antes levava dias para umas poucas horas. Finalmente o batiscafo chegou à cúpula geodésica pré-abissal. De novo este nome sem sentido... Mas aqui era diferente: o ambiente não era lacrado de forma alguma. A única coisa que mantinha a mistura Nitroheliox-3 dentro da cúpula era o fato dela ser mais leve que a água e tentar subir, sem encontrar por onde fazê-lo. Como um copo virado de boca para baixo mergulhado com cuidado dentro de uma bacia de água. Mas neste caso a bacia era muito funda, de 2500 metros de profundidade! As enormes vigas metálicas enterradas no fundo do oceano, rodeando toda a cúpula, não existiam para manter a estrutura em pé, e sim para impedí-la de subir flutuando até a superfície. Foi ao chegar bem perto que percebi que ela não se apoiava no fundo do oceano, mas flutuava acima de um vão de uns 200 metros entre o fundo da cúpula e o fundo do oceano. Quando o batiscafo se dirigiu para este vão, vi milhares de janelinhas luminosas no fundo. Eram as piscinas de desembarque, em contato direto com as águas das profundezas. Era por onde entravam os batiscafos. Nenhuma necessidade de câmaras intermediárias de descompressão, pois a pressão dentro do batiscafo a esta altura já era igual à pressão do habitat, que por sua vez era igual à pressão do volume de água que preenchia tudo até onde a vista alcançava. Eu disse mesmo isto? Me desculpem, foi um deslize! Em tal profundidade, o breu era absoluto, nenhuma luz natural. Tudo o que poderia ver era aquilo que fosse iluminado pelas luzes artificiais que emanavam de dentro do habitat, acima de minha cabeça.

O batiscafo emergiu da piscina de desembarque. Esperava que os ouvidos entupissem temporariamente assim que abriram a portinhola de saída, comum de se acontecer no espaço devido à súbita diferença de pressões. Mas nada aconteceu! O controle era perfeito, a pressão do batiscafo estava exatamente igual à do interior do habitat. Pelas janelas laterais vi meu primo mais dois amigos me aguardando, e comecei a subir as escadas. Uma expressão que ouvira várias vezes em minhas conversas por videofone com meu primo ressurgiu em minha cabeça. "Voz de pato", era como os habitantes dos habitats pré-abssais costumavam apelidar os turistas de primeira viagem. Qual seria o motivo? Bom, assim que pisei em "solo firme" (força de expressão), foi a primeira coisa que perguntei.

- Oi primo! Imagino que agora eu seja um... "voz de pato". Que raios significa isso, hein?

Ele e os dois amigos começaram a rir sem parar, ao mesmo tempo em que percebi estar falando numa estranhíssima voz de "Pato Donald". Personagem de desenho animado do tempo das cavernas, para quem não conhece. Sim, agora eu entendia porque eles chamavam os turistas desavisados de "voz de pato"...

- Você ainda não implantou o redutor de oitavas na traquéia, não é mesmo?

- Redutor de oitavas? - e parei de falar imediatamente, ao perceber o quão ridícula minha voz estava.

- Vem comigo, primo! Já esperávamos isto! Vou te levar a um fonoaudiologista de confiança.

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O consultório era impecável! Óbvio que assim que percebi que minha voz era motivo de chacota, fiquei mudo durante todo o caminho. Uma pena, pois mal podia esperar para bombardear aqueles representantes do habitat Aqualung-15 de perguntas. Mas uma curiosidade eu não consegui segurar:

- Que voz é esta, primo?

- Você está respirando agora uma atmosfera com 80% de Hélio-3. A velocidade do som é maior, suas cordas vocais agora modulam sua voz a quase duas oitavas acima do normal! O redutor de oitavas compensa isto, altera a elasticidade de suas cordas vocais para baixar esta freqüência.

- Dói?

- Relaxa! Você nem vai sentir! E não se preocupe, é reversível! Você vai poder retirá-lo quando voltar à superfície.

A colocação do implante nem foi tão desconfortável quanto imaginei.

- Mas ainda preciso ajustar a modulação. - avisou o médico. - Por favor, vá lendo este texto enquanto baixo a frequência. Me avise quando eu chegar à sua voz natural.

É difícil reconhecer a própria voz! Tentem esta experiência: gravem suas vozes e depois ouçam. Normalmente não vai ser nada daquilo que esperavam. É explicável: nos ouvimos de um ponto privilegiado, dentro de nossas cabeças. É uma complexa caixa de ressonância. Frequências são anuladas, outras são reforçadas... mas o resultado que ouvimos geralmente é bem diferente daquele que emitimos, da voz que é captada por ouvidos alheios. Confesso que enganei o médico. Trapaceei. Sempre achei minha voz um pouco mais aguda do que eu gostaria, e acabei avisando o médico para parar alguns tons abaixo de minha voz natural, para que eu parecesse mais másculo. Precisava aproveitar, não é todo dia que se tem tal oportunidade.

Ao sair do consultório, perguntei com minha nova voz:

- E agora? Onde vamos?

- Confia em mim! Num lugar onde você vai pirar! Um barzinho chamado "Casa do Azôto"!