O mistério de Springfield - Parte 1 - reeditado

Um arrepio de medo precedeu o grito de desespero que Jane deixou escapar ao retornar para a sala. O prato, ainda quente, que devia conter algo recém preparado, foi pelos ares e o seu conteúdo esparramou-se contra a parede branca e escorreu até o chão vitrificado. O efeito fumegante, livre, volatilizou-se, saindo pela janela. A vítima aparente, cuja visão horripilante entorpeceu os gestos de Jane, estava muda e estática. Parada entre um quarto e a sala, a pele negra tornou-se pálida e esverdeada. Os cabelos encaracolados desfizeram-se em fios curtos e eriçados pelo pavor. A televisão permanecia ligada, mas o som e as imagens desfilavam solitários, sem o espectador que, há minutos, ali estava. A cadeira que ocupava, agora vazia e caída para trás, tinha ao seu redor as peças misturadas aos talheres, aos cacos e outros restos que vieram de cima da mesa, arrastados com a toalha azul e branca.

A falta que repentinamente sentiu do marido tirou Jane da inação que a dominava e levou-a a atravessar o cômodo e a agarrar a jovem pelos braços e sacudi-la, num frêmito de desespero.

– O que houve aqui? Onde está Henri? Onde está Henri? – Mas ela nada respondeu. Limitou-se a encarar a patroa, cravando-lhe um olhar pavoroso cujas pupilas, calcinadas, dardejavam o inenarrável. Um calor excessivo e anormal dominou o ambiente. Os braços negros começaram de tal forma a esquentar que queimaram as mãos de Jane. Súbito e sobressaltada ela soltou-a e correu a casa. – Henri! Henri! Onde está você?

Vasculhou todos os aposentos e subiu ao segundo piso, entrou no quarto e olhou ao redor. Nenhum indício de que ele tivesse ali retornado. Sobre a cama do casal, a mesma colcha amarela de algodão permanecia intacta, com os travesseiros na mesma posição de costume. O roupão azul marinho nas costas da cadeira ao lado da janela e, por baixo, o par de chinelos, eram sinais habituais de sua rotina após o banho. Ela correu ao banheiro; tudo normal e nenhum sinal de Henri. Retornou ao quarto e olhou pela janela.

A fazenda era de grandes proporções. O quarto do casal, no andar de cima, dava para a parte de trás. Foi o próprio Henri quem preferiu que assim fosse. Teriam, desse modo, um panorama completo, pois a visão frontal que tinham de sua bela propriedade, através da frente ampla e envidraçada da parte térrea , seria completada pelo panorama bucólico e gracioso das planícies e dos vales de Springfield. Vista ao anoitecer ou nas primeiras horas do crepúsculo da sacada do quarto, a paisagem do horizonte, quando limpo e estrelado, era sempre reconfortante e uma fonte natural de energia e inspiração.

Jane buscou com os olhos, sobre o verde da mata rasteira e uniforme, algum sinal da passagem recente de alguém a pé ou a cavalo, mas não conseguiu ver nada. Mais ao longe, onde passava uma estrada de terra abandonada, a vegetação ao longo do caminho apresentou-se-lhe rasteira e abaixo do crescimento normal. Estranhou a princípio e, olhando melhor, percebeu que não era só isso. Em muitos trechos, não havia praticamente vegetação alguma. Em outros, era como se todo o verde tivesse sido completamente arrancado. E, paralelamente àquela estrada, era como se uma outra houvesse sido recentemente construída. Poucos passavam por ali. Há anos esquecida, a via só era utilizada nos casos de algum viajante desembocar daquele lado, após cruzar a ponte do rio. Quando percebiam, já estavam nela e sem outra opção a não ser retornar pelo mesmo caminho da ponte. Não foram poucas as vezes em que empregados da fazenda, ou mesmo seus patrões, precisaram orientar forasteiros de outras plagas, que não tinham por objetivo aquela propriedade, a retornarem dali mesmo, poupando tempo e energia.

Incontida sensação de medo e insegurança voltou a apossar-se do espírito de Jane. Tornou a descer correndo as escadas. Enquanto o fazia, pensou em dirigir-se ao campo de soja, mas, olhando o relógio, percebeu que de nada adiantaria. Os empregados nunca chegavam antes das oito e ainda faltavam vinte minutos. Indo agora só encontraria o silêncio de instrumentos imóveis e em seus lugares de sempre; pás, baldes e enxadas a espera de mais um dia. Mudas, sementeiras, folhas verdes, raízes e plantas que, se vêem, não testemunham. Porém, ao chegar à sala da horrível cena, Pat não mais ali se encontrava.

O panorama de Springfield, esse pequeno povoado de Missouri, bem no centro dos Estados Unidos, nada deixa a desejar quanto ao belo que nos encanta. Pequenos cursos d’água cruzam as fazendas de soja, milho e algodão. Afastando-se à cavalo das margens de um desses riachos, em direção às grandes planícies que correspondem à bacia do Mississippi-Missouri, têm-se, descortinadas, vastas terras, de tonalidade verde a predominar, pontilhadas por ricas paisagens agrícolas. As residências, algumas tão distantes entre si que não se consegue ver, foram arquitetadas e construídas com o rigor do estilo próprio; de tão distintas umas das outras, denotando arranjo pré-combinado, a não quebrar pela monotonia o interesse do visitante. Aqui e acolá uma árvore cresce e, sob uma luz de crepúsculo, a planura se faz luxuosa como um parque civilizado pela vegetação pequena.

Patrick fazia este percurso pela primeira vez em sua vida. Procedía de Jefferson City. Viajara à noite e estava, por isso, cansado e de mau humor. Seu cavalo marrom já começava a mostrar os conhecidos sinais de esgotamento. Ele alisava o animal no pescoço encardido de lama e mal cheiroso, prometendo-lhe para muito breve uma parada; desta vez com muita água, boa comida e, o que ele mais parecia querer, um verdadeiro descanso. Enquanto distraía-se no reconhecimento e apreciação do lugar, deixando ao seu condutor o mínimo dos sacrifícios e embalado em sua marcha obediente, Patrick entregava-se a um sério questionamento. Perguntava-se o porquê de ter sido ele o encarregado de desvendar o mistério de Springfield. No fundo, sabia que vinte e cinco anos de investigação policial e uma merecida saleta em sua delegacia, repleta de medalhas e condecorações, eram mais do que um motivo justo para encontrar-se agora diante de tal missão.

O pensamento na salinha particular fez com que, num repente, levasse a mão ao bolso da calça na ânsia de certificar-se de que ali estava, bem segura, a chave do seu cadeado. A rapidez do gesto fez o animal piscar repetidamente, assustado. Sacudiu a cabeça e novamente endireitou-a, cheio de insatisfação com o desgaste inútil de sua reserva de energia. Patrick, meio que abobalhado, admirava, balançando firme em fino cordão prateado, o símbolo de sua glória, o mapa do seu tesouro particular. O cavalo, sabedor agora do desfecho daquela atitude, assossegou-se, mas não sem antes ver a mesma mão de volta ao bolso, guardando a chave.

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 03/05/2012
Reeditado em 08/06/2015
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