A FÓRMULA DO CAOS - CAPÍTULO VIII
Um tema recorrente em lendas sobre horáculos, adivinhos, ou mesmo em certos contos de ficção científica onde pessoas especiais conseguem antever eventos futuros é a questão de como fica nosso livre-arbítrio nesta história toda! Será que o fato de prever que algo vai acontecer não nos permite evitar que aconteça? Ou existe o destino, e o que foi previsto fatalmente vai acontecer independente de qualquer coisa que façamos para evitá-lo?
Lógico que tais questões fervilharam em minha cabeça quando descobri que meu programa fazia exatamente isto: previa o futuro! Até o momento havia utlizado meu algoritmo para prever eventos físicos: lançamento de dados, moedas, emissão de partículas radioativas, e agora a temperatura do ambiente! Minto: também testei nas loterias! Mas quem garante que o que ele previa não era simplesmente um evento mecânico das bolinhas girando num globo de metal que seguiam uma lógica previsível, ainda que não fôssemos capaz de entendê-la? Sim, um computador levava uma grande vantagem nisto, pois ele não precisa entender o que está fazendo, só precisa seguir o algoritmo passo a passo para fazer sua "previsão".
Mas também testei com cartas (alguma semelhança aqui com loterias?), e não consegui descobrir que variantes puramente físicas seriam capazes de prever qual a próxima carta a ser retirada de um maço. O atrito entre as cartas, talvez? O fato de uma carta deslizar mais facilmente sobre outra induziria minha vontade, de alguma forma ainda misteriosa, a escolher esta carta e não alguma outra que apresentasse maior coeficiente de atrito com sua vizinha? Ou o fato delas estarem desalinhadas na pilha me fariam dar preferência a descartar a mais saliente do maço? Ou alguma combinação disto tudo, alguma função de múltiplas variáveis que só um computador seria capaz de calcular? Difícil acreditar nisto, me parecia uma explicação forçada demais. Mas não conseguia pensar em outras. Além disso, não dava para duvidar dos resultados: independente de como fazia, o algoritmo também previa as cartas!
Bom, inconscientemente eu escolho se quero tirar uma carta do começo, do meio ou do fim do maço, não é? Então meu algoritmo também previa leis físicas ainda desconhecidas que regiam minha vontade? A permeabilidade entre as ligações sinápticas de meus neurônios, por exemplo? Então nosso "livre-arbítrio" seria tão previsível quanto qualquer outro experimento físico?
Queria tirar esta dúvida de uma vez fazendo um experimento que, assim acreditava, estivessem em maior evidência decisões humasas do que eventos físicos: a sequência dos horários da antiga linha de trem que passava próxima à minha casa! Tinha tempo de sobra para isto, agora que meu experimento como "homem do tempo" podia continuar automaticamente, sem minha supervisão.
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A linha de trem havia sido desativada a anos. De vez em quando ainda passavam comboios pequenos, só que mais com o pretexto de viagem turística do que por qualquer outro motivo. A alguns meses nada mais passava por lá. Por reclamação dos moradores das redondezas, pois realmente o barulho de um trem chegando ã antiga estação era infernal!
Mas a alguns anos atrás, quando ainda não haviam tantas casas em torno da estação, o movimento de passageiros era intenso! E os horários exatos de partida e chegada eram registrados com precisão de minutos. Eu estava disposto a conseguir estes registros custasse o que custasse! E sabia com quem poderia consegui-los! Calma, por enquanto não vou envolver de novo meu bom amigo John Miguel nesta história...
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"Seu Bosco" já apresentava brancos todos os seus cabelos. Bom, pelo menos os que ainda restavam sobre sua cabeça. Ele recordava com nostalgia do tempo em que fiscalizava com severidade os horários de chegada e saida dos trens de passageiros:
- Quando eu tomava conta desta linha, era muito raro as locomotivas atrasarem! Eu ficava mesmo no é dos maquinistas, não tolerava a falta de pontualidade.
Falava enquanto remexia em seus livros empoeirados na estante.
- Acredito que sim, Seu Bosco!
- Depois foram deixando a fiscalização para os jovens, e o negócio desandou. Eu adimiro muita ciisa da juventude, mas este despreendimento com horários certamente não é uma dessas coisas. Diziam assim: 'Cinco minutos a mais ou a menos... tanto faz, Seu Bosco!' Mas eu nunca aceitei isto!
Tirou um caderno da estante. Boa capa e encadernação, era o que se via depois de se soprar a poeira do tempo em que ficou parado naquela estante. Lia-se em sua lombada azul escura, com caracteres prateados: 1976!
- No começo são 5 minutos, depois 10, 15, 30... É por isto que as pessoas pararam de usar os trens! Elas não sabiam mais a que horas iriam viajar!
Abre suas anotações aproximadamente na metade, final do mês de agosto.
- Olha, este foi um dos melhores anos que eu anotei! Fazia questão de marcar até os segundos, olhando este relógio que tenho em meu pulso até hoje! Nunca falhou comigo! Neste ano os trens poucas vezes atrasaram mais de 2 minutos, mas vê estas anotaçoes do lado? A maioria dos atrasos eram justificaveis: gente demais embarcando, um boi atropelado na linha... Ah, 17 de setembro! Lembro muito bem deste, uma mancha de 15 minutos nos registros até então impecáveis deste ano.
Dava para perceber que a tal "mancha" realmente afetava Seu Bosco.
- Lembro bem! Uma rapariga entrou em trabalho de parto logo depois de embarcar em seu vagão. Quinze minutos de atrazo até o trem partir!!! Que vergonha...
Vendo o olhar de desgosto de Seu Bosco, me perguntei se ele também estaria preocupado com a moça que deu a luz naquela situação tão inusitada, ou ainda se ele sabia do paradeiro do bebê. Mas segurei minhas perguntas, poiis não era a melhor hora de entrar em comflito com o fiscal de trem.
- Seu Bosco, estes registros me seriam muito úteis, se o senhor pudesse me emprestá-los para...
- Estes livros são meus bebês! Não saem daqui de jeito nenhum!
- Mas...
- Filho, posso te deixar consultá-los com minha supervisão. Só que retirar daqui de minha casa, isto nunca!
Todos os meus argumentos foram em vão. O bom velhinho não estava disposto a ceder. Comecei a estudar a tranca das portas, as janelas, procurando uma maneira de, quem sabe, tomá-los "emprestados" durante a madrugada, sem o conhecimento de seu zeloso guardião, mas... Não! Eu seria incapaz de fazer isto! Torturar meu melhor amigo com o disco de sua banda favorita, tudo bem. Mas invadir a casa de um pobre velhinho na calada da noite para surrupiar livros que eram seus tesouros? Não, eu também tenho meus limites...