Abdução


Mais um dia nascia. O sol preenchia tudo de dourado, o céu embranquecido ia ganhando aos poucos sua tonalidade azul característica quebrada somente por algumas nuvens cirros esparsas. Era um céu normal, absolutamente normal. Era o céu que eu queria ver.
- Nada de novo meu amor – disse Pedro olhando para mim enquanto dirigia.
- Calma, o dia está apenas começando.
- Bem, de qualquer forma acho melhor procurarmos abrigo.
Eu concordei. Acabávamos de entrar em outra cidade, Barbacena, a cidade das rosas.
- Pena não poder admirar os campos de flores a luz do sol.
- Não se preocupe, talvez voltemos aqui um dia quando tudo isso acabar – ele me falou enquanto vasculhava o céu com o olhar.
Olhei para o banco detrás, onde estava nosso filho Felipe. Senti um grande aperto dentro do peito, aquilo acabaria um dia?
- Vamos parar aqui – disse Pedro estacionando o carro no meio de uma avenida – aquela casa parece estar aberta, vamos para lá.
Pedro e eu olhamos uma última vez para o céu, nenhum perigo. Ele pegou o pequeno Felipe no colo enquanto eu pegava o rádio.
Chegamos à porta da casa e como suspeitávamos ela estava aberta.
- Entre Lúcia.
Eu entrei, meus olhos habituados à escuridão percorreram rapidamente o ambiente, tudo impecável, a casa estava limpa e arrumada, como se nunca houvesse sido abandonada um dia.
- Pelo visto eles nem tiveram tempo de voltar para casa – Pedro observou – vou olhar lá dentro, ver se acho uma cama para nosso pequeno Felipe.
Enquanto Pedro levava Felipe eu vasculhei a sala daquela casa. Era bonita, com um mobiliário simples, mas de bom gosto, lembrava nossa casa em Brasília. Nada demais, televisor, som, mesa de centro e muitos livros e, como na nossa casa, um deles era uma grande bíblia, uma bíblia aberta.
- Eram exatamente como nós – eu disse em voz alta.
- O que eles eram? – disse Pedro entrando na sala – achei uma cama para o Felipe e bem ao lado tem um quarto de casal, vamos ficar perto dele. Mas o que você disse que eles eram?
- Eu disse que eles eram como nós, eram como nós éramos.
Pedro olhou a grande bíblia e suspirou.
- Você sabe, talvez eles estivessem certos e nós errados...
- Eles estavam errados Pedro, eu já lhe disse isso.
- Como pode ter certeza?
- Não vamos discutir isso de novo Pedro, estou cansada.
- Não fuja de novo Lúcia. Você sempre foge, sempre fugiu.
- Não estou fugindo Pedro, apenas não quero mais discutir esse assunto.
- Por que não Lúcia? Desde que tudo isso começou você  deixou suas obrigações na igreja. Isso mexe com sua fé, não mexe?
- Como pode dizer isso? Eu sempre tive fé.
- Isso você teve. Hoje não tem mais. Se tivesse não teria me obrigado a fugir com você, teria obedecido ao chamado de Deus.
- Deus? Você acredita mesmo ser Deus por trás de tudo isso?
- É a Sua Palavra se cumprindo Lúcia. Não vê, os grandes sinais no céu, as pessoas sendo levadas no campo, na cidade e no trabalho. É o arrebatamento!
- Você não percebe Pedro – não, Pedro nunca percebia, tivemos aquela discursão inúmeras vezes – não entende, isso não tem nada a ver com a bíblia. Não percebe que todos estão desaparecendo. Todos! Isso inclui não só os cristãos, mas muçulmanos, hindus, judeus, todos.
- Deus em sua infinita sabedoria sabe que esses povos não conheciam ainda Sua Palavra.
- Ah é? E o que dizer dos ateus? E dos comunistas? Não se lembra de ver na TV, todos os países foram atingidos.
- Ah Lúcia, onde está a mulher cheia de fé com quem me casei? Aquela que cantava louvores ao Senhor? Não percebe que todos esses ímpios podem ter se arrependido assim que viram os sinais?
- E o que dizer dos mortos Pedro? - Sim, havia mortos, muitas cidades pelo mundo estavam sendo destruídas e ouviamos relatos de que muitas pessoas eram retiradas a força de seus abrigos - Deus não faria isso.
- Não vê que o inimigo quer nos confundir Lúcia? É a grande tribulação. Mas é Deus, é Deus que está no comando de tudo isso.
- Não Pedro, Deus não separaria famílias, Deus não espalharia o medo e o caos. Não foi esse o Deus que eu aprendi a gostar. Aliás, o Deus que eu amei talvez nunca passasse de uma invenção.
Depois disso ouvi apenas uma bofetada.
- Não diga isso mulher!
Eu não me contive, Pedro nunca me bateu antes, olhei para ele assustada e comecei a chorar.
- Oh Lúcia, desculpe – disse ele me abraçando e começando a chorar também – essa situação está nos enlouquecendo, nossa fé está sendo testada, mas Deus sabe que resistiremos, Ele está aí fora observando tudo.
- Não tenho certeza se é ele que está aí fora Pedro – imediatamente após ouvir isso Pedro me soltou.
- Não Lúcia, agora pare com isso você, não venha com essa história de abdução de novo. Alienígenas? Seres superiores a nós, imagem e semelhança do Senhor? Impossível.
- Eles existem Pedro, eu sei...
- Você esta louca! – e Pedro afastou-se.
Alienígenas, não Deus. Abdução, não arrebatamento. No início da crise as pessoas realmente acreditaram em alienígenas, o número de avistamentos de óvnis cresceu assustadoramente no mundo todo, grandes sinais eram vistos nos céus dos cinco continentes, nunca à noite, mas sempre durante do dia. No início tudo isso despertou curiosidade, as aparições tornaram-se comuns sobre as grandes cidades, os governos não sabiam o que fazer, ninguém fazia ideia do que eram, os ufólogos logo apareceram dizendo que bem que nos avisaram.
Enquanto o mundo perguntava-se o que ocorria nós, cristãos, corríamos as igrejas, conversões eram feitas em massa, todos apregoavam o Apocalipse. “Grandes Sinais nos Céus”, diziam os pastores, na época eu e Pedro nos vangloriávamos de pertencer a uma congregação.
Então começaram os desaparecimentos. Os sinais no céu, grandes redemoinhos de luz, surgiam em determinadas regiões do mundo e todos aqueles que saiam para observar desapareciam, tudo sempre a luz do dia. No começo acontecia em regiões rurais e pequenas vilas e cidades, mas o fenômeno foi se espalhando até levar pânico ao mundo todo. Cidades inteiras estavam ficando desertas. As comunicações começaram a cair, primeiro a internet, depois a TV e os telefones, somente alguns radioamadores ainda transmitiam, mas havia semanas que eu e Pedro não ouvíamos nada.
Parecia que só restávamos nós dois. Desde que saímos de Brasília só encontramos uma pessoa viva, foi na grande Belo Horizonte, mas foi no dia em que surgiu um vórtice no céu, vimos o homem pela manhã, mas a tarde ele havia desaparecido.
- Devíamos ter ficado em Brasília com os outros. Agora vamos sofrer a grande tribulação com os outros rejeitados – Pedro explodiu de repente.
- Que outros Pedro?
- Ora, que outros? Você não quer chegar ao mar? Não diz que seus amigos do rádio estão lá? São todos uns condenados.
Sim, meu plano era chegar ao Rio de Janeiro, recebemos algumas transmissões de lá, havia outros.
- Deixa eu te falar minha cara – Pedro agora gritava – não há ninguém lá, por que os que lá estão são condenados, escolheram seguir o inimigo ao invés de Deus, por isso não foram levados ainda. E nós, nós estamos agindo assim também, atraindo a ira do Senhor para nós e nosso filho!
Eu sabia que ele estava errado, mas também podia estar certo. Quantos de nós até partiram para os locais onde os sinais eram vistos só para terem a chance de serem arrebatados? E quando eles surgiram em Brasília quase toda nossa congregação, junto com várias outras, se reuniu na Esplanada dos Ministérios para ser levada em corpo e espirito. Lembro-me daquele dia, Pedro estava radiante, o desejo de uma vida se realizava, mas eu não, tranquei-me com o pequeno Felipe no quarto até tudo passar, Pedro não ousou nos deixar.
Agora seguíamos os três para o Rio de Janeiro, sempre a noite, descansando durante dia em cidades desertas e apropriando-nos dos carros abandonados que encontrávamos na estrada, agora só faltava mais alguns quilômetros.
Ouvi um barulho vindo de dentro e parei meus pensamentos.
- Pai? Mãe? Vocês estão brigando de novo? – era meu pequeno Felipe, a razão de minha vida, o combustível que mantinha-me sempre em frente.
- Não meu filho – disse eu tentando disfarçar as lagrimas, Pedro apenas virava o rosto.
- Não chora mamãe – disse meu pequeno filho – papai disse que em breve estaremos com o Senhor.
Eu olhei para Pedro que sorria triunfante. Ele tinha mais influência sobre o pequeno Felipe do que eu e sei que um dia ele o tiraria de mim.

Nunca havia colocado os pés no Rio de Janeiro antes, agora que descia a serra de Petrópolis sozinha pensava no que encontraria lá, talvez alguém me esperando ou talvez uma imensa cidade só para mim. Descia a estrada com cautela, havia muitos carros abandonados, gostaria que fosse dia, ouvira falar que a vista era marcante, mas a noite era apenas a estrada.
Algumas curvas eram bem fechadas, olhei para o banco detrás instintivamente, como para averiguar que quem estivesse ali estivesse seguro, mas era inútil olhar, o banco traseiro permanecia vazio, naquele carro só havia eu.
Pedro me traiu, levou o que eu mais amava, meu filho Felipe. Foi quando passamos por Juiz de Fora, surgiu um vórtice luminoso no céu, ele aproveitou que eu dormia, pegou Felipe e saiu com ele. Quando percebi os dois já estavam lá fora banhados em luz.
- Vem mamãe, vem! – ouvi meu filho chamar.
Mas tive medo. Vi meu filho e meu esposo desaparecerem na frente de meus olhos e nada fiz. Como pensei em ir atrás, dar as mãos ao meu filho, ser arrebatada com ele, mas naquele momento não tive coragem. Chorei muito, chorei e me culpei, a mãe que abandonou o próprio filho. Mas não havia mais volta, na mesma velocidade que surgiu, o vórtice desapareceu.

Rio de Janeiro, cidade maravilhosa. Estou aqui há dias. Conheci todos os pontos turísticos que a há pra conhecer, o Pão de Açúcar, as praias de Ipanema e Copacabana, fiz até uma visita em Niterói pela ponte. Eu tinha todo o tempo do mundo, e estava sozinha, tinha alimento de sobra, era só visitar os grandes supermercados. Porém havia um lugar que eu não tinha ido ainda, a atração maior da cidade, imponente em seu cume lá estava o Cristo.
Durante anos aprendi que aquilo não passava de um ídolo, um falso Deus de uma igreja corrompida e atrasada, mas não era o mesmo Deus da nossa igreja? Eu deveria ir lá, mesmo que fosse falso ainda havia uma ideia propagada por aquele ser, e essa ideia levou embora minha família.
Não foi difícil descobrir como o trenzinho funcionava. Ele fazia agora provavelmente sua última viagem. A vista lá de cima era linda, mesmo a noite, muitas luzes da cidade teimavam em ficar acessas.
“Provavelmente todas as cidades do mundo ainda brilham, mesmo vazias.” Pensei sozinha.
Cheguei ao meu destino, subi as escadas rolantes agora desligadas. Me pus aos pés do Cristo.
- O que vem agora? – perguntei.
Estava sozinha, eu e uma grande estatua de pedra. Olhei para meu relógio, faltava pouco para o amanhecer.
- Acho que chega de me esconder Senhor.
Sentei-me aos pés do Cristo. O mundo aos poucos ia se iluminando. Uma vista espetacular abria-se a meus olhos.
- É um belo mundo – eu disse – se o Senhor existe, então caprichou.
O céu foi se tornando mais claro, era linda aquela paisagem cercada de verde, montanhas e um mar de um azul profundo.
Mas aos poucos percebi algo fora de contexto. Um grande vórtice formava-se no céu.
- Arrebatamento? Não para mim.
Uma luz intensa iluminou o Corcovado, enquanto se aproximava eu pude distinguir grandes contornos arredondados e metálicos.
- Essa não é a carruagem de fogo do profeta Elias – disse eu.
Olhei para o rosto do Cristo iluminado em sua majestade.
- Se o Senhor não vai me levar, eles também não.
Não queria o arrebatamento, mas também não queria a abdução.
Sob o olhar de pedra distante e indiferente do Cristo, me atirei do despenhadeiro antes que qualquer força alienígena me erguesse no ar.
Depois disso, nada mais.
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 15/03/2012
Reeditado em 30/03/2012
Código do texto: T3556813
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