DISTROPIA - Capítulo 7

Inútilmente tentei evitar a explicação óbvia de toda maneira imaginável: histeria coletiva, disturbio neurológico meu, brincadeira de mal gosto muito bem orquestrada... nenhuma delas se mantia! A explicação, simples embora inusitada, era uma só: nada de errado havia com o resto do mundo, era EU que, sabe-se lá por que, estava vivendo de trás para a frente! Eu percebia o futuro do universo se tornando presente e continuando a avançar em direção ao passado! Tudo continuava normal, era o observador que estava invertido! Por isso via relógios correndo ao contrário, carros avançando quando engatados em ré, chuva subindo, chamas congelando ao serem tocadas, pessoas falando de trás para a frente... Nada demais, tudo continuava como sempre foi! Era EU, o observador disso tudo, quem estava errado!

Caminhando em direção ao consultório do Dr. Karnot, as implicações deste novo mundo doido não paravam de rodopiar em torno de minha cabeça. A simples idéia básica de causa e efeito, para mim, não tinha mais o sentido usual! Eu observava o efeito antes de presenciar sua causa! Por quanto tempo mais eu conseguiria viver assim mantendo minha sanidade? Apertei o passo.

"Ande para trás!!" Sábio conselho! Os transeuntes pararam de ficar me olhando estranho depois que resolvi segui-lo. Embora provavelmente achem estranho eu a todo momento olhar para trás. Não posso evitar! Só assim consigo caminhar sem trombar com nada...

Consegui chegar seguro ao consultório. A porta se abriu antes mesmo de eu pensar em bater nela. Esse era então o famoso Dr. Karnot... Sessenta anos, talvez? Barba preta, cabelo grisalho... Seria a barba tingida? Não, que sentido teria alguém pintar a barba e manter os cabelos na cor original?

- Tchau, Irazés!

Tchau? Como assim?

- A sim! Me desculpe! Seja bem vindo!

Era a primeira vez que o via, mas me tratou como velho conhecido. Sim, de fato neste mundo invertido meu futuro era o passado dele. Já deveria ter se encontrado comigo inúmeras vezes, apesar de nada disso ainda ter acontecido para mim...

- Sente-se! Imagino ser este nossa última conversa. Bom, não tenho como saber... Não sou adivinho. Me responda você então!

- Responder o quê?

- Sente-se! Imagino ser este nossa última conversa. Mas não tenho como saber, pois não sou adivinho. Me responda você!

Um silêncio de incompreensão. Por que ele se repetia?

- Ah lógico! O diálogo bidirecional... Você ainda vai me propor isto daqui a alguns dias. Do seu ponto de vista, óbvio! Eu já o conheço, e já estou usando-o, como você mesmo me propôs... quer dizer, vai me propor!

Ah não! Que papo de biruta!!! Que chance teria eu de resolver meu problema, me consultando com um psiquiatra ele próprio doido? "Calma, César! Calma! Pensa ao contrário! Pensa ao contrário!" Não é tão fácil quanto parece!!!

- Esse... diálogo bidirecional, doutor. Do que se trata?

- Irazés. Você já deve ter percebido este fato, não é? Que meu passado está no seu futuro, e vice-versa.

- Sim, acho que... sim!

- Causa e efeito invertidos. Entende isso? Minha pergunta está no SEU futuro. Você não pode respondê-la porque ainda não a conhece. Eu preciso repetir a pergunta depois de ouvir sua resposta, para que ela possa estar no SEU passado!

- Lógico! - de repente tudo ficou claro! - Entendo a idéia, doutor!

- Causa e efeito invertidos. Entende isso? Minha pergunta está no SEU futuro. Você não pode respondê-la porque ainda não sabe dela. Eu preciso repetir a pergunta depois de ouvir sua resposta, para que ela esteja no SEU passado!

Eu tento me lembrar de minha frase anterior. O Dr. Karnot parecia já bem familiarizado com o processo. Eu ainda estava aprendendo. Foi idéia minha, ele disse? Como assim? Ah, lógico! Eu ainda vou ter esta idéia! Mas ele já sabe do meu futuro...

- Sim, acho que sim!

- Irazés. Você já percebeu este fato, não é? Meu passado estar no seu futuro, e vice-versa.

Me esforço para dar sequência ao protocolo. O que eu disse antes mesmo? Ah, sim:

- De que se trata este diálogo bidirecional, doutor?

- Ah lógico! O diálogo bidirecional... Você ainda vai me propor isto daqui a alguns dias. Do seu ponto de vista, óbvio! Eu já o conheço, e já estou usando-o, como você mesmo vai me propor!

Neste encontro inicial, pedi licença para usar um bloco de anotações. Ainda não estava familiarizado com o processo, precisava anotar! "Diálogo Bidirecional". Sublinhei várias vezes o termo novo. Idéia minha? Se o Dr. Karnot estava me ensinando agora? Bom, aceitei que tudo fazia parte da simetria: se ele me ensinou agora, era só porque eu precisaria lembrar de ensiná-lo mais tarde! Relaxem, vou poupá-los das repetições. A conversa que se seguiu foi a seguinte:

- Nos conhecemos a bastante tempo, não é doutor?

- Me chame de Karnot!

- Mas acabo de conhecê-lo! É estranho...

- Você se acostuma! Não tem escolha. Se te servir de consolo, algo parecido aconteceu quando te conheci: você me tratando como velho camarada, e eu sem a mínima idéia de quem era aquele na minha frente, contando aquela história tão absurda de tempo correndo ao contrário...

- Então o senhor já sabe disso?

- Você mesmo me contou! Ah, desculpe: ainda vai contar...

Sim, estava tudo confuso. Não esperava me adaptar logo na primeira conversa!

- Como isto tudo aconteceu?

- Já passamos por isso! Já te expliquei! Já foi inclusive resolvido! Lógico que você ainda não sabe, pois meu passado é seu futuro... Só lhe digo isto: tenha paciência, meu amigo! Tudo vai dar certo!

Isto não resolvia nada. Mas aquela afirmação "tudo vai dar certo" era tranquilizadora, de certa forma.

- Você me pediu para não te revelar informações do seu futuro, que eu conheço.

- Por que pediria isto? Quero saber sim!

- Vai mudar de idéia! Vai me pedir para não fazê-lo!

- Por que mudaria de idéia? Quero saber sim!

- Você me pediu para não revelar informações que eu conheço do seu futuro.

Levantei-me, e pus-me a caminhar pelo consultório. O psiquiatra pareceu não se importar com o fato de eu caminhar para a frente. Ele entendia minha situação, não havia motivo para eu ocultar nada dele. Como bom anfitrião, vi que ele se esforçava para agir "ao contrário", do seu ponto de vista, para me deixar mais confortável. Mas vi que não lhe era fácil andar para a frente, pois para ele estava andando para trás.

- Fique à vontade na minha presença, doutor. Aja naturalmente! Preciso me acostumar com isso, né?

Ele logo diz, embaraçado.

- Me desculpe, Irazés! Esqueci completamente!

- Desculpas de quê?

Ele simplesmente repete:

- Me desculpe, Irazés! Esqueci completamente!

Vejo ele levantar uma pequena xícara de café vazia e levar até a boca. O líquido negro sai fumegante de sua boca, enchendo o pequeno recipiente. Ele se levanta, pega a xícara cheirosa de cafeína sobre a mesa, e caminha de costas até a pequena cozinha numa porta ao lado do consultório. Tento não reparar muito, mas não posso evitar de vê-lo aproximando a garrafa de café da xícara, e ver o líquido quente subindo em direção à garrafa. O doutor volta como se nada tivesse acontecido. Caminha para a frente, o que me faz concluir que, para ele, estaria caminhando para trás, se esforçando para me deixar confortável.

- Irazés, meu amigo! O que o traz aqui?

Esboça um sorriso, sem graça.

- Ah que falha a minha! Você já estava aqui, né?

- Sim, doutor! Já estava...

- Ah que falha a minha! Você já estava aqui, né? - um sorriso sem graça. - Meu amigo Iraréz, o que o traz aqui?

Eu não estava ainda preparado para uma conversa mais profunda. Bom conhecer o Dr. Karnot, meu velho futuro amigo. Mas ainda precisava dar um tempo para digerir as novidades todas.

- Doutor, ainda estou confuso demais! Vou embora, preciso pensar um pouco mais sobre esta minha situação.

- Um passo de cada vez, amigo! Fique à vontade!

"Diálogo bidirecional", lembrei. E repeti:

- Doutor, ainda estou confuso demais! Vou embora, preciso pensar um pouco mais sobre esta minha situação.

- Você me pediu para lembrar daquele detalhe da campainha do telefone!

- De chamar de novo ao fim da conversa, para eu atender o aparelho?

- Você me pediu para lembrar daquele detalhe da campainha do telefone!

Ah, estranhíssimo mundo! Ao menos agora eu tinha um amigo que ao menos se esforçava em entender minha situação.

- Ótimo te encontrar, doutor! Mas preciso voltar agora, digerir isto tudo. Volto amanhã, eu acho...

- Sim, você vai voltar!

- Como???

- Ah, desculpe! Esqueci: não contar seu futuro! Não esqueci mais disso. Digo: não vou esquecer mais disso!

Bom, as frases prosseguem palíndromas daqui em diante! "Como???", eu lembro de repetir. A conversa foi bem esclarecedora! Ao menos agora eu estava certo da situação absurda na qual me encontrava. Estava mesmo passando por ela, não era produto de minha imaginação! Mais que isso: tinha a afirmação de alguém, conhecedor de meu futuro, me garantindo que tudo se resolveria. Isto tornava a vida de trás para a frente um pouco mais suportável. Era reconfortante saber que uma hora isto acabaria...