Cyber-Intifada
Nossa luta por décadas se serviu das armas mais arcaicas: pedras, bombas. Era a hora de nos atualizarmos, de lutar o combate no terreno do século XXI, o terreno da virtualidade, da informática. Obviamente precisávamos contar com ajuda externa, mas havia uma rede de ativismo cibernético que tinha a nossa como uma das principais causas por justiça global. Afinal, nosso território fora usurpado, e mesmo o pouco que nos restou está sob ocupação há quarenta e cinco anos. Ainda assim, era uma luta de Davi contra Golias, se me permitem usar a mitologia deles. Éramos oito hackers: eu em Beirute, um em Tel-Aviv, três nos Estados Unidos, dois na Alemanha e um na Finlândia, contra os sistemas do maior banco israelense, de uma companhia aérea e da bolsa de valores de Tel-Aviv.
Era preciso evitar rastros, então íamos nos comunicar por telefones públicos e atuar de forma mais ou menos independente. Eu escolhi um café, desses com sinal sem fio, onde alguém com um computador não despertaria suspeita alguma. Meu número tinha sido informado ao líder da operação, que estava em Boston. Eu já havia estudado o sistema da bolsa de valores o máximo que era possível sem ser detectado, mas havia muito por descobrir no caminho. Pedi um capuccino e olhei no relógio: em dez minutos Boston ligaria com instruções.
Corri para atender quando o telefone, que havia sobrevivido às imposições da modernidade, soou sua campainha mecânica. Beirute, você precisa quebrar o backbone dedicado, acessar o inventário de operadores e gerar uma lista com os IPs fixos, que vai ser armazenada no servidor da Finlândia. Depois que ele elaborar o script, você vai ser acionado mais uma vez para rodar o Trojan e monitorar a operação. Ligue se alguma coisa sair do programado. Copiado, Boston. Falávamos em inglês.
Era exatamente o que eu imaginava: a ideia era invadir o sistema, ter acesso a todos os operadores, milhares deles, bancos, corretoras, particulares, e invadi-los com um Cavalo de Tróia que acessaria de forma autônoma o sistema da Bolsa, causando uma sobrecarga que o faria colapsar. Parece simples. Fechei a janela de rede social, pensando bem nem foi uma boa ideia abrir, abri o Prompt do DOS: nada de interface visual para essas peraltices. Foi preciso localizar o backbone dedicado, que mudava de endereço por medidas de segurança; como eu conseguira copiar a estrutura de rede previamente, bastou rodar um mecanismo de busca, o que demorou um pouco. Pedi um espresso e acendi uma cigarrilha, acessei a página da Bolsa na wikipedia, por mera distração, já havia extraído as principais informações. Havia uma história de um dia, nos tempos de inflação, em que a procura por ouro foi tão grande que eles tiveram que fechar as portas. Bacana.
O programa encontrou o backbone, eu tinha poucos minutos para quebrar a senha antes que o endereço fosse alterado. Pelo que tinha levantado, a melhor tática seria atacar com o Intruder 3.0 com busca hexadecimal de ponto flutuante, o que havia de mais recente em invasão "macia" como chamamos: não saía quebrando tudo, sutil e elegante. A ciência da criptografia é um jogo de gato e rato às avessas: nós somos o rato que persegue o gato gordo com perspicácia e astúcia. Meu tempo estava se esgotando, eu estava nervoso. De repente, funcionou: apareceu para mim uma lista que representava todos os subsistemas da Bolsa de Tel-Aviv. Arrisquei o que seria o comando mais óbvio para obter o inventário de operadores, não deu certo. Tive que percorrer a lista no olho, por sorte estava quase no topo, disparei: ótimo. Poucos segundos foram suficientes, e em frações eu já havia subido os dados no servidor de Helsinque.
Corri até o telefone, estava ocupado, e só havia um. Quem ainda usa telefone fixo! Além de nós, claro. Não podia perder tempo, então mandei uma mensagem direta para Helsinque. Agora eu só tinha que esperar: o programa que invadiria os operadores precisava ser adaptado aos dados obtidos, e Helsinque era o especialista nessa área. Pedi outro café, mas antes de terminar o telefone tocou, fui atender. Beirute, a ordem era sem mensagens, você põe a todos em risco! Sim, Boston, eu... o telefone... Escuta: consiga outra conexão, está entendendo? Outra conexão. Outra coisa, você visitou sua rede social daí, o que você tem na cabeça? Boston, foi apenas... tudo bem, eu não deveria, não se repetirá. Estou partindo agora, preciso de quinze minutos. Desliguei sem me despedir, paguei a conta no balcão, e ia saindo quando me toquei que Helsinque, ou mesmo Boston, não teria meu novo número. Pesquisei o telefone de outro café, liguei e obtive o número do telefone público, liguei para Boston e passei a informação. O trânsito já estava melhor àquela hora.
Cheguei ao outro café amaldiçoando a mim mesmo, e me instalei perto do telefone: era moderno, sem o charme do outro. Pedi um café duplo e uma senha para me conectar. Eu não precisava na verdade esperar o contato de Helsinque, batava consultar a base e ver se o programa estava lá: estava. Mesmo assim aguardei. Acendi outra cigarrilha, o telefone tocou: era a ordem de ir adiante, com sotaque nórdico. Eu precisava achar o backbone outra vez, não estava conseguindo, fiquei preocupado: será que minha invasão tinha sido detectada? Alguns sistemas de defesa são capazes de modificar a estrutura de rede quando atacados. Experimentei outro programa, que funcionou, para meu alívio.
Agora vinha minha tarefa mais difícil: mais do que extrair dados, eu precisava obter privilégio de administrador para rodar um programa. Era mais uma tarefa para o Intruder 3.0, mas antes eu tinha que percorrer a lista em busca do comando adequado, e mais uma vez tive dificuldade: o tempo corria contra mim. Aqui está, só pode ser este, rodei o programa, que levou um tempo até quebrar a senha. Faltavam poucos segundos para cair minha conexão quando introduzi o Cavalo de Troia no ultra-seguro sistema da Bolsa de Valores. Eu me achava o máximo, e um grito que me escapou chamou a atenção dos usuários do café, absortos em qualquer bobagem em seus próprios micros. Mandei executar: outra senha. Caramba. Eu teria que repetir a invasão e quebrar mais aquela barreira. O telefone tocou.
Expliquei a Boston a situação, estava muito próximo, mas estava ficando cada vez mais arriscado. Sentei-me de volta, pedi água. Pacientemente repeti os passos necessários, executei o Intruder e esperei: sucesso! Cortei a conexão, agora podia monitorar desde fora. Liguei para Boston: Feito e feito. Agora você espera a confirmação da queda e foge no primeiro voo para qualquer capital europeia. Copiado. Voltei ao computador e abri um site israelense de notícias financeiras; monitorava as estatísticas do sistema da Bolsa: os acessos cresciam em velocidade exponencial, um sorriso triunfante não deixava meu rosto. Estava exausto e saí um pouco para ver o sol, fazia calor e as pessoas prosseguiam com sua vida. Pedi mais um capuccino e acendi outra cigarrilha. Antes de terminar de fumar, o site anunciou o colapso do sistema da Bolsa. Ergui os braços mas contive desta vez o grito. Paguei a conta e dirigi-me ao carro.
Cheguei ao aeroporto, comi alguma coisa e fui até o balcão da empresa aérea. Estava nervoso, mas era impossível que fossem rápidos o bastante para me pegar, mesmo eu tendo... enfim, chegou minha vez. Vocês têm voo para Madri ainda hoje? Na verdade, esse voo é operado pela El Al e eles têm algum problema hoje... Minha espinha gelou: não tinha pensado nisso! Londres? Paris? Todos? Tentei disfarçar meu aborrecimento, e agradeci educadamente à atendente. Eu precisava ir para algum lugar, voltei pro carro e rumei para a rodoviária.
Olhei no retrovisor e tive a impressão de que um certo carro já estivera atrás de mim no caminho para o aeroporto. Fiz uma conversão à direita, só para experimentar, ele me seguiu. Merda. Merda. Merda! Eram eles: a Mossad não brinca em serviço. Estou perdido. Meu pânico não me permitia pensar direito, encostei em um posto de gasolina e saí andando por um terreno baldio. Minha ideia, ainda que meio difusa, era fingir um ataque e pedir socorro em alguma casa, havia um conjunto habitacional dali a alguns metros. Olhei para trás, eles me seguiam de perto. Não pensei duas vezes, alcancei algumas pedras no chão e comecei a arremessar na direção deles. O destino dá umas voltas irônicas por demais às vezes.