Negócios, Como Sempre
I
Lembrou-se dos amigos que o esperariam em vão para um jogo de cartas, logo após tomar a segunda bofetada, com as costas de uma mão enluvada. Obviamente pensava no desespero que viveria sua jovem esposa desde o momento em que foi abordado por três mascarados e jogado dentro de uma van de carga. Foi saindo da sede da empresa, já de noite, numa rua pouco movimentada que precisava tomar para chegar à estação de metrô. O líder dos sequestradores, que em momento algum pôs as mãos nele, voltou a perguntar pelos arquivos. À medida que o veículo fazia curvas, ele, de mãos atadas, era jogado de um lado para o outro. Em seu estado de pânico, era difícil pensar em respostas que lhe ganhassem tempo sem comprometer o segredo industrial de sua recente descoberta. Respondia que não estavam em seu computador portátil, o que era verdade - nenhuma empresa o permitiria - e foi finalmente constatado pelo terceiro bandido, que jogou o aparelho pela janela.
Naqueles tempos, havia uma indústria farmacêutica bilionária, e uma contraparte que não ficava atrás, apenas funcionando no subterrâneo, no nexo do crime organizado. Não só esta fazia troça de patentes de medicamentos comuns, mas lucrava principalmente com drogas ilícitas, que surgiam e eram proscritas a uma taxa assustadora, bem como suprindo uma demanda reprimida por medicamentos controlados. Como sempre, essas drogas nasciam no âmbito científico, com a melhor das intenções geralmente, e escapavam de todo controle: as organizações criminosas tinham bons profissionais, métodos eficientes, e nenhum escrúpulo, como já pudemos constatar. É o caso da serenina, substância sintetizada pelo laboratório onde Jeff Floods trabalha.
A van finalmente parou; a porta foi aberta e ele foi arremessado para fora, caindo de cara num chão de cascalho fino. Um pouco de sangue escorria de sua boca. Recebera pancadas cada vez mais fortes ao replicar às ameaças dizendo que o relatório de sua pesquisa estava no computador central da corporação farmacêutica, sob três senhas das quais ele só tinha uma, o que era invenção sua - mas eles não poderiam verificar no momento. O líder aproximou seu rosto mascarado do dele - Jeff só viu distintamente os olhos castanhos, calmos como os de um sacerdote. De um jeito ou de outro nós conseguimos o que queremos, Sr. Floods. É melhor cooperar. A um sinal, os dois capangas o arrastaram para dentro de uma casa, muito afastada de qualquer outra, de arquitetura antiga; foi depositado em um sofá.
Pediu água. Trouxeram e desataram-lhe as mãos. Como queria agora ter um comprimido de serenina. Verdadeira droga milagrosa, tinha o efeito de desativar os circuitos da ansiedade, e era usada de modo bastante restrito em hospitais psiquiátricos, mas rapidamente os usuários de drogas sintéticas, psicodélicas especialmente, descobriram que o uso associado de serenina garantia uma viagem confortável. Num segundo momento, pessoas que rechaçariam com horror a pecha de "drogado" passaram a municiar-se de um comprimido para qualquer situação estressante. Ligaram uma televisão: beisebol; ele não conseguia prestar atenção. Por momentos intermináveis, ficaram todos lá, em silêncio, ele mal abafando os soluços. Súbito, um quarto homem chega, trazia pizzas. Ele está vindo, anuncia. Revezavam na sua guarda, para comer, e ofereceram o que sobrou. Jeff não tinha apetite, e exausto, acabou adormecendo dali a instantes.
II
Acordou sobressaltado com alguém batendo palma bem em frente a seu rosto. Seu corpo doía, pela posição inadequada e pelo rapto violento horas antes. Consultou instintivamente o relógio: passava pouco das três. Haviam posicionado uma poltrona à sua frente, na qual se sentava, encarando-o com um ar de escárnio, um senhor de meia idade, pouco mais velho que ele mesmo; não cobria o rosto. É um prazer enorme conhecer um colega tão brilhante, Sr. Floods. As informações que temos são deveras promissoras. Mas não há por que nos apressarmos, o senhor aceita um chá? Jeff assentiu com a cabeça. E o estranho sinalizou a um dos capangas; traga um copo d'água também. Com muito vagar, cortou e acendeu um charuto enorme. Eu sei que o senhor não fuma. Aceita talvez um... destes? E sacou do bolso do sobretudo um comprimido azul-esverdeado. Vai ajudá-lo. Jeff esfregou os olhos, espreguiçou-se, e estendeu a mão direita.
Chegaram um copo d'água e duas canecas com a etiqueta do saquinho dependurada para fora. Jeff reconsiderou e disse que não tomaria o comprimido, ao menos por agora. Sabia que o remédio era de uso controlado por bons motivos: teria, ou poderia ter, após cessado o efeito tranquilizador, taquicardia e sudorese, e que se rebatesse a dose teria problemas de sono e eventualmente até paranoia (podia pensar que alguém queria sequestrá-lo, esboçou um sorriso auto-irônico). Como preferir, meu caro. Bem, eu não me apresentei. Nem posso, espero que entenda. Mas pode me chamar de Charles por enquanto. Como disse, eu também sou químico, e tomei a liberdade de dar uma olhada... e fez sinal novamente, ao que trouxeram um computador "de colo", como dizem. Jeff reconheceu o aparelho e arregalou os olhos; significava que haviam entrado em sua casa.
Jeffrey Portmouth Floods havia abandonado o ramo dos cosméticos para dedicar-se a um doutorado em psicofarmacologia, em uma prestigiosa universidade, e foi prontamente contratado pela Alora Inc. Um de seus primeiros projetos foi exatamente o que lhe traria tamanho infortúnio. Um medicamento que representava uma fonte importante de receitas para a corporação: tinha alto de valor de mercado, seja pela demanda oficial ou pela paralela, mas também alto custo de produção. A ideia era aperfeiçoar e baratear o processo de síntese, e Jeff logrou um avanço decisivo. O projeto era altamente sigiloso, mas pensando bem agora, tivera uma conversa no restaurante da sede - que lhe parecia seguro - em que celebrava seus resultados. Era a única explicação para que a informação, tão recente, tivesse vazado. Os tentáculos da máfia farmacêutica eram implacáveis, e eles também buscavam uma forma barata de produzir a serenina, uma vez que, as coisas como estavam, saía mais barato pagar os costumeiros subornos para obter a droga do que fabricá-la nos laboratórios clandestinos.
Do bolso da camisa, tirou o comprimido e alcançou o copo d'água. O temor pela segurança da esposa o desestabilizava ainda mais. Providenciaram uma cadeira para o computador, e Charles mostrou a Jeff uma tela que ele conhecia bem. Aquela era uma parte acessória da pesquisa, quanto a isso estava tranquilo. Por isso, não exitou em explicar ao, por assim dizer, colega o processo químico que na verdade apenas evitava a degeneração de uma substância intermediária. Mas a pergunta inevitavelmente veio: como transformar um benzodiazepínico corriqueiro na droga revolucionária, e sem o concurso de uma enzima que apenas podia ser obtida de pacientes em morte cerebral. Jeff insistia no silêncio; Charles se levantou e foi até a mesa onde deixou a caneca e o charuto, em um cinzeiro. Apenas deu de ombros, e Jeff foi brutalmente espancado por dois dos soldados rasos. Jogaram-no em um quarto sem janelas, com nada mais que um colchão e um jarro de água. A um só tempo, estava emocionalmente desesperado e quimicamente apaziguado. Pensava na esposa e como abandonaria tudo para mudarem-se para a América do Sul, uma vez findo o pesadelo. Não pôde dormir o resto da noite, até que abriram a porta na manhã seguinte.
III
A tênue luz de uma lâmpada incandescente foi ofuscada por uma claridade de dia. Aquele que parecia ser o líder dos brutamontes pôs metade do corpo para dentro e acenou com a cabeça. Havia duas fatias de pão com manteiga e uma caneca de café sobre a mesa; sentou-se. Charles veio de outro quarto, tomou outra cadeira e desejou bom dia, sem resposta. O senhor recebeu um bônus pela sua descoberta, Floods? Isso representa o que, dez por cento do lucro que eles terão em um único mês? Jeff olhava com ódio para o homem grisalho. Eu não entendo tanta lealdade, sinceramente. Basta que o senhor me explique a síntese da serenina, e sairá ileso. O senhor e... e tirou de dentro do sobretudo uma pequena bolsa de couro vermelha, com detalhes em metal dourado. Era apenas uma confirmação.
Deixem Kathlyn fora disto, seus monstros. Com prazer, Floods, basta me ensinar seu truque. É complexo demais para explicar, ao menos sem todo o relatório. Consiga então o relatório. Eu já disse, ele é protegido por três senhas... Isso é balela, Floods, quer me convencer de que não tem acesso a sua própria pesquisa? Nós conhecemos o funcionamento da Alora. Nós temos gente nossa lá. O senhor pode acessar seus arquivos remotamente, Jeffrey, não é verdade? Ele redobrou o olhar de desprezo, pela intimidade do primeiro nome e por ter sido posto a nu. Apenas em conexões autenticadas. Isso não é um problema; o processamento de dados funciona em fins de semana, o senhor vai ligar e dizer que precisa acessar a base de dados de sua casa de veraneio. Empurrou um telefone através da superfície da mesa. Eu quero falar com Kathlyn! Charles olhou para o líder dos capangas, que sacudiu a cabeça negativamente. Ela está bem, prosseguiu, mas pode não estar em breve. Olhou para o mascarado que acompanhava cada movimento de Jeff, o qual sacou de um coldre uma arma de choque, que aplicou incontinenti ao pobre cientista.
Faça a ligação, Jeffrey! O senhor não tem alternativa. Ele havia caído da cadeira, e levou alguns segundos para se recuperar. Foi auxiliado a se sentar novamente. Tomou o telefone, tremendo. Eu não sei número de memória! Já está aí, basta pressionar o botão verde. Respirou fundo e pensou: que reputação eu posso ter a defender se o que eu quero é mesmo escapar para bem longe? Que futuro eu posso almejar numa corporação que provavelmente daqui a alguns anos vai me demitir para contratar outro jovem promissor por bem menos? Recobrou o sangue frio, depositou o telefone novamente na mesa. Charles, meu caro. O senhor tem toda razão. A Alora não me remunera de acordo com a importância da minha descoberta. E tem mais: daqui a alguns meses quando a nova técnica for adotada em escala industrial, vai ser algum executivo quem vai aparecer em revistas contando sua história de sucesso. Uma coisa se pode admirar na sua organização: a lealdade é recompensada. Sem circunlóquios, Jeff, vá direto ao ponto.
O que eu quero dizer é que, sim, eu posso acessar a base de dados da Alora. Entretanto, por uma medida de segurança, há várias versões do relatório. Charles e o líder dos capangas trocaram um olhar. Eu poderia simplesmente descarregar um dos documentos falsos, inventar uma explicação plausível e salvar minha pele e a da minha esposa. Vocês só descobririam ao tentar produzir. Isso é mais um blefe, Sr. Floods, Charles retomou a formalidade. Se fosse? Vocês só têm um jeito de descobrir, não? E por que então nos diria isso em vez de simplesmente levar adiante a manobra diversionista? Porque não quero mais trabalhar para a Alora. O mascarado-mor, que até então não lhe tocara, pegou-o pelo colarinho; os olhos castanhos já não expressavam calma. Que espécie de truque é essa, Floods? Permita-me explicar.
Kathlyn tomava sol dentro de um maiô verde, sobre uma espreguiçadeira de vime, propriedade de um resort dos mais exclusivos, onde os abonados de um país emergente descansavam da rotina estafante de gastar muito dinheiro. Jeff agora pertencia a esse time, e saboreava um martini enquanto vigiava o filho brincar na piscina. Era proprietário de uma indústria farmacêutica de porte intermediário. Contudo, sua renda maior provinha de outra atividade: protegido pela identidade de respeitável empresário, comandava a produção e a distribuição internacional de um cobiçado fármaco que, graças a ele, podia ser produzido sem grande sofisticação, clandestinamente. Jeff sentiu sincero pesar ao saber que a Alora Inc. declarara concordata. Ele apagara seus arquivos da base da empresa e os vendera a uma rival.