Laços de gelo

O vento açoitava com frio e gotas de neve, atacando seu fiel sobretudo cinzento, enquanto ela deslizava pelas colinas de gelo. Sua moto de neve rugia enquanto a transportava pelas planícies árticas. A agente londrina não estava habituada ao rigor do clima daquelas paragens, e por isso seus músculos doíam, mesmo sob a resistente proteção que vestia, mas a Organização sabia que frio algum impediria Kate Whitehill de cumprir uma missão, fosse ela qual fosse.

Não foi sem certo alívio, porém, que ela avistou enfim o amontoado de pequenos iglus ao longe, sobre a curva da colina. Acelerou a moto, enquanto pequenos pontos escuros se aglomeravam na borda do vilarejo. Quando Kate chegou, perto de quarenta pessoas a encaravam, curiosas.

Estacionou a moto e tirou a máscara dos olhos. Os inuit eram um povo naturalmente baixo e atarracado, e Kate, alta mesmo para a média inglesa, se destacava. Tinham um ar hostil mas ao mesmo tempo amedrontado. Uns pobres coitados, pensou Kate.

_ Alguém aqui fala inglês?

Silêncio.

Ela praguejou em voz baixa. O neurotradutor instalado em seu pescoço quebrara já na primeira hora de viagem, vítima do frio corrosivo, e as poucas palavras que sabia em tunumiit talvez não fossem suficiente para se fazer entender.

_ Inglês? Alguém? – repetiu ela.

Ainda silêncio. Praguejou uma segunda vez.

_ Uvanga sangittuq ikurripaa... – começou ela, debilmente, na língua esquimó, gesticulando e apontando, e enquanto falava o povo simples a olhava sem demonstrar qualquer sinal de entendimento – Uvanga sangittuq ikurripaa... Uvanga sangittuq tonrar... – e então, ao pronunciar a última palavra, os olhos puxados se arregalaram alguns deram instintivamente um passo para trás. Tonrar em tunumiit significava “monstro” ou “demônio”, e a compreensão no rosto daquele povo fez Kate perceber que estava na trilha certa.

Então, um dos anciãos saiu detrás do povo. Seu passo era lento e sua pele, enrugada, mal tendo a altura de uma criança.

_ Olá, estrangeira. Qual ser seu nome e o que te trazer à terra inuk? – o inglês dele era sofrível, mas ainda assim soou como música para os ouvidos semi-congelados da agente.

_ Você sabe inglês? Ótimo! Eu me chamo Kate Whitehill, e vim da Inglaterra, bem longe – disse ela, apontando para trás – com uma missão. Você é o líder dessa aldeia?

_ Eu me chamar Ataninnuaq, e ser o mais velho da aldeia. O líder não está, mas falo por ele. O que a estranha desejar?

_ Ajuda – começou ela – Escuta, como eu disse, estou procurando um tonrar, um monstro que avistaram por essas terras. Um turista, um viajante do meu país, disse ter sido atacado por um, há pouco mais de três meses. O viajante se chamava Michael Littlewood. Ele viajava por estas colinas há quase um ano. Vocês o conheceram?

_ Michael Littlewood? – soletrou Ataninnuaq, e então seus olhos expressaram entendimento – A estrangeira falar de Miki! Miki estar bem?

_ Bem? Claro, claro que ele está bem – mentiu Kate. O ferimento profundo que Littlewood trazia na costela, que alegava ter sido causado por um monstro, tinha sido bem cuidado e já estava quase cicatrizado quando a Organização o encontrou, guiada pelos seus clamores de ter descoberto o abominável homem das neves, mas o fato do antropólogo não querer manter silêncio sobre a descoberta obrigou a Organização a usar a força. Depois da tortura psíquica de Alphonse e François, os médicos mais capazes e mais sádicos da Organização, dificilmente Littlewood poderia estar bem em qualquer sentido – Miki está ótimo.

O velho sorriu, e então traduziu para o resto do povo. Houve gritos de alegria.

_ Miki ser bom conosco – disse ele, em inglês – ele vir de longe, mas ajudar na pesca, e cantar e beber conosco. Ele ser bom para nossa aldeia – sorriu o velho, mas tão rápido quanto viera, sua alegria se foi – Então, um dia, Miki sair com chefe e filho do chefe para caçar, mas não voltar. O sol ir e vir. Um dia, nossos caçadores encontrar Miki no gelo, duro pedra, quase morto, ferido no lado. Nós trazer ele para aldeia e cuidar dele, e quando ele melhorar, ir embora no seu carro de neve, para ser cuidado por médico da terra de Miki. Nós não ver ele mais.

Até então, tudo coincidira com o que Littlewood já havia contado. Kate sorriu ao pensar que já na primeira oportunidade encontrara a aldeia onde o antropólogo havia ficado; isso significava que o monstro não devia estar longe.

_ O que Miki disse que viu? – perguntou, categórica.

_ Miki ter visto tonrar – continuou Ataninnuaq, e ao mencionar o nome, o povo se encolheu – tonrar maior que dois, três inuit, pele cor de óleo de foca, grande como uma colina, feio como um sonho ruim. Ele matar chefe e filho de chefe, e quase matar Miki, mas Miki fugir. Miki ferir tonrar com arma de fogo, mas tonrar não morrer.

_ Isso, isso, ele me falou sobre isso. Vocês viram o monstro?

_ Tonrar matar animais, inuit achar animais mortos. Na noite, aldeia ver tonrar sobre as colinas, muito longe. Aldeia com medo, e aldeia fugir.

_ Então ele está perto... – disse Kate, pensativa, olhando sobre a aldeia para as colinas além – E vocês o viram – afirmou ela, voltando-se. Ataninnuaq olhou-a com ar tolo. Seria um problema que uma aldeia inteira fosse testemunha? A agente ponderou por um tempo. Seria dor de cabeça apagá-los? Bem, provavelmente esse povo devia ter dúzias de outras histórias sobre fantasmas, mais uma não faria diferença. Kate pesava as opções. Era conhecida por não possuir misericórdia contra as aberrações contra as quais lutava, em sua luta para proteger a humanidade, mas, sabia que travava uma guerra, e se fosse preciso haveria baixas no seu lado também. Tudo para acabar com as aberrações.

Decidiu, por fim, que não haveria mal se mais uma lenda sobrevivesse entre aquela gente.

Agradeceu a conversa com Ataninnuaq, e pediu abrigo. Kate disse que o Governo a enviara para liquidar o monstro, que vingaria o chefe e seu filho. A aldeia aceitou a oferta da estrangeira, e acomodaram suas coisas em um dos iglus.

Veio a noite.

Impaciente, desconfortável por partilhar um aposento com desconhecidos, e excessivamente dedicado ao seu trabalho, mesmo quando o último inuk dormiu na aldeia, Kate Whitehill ainda estava acordada. Debruçada em seu saco de dormir, examinava o pequeno livro que trouxera, folheando, lendo, voltando páginas, relendo. O exemplar era antigo e estava gasto com as pesquisas da agente. Era madrugada, e à luz de uma pequena lanterna, Kate lia.

“Foi numa sombria noite de Novembro que eu contemplei a realização de meu labor. Com a ansiedade que beirava quase à agonia, coletei os instrumentos de vida ao meu redor, para que eu gerasse a centelha de existência na coisa sem vida que jazia aos meus pés. Já era uma da manhã; a chuva tamborilava tristemente contra as janelas, e minha vela estava quase no fim, quando, no brilho de luz quase apagada, eu vi os olhos embaçados e amarelos da criatura abertos; ele inspirava gravemente, e um movimento convulsivo agitou seus membros. Como posso descrever meus sentimentos perante esta catástrofe, ou como posso delinear o monstro que com infinitas dores e dedicação me esforcei tanto para formar? Seus membros eram proporcionais, e eu selecionei suas qualidades para que fosse bonito. Bonito! Bom Deus! Sua pele amarelada mal conseguia cobrir o trabalho dos músculos e artérias; seu cabelo era de um negro lustroso e viçoso; seus dentes de um branco perolado; mas esses aspectos apenas formavam o mais horrível contraste com seus olhos aquosos, que pareciam quase da mesma cor do branco pardo das cavidades que os continham, com sua compleição murcha e lábios estreitos e negros.

Os diferentes acidentes da vida não são tão inconstantes como os sentimentos da natureza humana. Eu trabalhei duro por quase dois anos, com o único propósito de infundir vida num corpo inanimado. Para isso eu me privei de descanso e saúde. Eu o desejei como um ardor que em muito excedeu a moderação; mas agora que o terminei, a beleza do sonho desapareceu, e desgosto e horror arquejante preencheram meu coração.”

Kate não escondeu um esgar de desprezo, ao ler o trecho pela centésima vez. Já proliferavam no mundo aberrações demais sem que as pessoas precisassem criar as suas.

Fechou o livro. O nome da autora não aparecia na capa antiga; em letras garrafais, porém, o renomado título margeava o topo.

FRANKENSTEIN, ou O MODERNO PROMETEU.

Um exemplar da primeira edição, dos arquivos da Organização. Foi uma grande sorte, senão um milagre, que a ciência de Victor Frankenstein não foi levada a sério. Aliás, uma verdadeira benção que muitos dos antigos romances tenham sido considerados apenas histórias. A Organização possuía departamentos inteiros especialmente dedicados a entender, comprovar e localizar as criaturas daqueles livros. O romance de Shelley não passou despercebido, e Littlewood foi quem deu a pista para iniciar a caçada.

Kate ia tornar a abrir o livro, quando notou uma estranha luz vindo de fora. Seus instintos aguçaram; puxou uma pistola estranha de dentro da bota e saiu ágil de seu saco de dormir. Os inuit do seu iglu não acordaram, e, devagar, ela se esgueirou para fora.

Havia neblina, baixa e densa, mal alcançando seus joelhos, ocupando a pequena aldeia. A luz forte vinha do céu: sobre as colinas e sob as nuvens, brilhava uma gigantesca aurora boreal. Tons de azul, violeta e vermelho dançavam, colorindo as sombras das planícies nevadas e os picos de gelo. Kate riu de sua preocupação. Guardou a arma e se voltou para o iglu. Foi quando notou um vulto, bem ao longe, de pé sob as colinas, perto do cume de uma alta montanha de gelo, sua silhueta escura, quase um ponto distante, recortada contra a luz do céu.

Correu rápida, saltando sobre sua moto de neve, não dando importância se o barulho acordaria os demais. Ganhou as colinas.

A moto roncava com o motor frio e os faróis iluminavam o caminho acima da neblina baixa. Não havia lua, mas a aurora iluminava o céu. O vulto da criatura refugiara-se nas sombras novamente, mas a montanha onde surgira erguia-se sobre as demais, tornando fácil para a agente guardar o caminho.

Mas as luzes maquiaram a distância, fazendo com que o trajeto parecesse curto. Kate já pilotava há mais de meia hora sem ter alcançado a montanha, e a agitação da caçada deu lugar ao frio; seus olhos ardiam e o vento seco feria seu rosto, porque não tivera tempo de pegar a máscara de viagem. Porém, quando a montanha começou a se aproximar, sentiu um solavanco brusco, a moto guinou para cima, e ela foi arremessada aos ares. O impacto a fez disparar a pistola, que trazia na mão, arremessando um poderoso raio púrpura contra as cores do céu. O estrondo do tiro ecoou poderoso acima do barulho de vento em seus ouvidos, e ela aterrissou dolorosamente num monte de neve dura.

_ Quem vem lá? – indagou uma voz rouca, gutural como um grunhido, mas com força para se fazer ouvir.

Kate voltou-se rápido, tateando à procura da arma, caída há poucos metros. A moto tombara muito mais à frente, enterrada de ponta cabeça. Um tronco de madeira, que não estava ali momentos antes, se projetava da neve no caminho em que ela estivera. Recompondo-se, pulou rápido e tomou a arma, apontando-a para onde viera o som. Não havia ninguém.

_ Esta é minha casa, e desejo saber quem vem lá! Acaso não possuis nome, ou tato para responder quando és questionada? – perguntou novamente a voz, em inglês, Kate reparou agora.

Ela ofegava e um filete de sangue escorria de sua testa, ameaçando congelar; os olhos ardiam e sua raiva queimava. A pistola de energia alienígena era poderosa e certeira, podia atravessar uma parede de uma polegada de aço, mas demorava quase vinte minutos para se recarregar. Xingou-se por não ter trazido outra arma. Precisava ganhar tempo, e a irritação de ter sido pega de surpresa não permitia que pensasse em nada.

_ Meu nome é Katherin Whitehill – gritou ela para as colinas vazias – E não sou amigável quando me atacam. Diga quem você é e apareça, antes que eu resolva encontrá-lo!

_ Eu não possuo nome, pois tal não me foi dado – grunhiu a voz – Suma daqui, Katherin, e deixa-me!

_ Eu que estou armada aqui, querido, eu que dou as ordens.

E eis que surge a criatura. Emergiu devagar de trás de uma colina, e quando Kate o distinguiu, percebeu que Mary Shelley fora gentil em sua descrição. Sob a pele amarelada, extremamente tensionada sobre os músculos dos ombros e do peito, e frouxa como tecido velho nos antebraços e pernas, delineavam-se todos os músculos do monstro e suas artérias. Aquela pele mal dava a impressão de contê-los, parecia prestes a romper ao menor esforço, ou prestes a cair ao menor movimento. Quando o vulto respirava, todo o seu tórax tremia, agitando os cabelos negros que escorriam como água de sua enorme cabeça. A testa era disforme e ampla, emoldurando olhos opacos, que só não eram totalmente brancos devido à sombra da existência de pupilas. O pescoço era grande, e fez Kate rir dos parafusos que lhe meteram no cinema. A mão direita jazia escondida sob um manto de trapos, e na mão esquerda, gigantesca, segurava a espingarda de Littlewood.

_ Somos os dois armados então, Katherin – rugiu – sumas daqui, porque aqui nada há que te interessa.

_ Achei que você tinha se matado, como jurou fazer, Frankenstein, e dado paz à humanidade.

Ao ouvir o nome de seu criador e inimigo, a criatura tremeu de raiva numa convulsão terrível, e disparou a espingarda para o alto.

_ O que sabeis sobre mim, humana, o que acaso podes imaginar que passei desde que fui criado, desde que fui caçado pela primeira vez? Só conheci dor e desespero, e se jurei acabar com essa vida miserável, não menti, não, eu procurei a morte, mas nem esse descanso tive o alívio de receber! Desde a morte de Frankenstein, humana, procurei a minha, queimar-me-ia para não deixar provas de minha existência. Pois bem, nem isso os céus mo permitiram! Meus cachorros morreram, o frio e o gelo me tomaram, desabei e fui tomado pela neve. Morri, ou antes pensei que tivesse! Uma longa noite se passou para mim, e o sol tornou o gelo em água, e meu corpo veio, uma vez mais, à vida, essa miserável vida que teima em continuar.

_ Querido, você tem uma espingarda de cano duplo na mão, carregada – instigou Kate – Não é muito difícil acabar com isso de uma vez por todas. O que está esperando?

A criatura hesitou, ergueu a arma ameaçadoramente, e então a abaixou.

_ Eu... eu não posso. Tenho um último dever, o qual não posso negligenciar. Eu... – e então sob a grande colcha de trapos, Kate distinguiu um vulto menor, preso ao monstro pelo braço direito, que ele mantivera escondido. Na escuridão da noite não seria possível distinguir, mas os olhos da agente eram treinados; era uma criança inuk, extremamente amedrontada.

_ Seu demônio! – berrou ela – Largue a criança agora, ou juro que vai ter a morte mais dolorosa e mais lenta que eu puder inventar!

Pego de surpresa, o monstro não sabia o que fazer.

_ Eu... não, não! O pai dele me atacou primeiro, eu não tive nenhuma culpa! A raiva me tomou e só despertei quando ele morreu sob minhas mãos. O outro veio e me atingiu com isto! – berrou, erguendo a espingarda – O ódio foi tão poderoso que me fez arremessá-lo para bem longe, onde desabou, e lá ficou. No fim... no fim restara apenas o garoto! Fomos ambos vítimas!

_ Desde que Victor Frankenstein lhe deu vida, você só soube causar dor e sofrimento. Você matou o irmão, o melhor amigo, a esposa dele, e mais quantos?! Você destruiu seu criador como um filho ingrato. Você matou o pai desta criança, demônio; você não era nem nunca foi uma vítima – sentenciou Kate.

_ NÃO! Não! Humana, cala-te, porque não sabes o que dizes! Esta criança... esta criança não me odeia! Deus, por toda a minha vida, nunca encontrei alguém que não o fizesse! Não sou maligno, a maldade me angustia e a culpa me corrói, mas nunca tive outra escolha. De bom grado teria dado fim à minha vida mais uma vez, mas não poderia deixar a criança sozinha. Alimentei-a e a protegi. Jurei retorná-la à sua família antes de partir desse mundo. Ela não me odeia, Katherin! – sorriu, desesperado. De fato, percebera Kate, a criança não estava presa sob o braço da criatura, como ela pensara, mas abraçava-a assustada – Deus sabe como procurei alguém que me aceitasse, Deus o sabe!

_ Monstro, dê-me a criança e a devolverei à aldeia, e podemos por fim a esta história.

A criatura hesitou. Não desejava roubar a criança de sua família, mas pela primeira vez desde a morte de seu criador, não desejava a morte, e se afastar dela significava perder novamente tudo.

Então a pistola de Kate fez um leve bipe, a criança encolheu-se assustada, a agente abriu um sorriso terrível e disparou. A hesitação do monstro não o dera tempo para reagir e ele foi arremessado com força quando o raio púrpura o atravessou.

O estrondo do disparo ecoou nas colinas de gelo.

Kate guardou a arma. Caminhou devagar, finalmente sentindo o tornozelo que torcera na queda, até o cadáver do monstro.

_ Vamos, criança, está tudo terminado, pode...

Ao se aproximar, porém, não pôde conter uma exclamação de surpresa. Sobre o corpo disforme da criatura jazia também o garoto, ambos com um buraco do tamanho de um punho no peito. Mas o pequeno estava de costas, e o absurdo da situação deu uma poderosa rasteira na confiança de Kate: o garoto havia pulado para proteger o monstro.

Tomou a criança morta em seus braços. Cuspiu no rosto da criatura, antes de atear fogo à sua carcaça. Afastou-se. O fogo já era um pequeno incêndio quando ela ganhou as colinas de volta à aldeia.

O cadáver gigantesco queimou com força. Kate não as viu, pois só as labaredas foram testemunhas das lágrimas congeladas, as primeiras e últimas lágrimas de alegria que a criatura jamais derramou em vida.