A Metamorfose
- É um inseto!
- Onde você se formou em entomologia ? Óbvio que é um miriápode!
O nitrogênio líquido ainda evaporava daquela carcaça monstruosa, recém retirada da câmara de criogenia. Dava à sala de autópsias um ar ainda mais misterioso.
- Que têm o corpo dividido em três segmentos está claro: cabeça, tórax e abdômen. É inseto.
- Com todas essas perninhas? Já conseguiu contá-las? Eu apostaria em crustáceo...
- Isso não tem cara de camarão...
- Vejo claramente um cefalotórax e um abdômen.
- Os registros mostram que vivia em ambiente terrestre, não em água salgada.
- Quem disse isto?
- Bom, foram os... - o cientista leu incrédulo. - ...seus pais...
- Ah, me dê isso aqui!
Leu com cuidado. Tinha que ser uma piada!
- Quem disse que todos os crustáceos são marinhos? Onde você teve aulas de biologia, hein? Pode ser um oniscidea...
- Isópode terrestre? Um tatuzinho? Bom, pelo jeito matemática também não é seu forte... Eu conto muito mais de 5 pares de patas neste espécime aí!
Um terceiro biólogo junta-se à animada discussão.
- Ah, vejo que resolveram tirar o Gregor da geladeira?
- Quem?
- Ué, não conheciam o Gregor? Esse baratão aí esticado na mesa de autópsia?
- Desde quando dão nomes aos espécimes guardados aqui?
- Esse é especial. Ele é humano.
Os dois cientistas que primeiro estavam na sala se olham, e começam a gargalhar incontroláveis.
- Só falta você dizer agora que na câmera ao lado da do Gregor tem um moscão gigante chamado Brundle. Hahahah!! É um fanfarrão mesmo...
- Falo sério!! É humano! Ou melhor, já foi humano...
As gargalhadas param, ao perceberem a seriedade impassível com que o terceiro cientista reiterava sua afirmação.
- Você está falando sério mesmo?
Ele acena que sim com a cabeça.
- Gregor Samsa, caixeiro viajante. Faleceu em 1914, vítima de uma estranhíssima mutação genética...
- Mas isso já tem quase 150 anos!! Ainda não existia a criogenia...
- Bom, pelo menos não era divulgada. Mas esta história acabou vazando. Franz Kafka até escreveu um livro sobre ela.
- A Metamorfose? Oras, é uma obra de ficção! Veio da imaginação de Kafka.
- Excelente!! Era exatamente o que nosso Instituto queria que todo mundo pensasse esse tempo todo... até agora.
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A estranha metamorfose de Kafka estava virando epidemia em várias partes do mundo! Já eram incontáveis os relatos de pobres homens e mulheres que, acordando de sonhos inquietantes, amanheciam metamorfoseados num inseto gigantesco, de dorso duro e inúmeras patas. Vírus? Mutação genética provocada por radiação, venenos químicos? Nenhuma resposta até o momento.
- Por que só estamos sabendo disso agora?
- Pânico não ajudaria em nada. Além disso, eram relatos tão incríveis que a princípio descartamos como boatos, lendas urbanas, ou mesmo brincadeiras de mal gosto. Mas chegou um ponto em que não dá mais para esconder.
- Por isso tiraram esse... o Gregor da geladeira?
- Único caso da patologia que conhecíamos até então! Entendem seu valor?
- E o que devemos fazer?
- Primeiro, classificá-lo. Descobrir o que é. Ainda temos esperança de reverter os casos atuais, mas até então precisamos descobrir como os metamorfoseados atuais podem sobreviver, o que comem, do que precisam... Acreditamos que a principal causa da morte de Gregor Samsa foi uma alimentação inadequada, o fato dos parentes não saberem o que aquele ser monstruoso comia...
- Bom, eu aposto que ele não era uma barata, apesar da morfologia do casco ser bem parecida. Não tem asas, por exemplo!
- Por outro lado ele é atarracado, e não alongado como um miriápode.
- Eu sugeri um isópode da subordem oniscidea...
- Creio que não... ele não é multisegmentado...
O pesquisador chefe tenta incentivar:
- Caros, usem a imaginação! Pode bem não ser nada do que já tenhamos estudado. Ainda mais que deriva de genes humanos... A propósito, já solicitei uma análise de DNA. Os tecidos estão incrivelmente preservados para um ser conservado em nitrogênio líquido a quase 150 anos!
- Com certeza é um artrópode... - o entomologista tentou fazer graça.
- Oh!!! Genial!!! - mas o pesquisador chefe não estava realmente muito feliz. - Por favor, guardem para vocês estas piadinhas e tentem levar isto a sério, tudo bem? Isto está virando epidemia mundial!
O entomologista baixou a cabeça envergonhado. Tentou consertar o comentário infeliz:
- Eu o classificaria como quilópode se não fosse tão atarracado. Já contaram se a quantidade de pares de patas é ímpar ? Centípedes têm entre 15 e 191 pares de patas, sendo que esta quantidade de pares NUNCA é par.
- Contamos 43 pares, ou 86 patas no total.
- Sim, definitivamente não é um inseto, como Kafka descreve...
- Kafka não era entomologista. Ele descreveu como inseto porque aquilo lhe parecia um inseto. Pelo menos a idéia que ele fazia de inseto.
- E se ele não for comprido por se tratar de uma centopéia, digamos assim, incrivelmente “gorda” ?
- Não vejo os inúmeros segmentos do corpo...
- Podem ter se fundido. Pesquise aí, acho que é um bom começo: que espécies quilópodes conhecidas têm 43 pares de patas?
- Sei não... vejo claramente um abdômen no final do corpo... Reduzido, mas existe: não sai um par de patas dele!
- Bom, conheço a competência de vocês dois, e vou deixá-los continuar pesquisando.
- Podemos autopsiar o espécime?
- Com muito cuidado, por favor! É nosso único exemplar! Apenas o estritamente necessário! Enquanto isso, vou buscar o resultado obtido no seqüenciamento do DNA...
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O resultado do seqüenciamento era mesmo inacreditável. 23 pares de cromossomos? Gregor, apesar da horrível aparência, ainda apresentava DNA humano! Como podia ser? Seus pensamentos foram interrompidos bruscamente pelo ensurdecedor som dos alarmes anti-atômicos...
Pensou surpreso: “Quê??? Alarme de ataque nuclear?? Impossível! Já resolvemos este problema a décadas!!! Quem foi o maluco que resolveu apertar o maldito botão?” Mas não foi longe em suas divagações, pois um estranho calor e dor aguda na barriga o derrubaram agonizante. Prostrado no chão, vivenciando sonhos inquietantes, ele começou sua metamorfose...
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Ao encostarem o bisturi na criatura monstruosa, a reação que ela teve não deixava dúvidas: Gregor estava vivo! A criogenia havia lhe dado tempo suficiente para se recuperar da maçã que estava incrustada violentamente no seu dorso, e agora à temperatura ambiente ele movia com vivavidade suas 86 patas distribuídas nos dois lados de seu corpo. Seu primeiro pensamento foi: “Praga!! Estou de novo virado de costas para baixo!!” Se contorceu tentando se desvirar, sob o olhar de dois incrédulos humanos. Tombou no chão, com as patas para baixo. Felizmente a mesa de autópsia era baixa, e o impacto não o feriu.
- Que é isso, cara? Ele está vivo?
- Parece que sim!
Foi a última coisa que os cientistas falaram antes das sirenes começarem a tocar. Ambos caíram no chão se contorcendo de dor. Gregor olhava sem entender aquelas novas criaturas que iniciavam sua metamorfose: para ele o causador da mesma não fazia mais efeito. Ele já era um ser completamente metamorfoseado!
Em meio a seu sonho inquetante, um dos cientistas pensou: “Alarme de ataque nuclear? Não, isto é impossível! Os sensores devem estar com defeito...”
Os sensores anti-atômicos tinham errado sim! De fato eles não haviam detectado exatamente o início de uma guerra nuclear, e sim uma inundação de raios gama que, sem explicação melhor, foi interpretada como início de uma guerra nuclear.
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A primeira emissão detectável daquela freqüência particular de raios gama ocorreu no final de 1914. Detectável pelos efeitos, pois ainda não havia tecnologia para isso. Na ocasião bem raro, e bem localizado, ele partiu da fotosfera solar cerca de 8 minutos antes de atingir e inundar o quarto no qual Gregor Samsa dormia tranqüilamente. Não dá para encontrar uma explicação melhor para isso do que acaso evolutivo, mas aquela freqüência particular despertou genes adormecidos, normalmente inativos no código genético daquele humano. Desencadeou uma segunda morfogênese, agora numa criatura já adulta! O tecido epitelial começou a produzir queratina feito doido. Os órgãos internos se reorganizavam. Era desconfortável, o que foi interpretado por Gregor Samsa como “sonhos inquietantes”. Ossos e músculos foram consumidos nesta metamorfose, favorecendo a estrutura nova. O sistema nervoso não mudou muito, embora bastante afetado com a nova morfologia a que estava sendo obrigado a se adaptar. A seqüência para iniciar a metamorfose sempre esteve no código genético humano, só faltava o gatilho, a improvável freqüência de raios gama capaz de disparar o processo.
Naquele ano de 2061 alterações no equilíbrio termonuclear do sol fizeram com que a estrela começasse a emitir aquela particular freqüência de raios gama numa intensidade nunca antes vista em 4,5 bilhões de anos de história cosmológica! Genes humanos de todas as partes do mundo foram atingidos por aquele gatilho, e iniciaram sua metamorfose. De repente aquela freqüência passou a fazer parte do espectro estelar. Em 24 horas, tempo necessário para aquele planetóide descrever uma rotação em torno de seu próprio eixo, todos os indivíduos expostos ao novo espectro luminoso seriam afetados, e iniciariam sua metamorfose latente nos genes... Isto representava cerca de 8 bilhões de espécimes humanos.
O que nunca ninguém foi capaz de imaginar foi que aquela velha afirmação de que as baratas acabariam dominando o mundo tinha um fundo de verdade. Com ressalvas, lógico: não eram exatamente baratas apesar de se parecerem bastante, e sim uma mutação dos quilópodes intercalada em genes inativos de Homo Sapiens. Não se tratava de uma espécie diferente, mas uma mutação genética de nossa própria espécie.