DISTROPIA - Capítulo 4

Confesso que aqueles dois conselhos absurdos foram mais que suficientes para eu me trancar dentro do apartamento por alguns dias. Caminhar para trás? Falar ao contrário? Que maluquice toda era aquela?

Dr. Karnot voltou a me ligar umas quatro ou cinco vezes durante esta reclusão. Reiterava estes dois conselhos. Estranhamente nessas ligações parecia não ter a mínima lembrança das ligações anteriores, sendo extremamente repetitivo. E sempre eram gravações...

Após tanta insistência, decidi começar aquele treinamento. Não pretendia passar o tempo todo girando manualmente os vinis na direção correta, mas foi muito fácil adaptar um inversor de polaridade ao motor da pickup. Conhecimentos básicos em eletrônica me permitiram acrescentar uma chave bastante prática, permitindo escolher entre os sentidos de rotação horário e anti-horário.

Por alguns minutos apreciei novamente poder ouvir os velhos discos com o som original. Lamentei muito perceber que um de meus preferidos estava riscado. Desliguei, levantei o disco, e observei: era mesmo um arranhão feio! Voltei a colocá-lo sob a agulha, e a empurrei ligeiramente no trecho com defeito tentando pular o defeito. Exagerei na força, e senti ter estragado ainda mais. Tirei o braço com a agulha e levantei novamente o disco, tendo uma grande surpresa: o arranhão havia sumido! Não dava para acreditar! Ouvi novamente aquele trecho e comprovei que estava perfeito, como sempre fiz questão de preservá-lo. Realmente as coisas pareciam funcionar bem diferente neste mundo maluco no qual agora me encontrava!

Apesar de bastante útil, treinar o estranho português reverso em discos de vinil tinha suas limitações: podia ouvir as frases diretas e comparar com as reversas, tentar entendê-las e, em seguida, imitá-las. Mas não havia como testar a qualidade de minha imitação. Para isto eu precisaria gravar minha própria voz, para depois ouvir o resultado. “Tenho um pequeno gravador aqui em algum lugar... Onde foi mesmo que o deixei?” Seria inevitável eu precisar revirar o pequeno caos organizado de meu quarto procurando tal aparelho...

- Alô!! Irazés? - ouço após atender mais uma vez à campainha do telefone. - É o Dr. Karnot, você ainda não me conhece apesar de sermos velhos conhecidos. Não responda, isto aqui é apenas uma gravação, melhor maneira que encontrei de me comunicar com você. Já te disse para treinar entender e falar de trás para a frente? Bom, acho que isto ainda vai acontecer, de forma que para você isto já deve ter acontecido. Nos encontramos na semana passada e... me desculpe, quis dizer que amanhã vou te ligar combinando um encontro aqui em meu consultório para a próxima semana. A propósito, você me pediu para lembrá-lo que o gravador está na estante atrás da sua coleção de Julio Verne. Já está programado para tocar áudio no sentido reverso também, é só apertar o botão verde do lado esquerdo. Ah, e se resolver sair, lembre-se: tente caminhar para trás!!

De fato, exatamente onde Dr. Karnot falou estava o pequeno gravador digital de voz. Eu o havia pedido para me lembrar disso? Como, se ainda nem ao menos o conhecia?

Minhas primeiras tentativas foram bastante inocentes, agora consigo ver com clareza. Minha primeira idéia foi escrever frases corriqueiras e lê-las de trás para frente. Comecei com o amistoso “Bom Dia”. Nada foi gravado. O que estava acontecendo? Tentei mais uma vez:

- Aid mob!!

Nenhum som gravado. Repeti quase gritando, e nada. Que ocorria? Mais uma vez, resolvi apelar para a intuição: “Pense ao contrário! Pense ao contrário!” O que eu fazia de errado? Tentei gravar um simples “aaaa”, mas com uma pequena diferença: num mundo de trás para a frente, o ar expelido vibrando as cordas vocais não teria efeito algum num microfone preparado para captar vibrações sonoras reversas. Foi por isso que testei inspirar um “aaaa”, e surpreso percebi que a gravação fôra bem sucedida. Tentei o mesmo com o “bom dia”, inspirando os fonemas ao invés de expirá-los. O que obtive ouvindo meu “aid mob” ao contrário foi algo parecido com:

- Bõjd-iá!

Lembrava o original, mas definitivamente não era o que estava esperando. Onde eu estava errando? Tentei com outras frases, como “boa tarde”, que lida de trás para frente se tornava “edrát aôb”. O resultado, mais estranho ainda que o primeiro, foi algo como:

- Bôat áride!

Pensei algum tempo, tentando descobrir onde estava errando, mas sem resultado. Mas de repente a explicação me apareceu límpida como água pura: “É óbvio! A escrita é apenas uma representação gráfica da fala, não totalmente fiel. Ler algo de trás para frente pode dar certo em poucos casos, mas geralmente não vai funcionar. Em termos físicos, o importante não é inverter os símbolos grafados, e sim os fonemas que eles produzem!” Como demorei tanto para perceber isso ?

- Ed-rataôb!

Obtive um “boa tarde” bem mais convincente ao ouvir a gravação reversa. Estava na direção certa!

- Êijdm ôb!

O “bom dia” pronunciado com o característico som “djia” dos paulista também ficou bem mais aceitável. Lembrei rápido: “êijd”? “sêijd”? Era "dias” ao contrário! Num mundo de trás para a frente, o “s” dos plurais migrava para o começo das palavras! “Irazés”? Podia tentar prever mentalmente, mas a preguiça me levou a gravar tais fonemas e ouvir o resultado revertido:

- César...

Irazés era César? Era disso que o Dr. Karnot havia me chamado...

- Sêijd Irazés! Sêijd Irazés! Sêijd Irazés!

Qual não foi minha satisfação ao ouvir, tocando o reverso desta gravação:

- César Dias! César Dias! César Dias!

Sim, estava claro: neste mundo maluco, ao menos meu próprio nome eu tentei preservar! Dr. Karnot me chamava de César. Com certeza, com dificuldades de aprender a doida língua reversa, ele também se utilizava de um gravador com a capacidade de tocar áudio reverso para se comunicar comigo. Por isso suas ligações sempre eram gravações!

Mergulhei de cabeça no estudo da língua reversa, ligava a TV tentando entender as frases ditas de trás para frente nos noticiários. Não foi fácil! Dificilmente pronunciamos palavras isoladas. Na maior parte do tempo fundimos o final de uma palavra com o começo da seguinte. Mas isso dito ao contrário muda de figura: era o som inicial da palavra seguinte que eu deveria fundir com o final da palavra anterior das sentenças! Isto levando em conta que o fim era o começo, e o começo era o fim... perdoem-me, não pretendia ser confuso neste ponto. Mas tentem imaginar como eu me sentia!

A plasticidade de nossos cérebros é incrível! Rápido me adaptei a reconhecer as palavras invertidas. Agrupando-as em frases, também percebi a importância em se inverter também sua entonação, a variação de agudos e graves, altos e baixos. Uma pergunta não se parece com uma pergunta se pronunciada de trás para frente. Logo percebi isto num programa de entrevista, e rapidamente aprendi o novo padrão. Na ocasião eu estava mais preocupado em compreender sentenças isoladas, de forma que ignorava seu contexto. Mas foi tal programa de entrevista que me chamou a atenção para algo muito importante, situação difícil à qual eu ainda não havia pensado numa solução. Falei alto, no bom e velho português em sentido direto que estava acostumado a falar desde criança:

- Quer saber? Estou cansado de ficar trancado neste apartamento! Além disso a comida acabou, preciso urgente fazer umas compras no supermercado! Uma hora ou outra vou precisar sair mesmo, não é? Que seja agora!

Saí resoluto do apartamento em direção ao elevador. Nesta minha primeira aventura, esqueci completamente do precioso conselho do Dr. Karnot: “caminhe para trás!!!”