Universo Rugoso - parte 1

Aquela estrada ruim sacudindo o carro em movimento realmente estava incomodando muito Marta. Os amortecedores velhos não ajudavam em nada.Por que ele havia insistido em tomar aquele caminho com tanta teimosia? Bom, Marta sempre achou que não se deve discutir com o motorista.

- Poderia acelerar só um pouquinho?

A irritante tremedeira ficou mais intensa, como era de se esperar. Para passar o tempo, tentar esquecer o incômodo, Marta começou a querer adivinhar qual seria a freqüência base em que vibrava o veículo, pulando sobre as imperfeições da estrada mal-asfaltada. Seriam 30 Hertz? Duzentos?

- Estrada ruim, não é Marta?

Ela o fuzilou com o olhar. Quem foi mesmo que lhe havia sugerido seguir a via principal, ao invés daquele atalho esburacado?

- Acho melhor voltarmos e pegarmos a via principal...

- Está doido! Não vai dar tempo! Já que você escolheu esta porcaria de caminho aqui, vai até o final!

Se encolheu emburrada no banco do passageiro, tentando voltar ao que estava pensando antes da interrupção de Carlos. Seria possível fazer uma avaliação do nível de rugosidade daquela péssima estrada medindo-se de alguma forma a freqüência de vibração básica na qual o veículo tremia? Estatisticamente sim. Sabendo-se a velocidade constante com a qual o carro deslizava sobre a porcaria da estrada, a freqüência básica daquela vibração infernal corresponderia à distância média que separavam os malditos buracos e solavancos do asfalto. Freqüência de vibração e velocidade do carro seriam suficientes para calcular a distância média entre as imperfeições da estrada, seu nível de péssima qualidade. "Mas afinal, por que estou perdendo meu tempo pensando nessas besteiras?" Percebe então que a freqüência das vibrações diminui, e a amplitude fica mais intensa.

- Você reduziu? Não vai dar tempo de chegar! Se você me fizer chegar atrasada na minha apresentação eu te mato!

Carlos não era doido de discutir com uma física quântica estressada, e por isso mesmo pisou fundo. Era impressão de Marta, ou o carro havia parado de sacudir tanto?

- Ei!! Não precisa exagerar!!

- Tá com medinho, é?

Lógico que estava! Um velocímetro encostando nos 200km/h assusta qualquer um!

- Hehe, o carro nem vibra mais, percebeu Marta?

- Lógico! A esta velocidade estamos passando praticamente voando sobre os buracos!

Marta ficou muda. E não mais falou durante todo o resto da viagem. Aquele seu comentário inocente, do carro voar sobre os buracos... explicava tudo!!! Estava aí a solução do seu problema! Mal via a hora de chegar no auditório e apresentar logo seu último e chatíssimo estudo sobre partículas subatômicas. Sim, ela iria resumir um pouco, tirar partes pouco importantes da apresentação como a Fórmula de Plank, por exemplo... Queria ir logo ao laboratório para colocar à prova aquela idéia no simulador, pois sabia sempre existir uma enorme fila de pesquisadores querendo usar o sofisticado simulador de processamento paralelo.

Ah, e a propósito: eles conseguiram chegar a tempo para a apresentação!

-----------------------------------------------

Mais uma vez Maxwell amassou com raiva a folha de papel na qual fazia seus cálculos, tentando ajustar os dados novos do radiotelescópio. As contas não batiam! Onde estava aquela matéria escura do universo que ninguém conseguia localizar? Em que lugar se escondiam os 99% de massa que éramos incapazes de observar? Vagavam como neutrinos no espaço entre as galáxias? Maxwell sempre se recusou a acreditar nisto, e foi o motivo de brigas intermináveis com seus professores na época em que se graduava como astrofísico. Ele não se conformava com este fantasma da Matéria Escura. Nada disso, esta massa adicional tinha de estar lá mesmo onde estávamos observando, nas galáxias, nebulosas, quasares, e todo o resto do universo visível. Só não tínhamos procurado direito ainda.

Tira outra folha em branco da pilha. “Então vejamos: se considerarmos o efeito de lentes gravitacionais côncavas, poderíamos concluir que a imagem que observamos desta galáxia longínqua deve ser bem menor do que a galáxia é na realidade. Digamos, dentro de margens de segurança, que a lente gravitacional reduza a imagem da galáxia pela metade. Assim ela é duas vezes maior do que a vemos, tendo então um volume 8 vezes maior, sendo que temos agora, após corrigida, uma massa real de cerca de... Não! Que coisa, não deu certo de novo!!! Cadê esta massa toda escondida?” Mais uma folha de papel que é amassada até se tornar uma bolinha de celulose minúscula, atirada com fúria num cesto repleto de outras bolinhas semelhantes.

Maxwell decide dar um tempo. Olha para o cesto, e pensa: “Reciclar, reciclar...” Pisa sobre o topo, amassando as bolinhas de papel. Comprime o máximo que consegue. Vira então o cesto, e dentro dele sai uma massa cilíndrica compacta formada de centenas de bolinhas de papel amassado. Todas as suas tentativas frustradas anteriores de tentar encontrar a massa oculta do universo. Tenta compactar ainda mais o bloco, mas não consegue reduzir muito o seu volume. “Reduzir uma folha de papel em uma bolinha era bem eficiente”, pensou Maxwell, “Afinal estou transformando um corpo praticamente bidimensional num tridimensional. Mas reduzir uma massa tridimensional compacta? Isso já é bem mais difícil, preciso aplicar uma pressão gigantesca para reduzir muito pouco o volume original.”

Enquanto continuava em seu esforço na compactação da massa de bolinhas, os olhos se arregalaram observando um ponto perdido, e uma idéia muito boa de tão doida lampejou em sua mente: “E se eu tivesse dimensões de espaço adicionais nas quais pudesse continuar dobrando um bloco compacto de matéria tridimensional? Quanto conseguiria compactá-la?” Saiu correndo feito um doido de sua sala, em direção ao laboratório do instituto onde havia aquele potente simulador físico no qual poderia colocar sua idéia maluca à prova.

---------------------------------------------------------------------------

Era difícil acreditar numa pesquisadora de física quântica que duvidasse da dualidade onda-partícula dos corpos. Mas Marta era assim. Muitos diziam até que ela só se formou em Física Quântica na esperança de tentar derrubar de uma vez esta hipótese absurda. Poderíamos vê-la como uma física clássica que, vendo sua rival quantica ganhando cada vez mais espaço, decide estudá-la só pelo prazer de descobrir buracos na teoria por onde ela pudesse ser derrubada de uma vez por todas. Esta era a Marta, satisfeita com os resultados de sua simulação. Os números que piscavam nos mostradores eram ainda melhores do que ela previa no início! Será que ela conseguiria alocar algumas horas no concorrido acelerador de partículas para estudar aquilo na prática.

- Ah não!! - Maxwell entrou ofegante na sala. - Não acredito que você esta pendurada de novo nesse computador! Preciso testar uma coisa importante, Marta. Vai demorar muito com essa coisinha que está testando aí?

- COISINHA???! Você nem faz idéia do que estou testando...

- Ah, deve ser alguma besteira microscópica, subatômica, sei lá o quê! Minha idéia pode revelar algo bem maior, a estrutura do nosso Universo.

- Oh, Grande Mestre dos Mestres! Poderia espera seu lugar aí na fila como todos nós simples mortais temos que fazer?

Maxwell aguardou, chateado e impaciente. Já que precisaria mesmo esperar, tentou descobrir o que a colega fazia.

- Ué, achei que você não se interessasse pelo mundo das coisas minúsculas...

- Não seja tão chata assim, Marta. Só estava impaciente, certo? E ainda estou...

Marta não conseguia tirar os olhos do monitor. A tabela em sua frente, resultado de uma simulação, demonstrava inclusive a relação de Planck! E tudo isto sem necessidade nenhuma de apelar para explicações quânticas, de ondas virando partículas, trajetórias prováveis, regiões de coerência... Bastava uma explicação física clássica que admitisse dimensões de espaço adicionais, quase imperceptíveis de tão pequenas.

- Não acredito nisso! É fantástico!

Maxwell se aproximou, com veneno na língua, vendo os números tabelados na tela.

- Parabéns, Marta! Você acabou de redescobrir a Equação de Onda de De Broglie! Era nisso que você estava trabalhando? Francamente...

- Lógico que não, Max! Isso aqui é resultado de uma simulação. Obtive sem pressupor nenhuma hipótese quântica, apenas simulando características comuns de mecânica clássica.

- Você não desiste mesmo de tentar derrubar a mecânica quântica, Marta! O que está aprontando desta vez?

Marta olhou bem para seu colega astrofísico. Ela o admirava, dentro da área em que ele atuava. Mas sempre lhe pareceu um esforço inútil ficar especulando sobre galáxias distantes e relações inexplicáveis, quando tínhamos aqui mesmo, no mundo subatômico disponível em qualquer lugar do universo, descobertas inimagináveis, úteis até mesmo para o dia a dia, se entendidas e dominadas.

- Afinal, Max, o que você pretende simular aqui? Sua última idéia de lentes gravitacionais divergentes foi um fiasco! Em que você está pensando agora.

- Acho que descobri onde está a “matéria escura” escondida, Marta.

- Sim, eu conheço a teoria. Que importância tem poara nós sabver disso?

- Que importancia tem??? Caramba, toda a importância possível!!! Saber sua quantidade é que vai determinar se nosso universo vai se expandir indefinidamente, entrar num ciclo interminavel de expanção e compactação, ou finalmente acabar colapsando totalmente daqui a algumas dezenas de bilhões de anos, num Big Crunch irreversível. Você me pergunta que importância isso tem??!!

- Daqui a dezenas de bilhões de anos eu não vou mais existir, nem você. Talvez, nem mais a humanidade... Talvez nem vida de forma alguma, um simples acidente temporário em meio à evolução das coisas inanimadas.

- Como você é, hein Marta!!

Max refletiu um pouco.

- Pois bem! Se vida, ou vida consciente, ou, mais ainda, vida consciente inteligente é um fenômeno tão efêmero assim, este é o melhor motivo para tentarmos entender tudo o que se passa a nossa volta, onde estamos, como aparecemos aqui, como podemos mudar as coisas, quais são nossos limites...

- Certo, Max, certo!! Poupe-me de seu sermões cosmológicos!

Maxwell odiava quando Marta interrompia seus devaneios tão inflamados. O fazia se sentir um crente religioso tentando defender esbravejante a sua fé, e ele bem sabia que não era assim! Ele tinha bases para acreditar naquilo que acreditava, bases solidamente científicas. E ele acreditava num ser inteligente (vejam que ao falar de inteligência ele de forma algumas se restringia aos humanos) capaz de compreender o mundo à sua volta em plenitude. Ateu? De forma alguma! Ele nunca o fôra. Mas, sim, ele acreditava num Deus capacitado o bastante para planejar e criar um universo que pudesse evoluir dali em diante usando suas próprias pernas, regido por leis totalmente determinísticas e compreensíveis por seres inteligentes que porventura se desenvolvessem nele, sem necessidade de continuar interferindo o tempo todo na história cósmica. Isto era inclusive conveniente! Depois de criar um universo, o liberava para planejar e criar outros universos, já que este que acabara de criar era completamente auto-suficiente. A tal ponto de sua própria existência poder ser negada, sem que isso interferisse de forma alguma em sua criação.

- Esta Equação de Onda de De Broglie você obteve da simulação, e não de forma empírica, observando um experimento real?

- Sim! Totalmente da simulação.

- E que hipóteses você considerou?

- Apenas hipóteses de mecânica clássica, estendidas num espaço de multiplas dimensões espaciais.

- Múltiplas dimensões? Você está falando de espaço-tempo?

- Nada a ver com espaço tempo. Apenas dimensões espaciais. Nossas três dimensões convencionais, mais algumas outras interferindo microscópicamente... não,nanoscópicamente... digo... picoscópicamente... ah, sei lá qual o termo!! Eu só modelei a mecânica clássica funcionando num espaço tridimensional não-contínuo e liso, e sim com rugosidades a nível subatômico impoerceptíveis na direção de dimensões espaciais extras...

Maxwell não podia acreditar! Aquela idéia se encaixava como uma luva na simulação que ele pretendia fazer de objetos tridimensionais amassados em dimensões adicionais!

- Pode me passar esta parte do simulador responsãvel por simular este espaço mulktidimensional? Sõ para eu não precisar começar minha simulação do zero?

- Lógico Max! Mas... que se passa nesta sua cabeça?

- Bom... Digo depois de você me revelar o que é que você nestá testando aí!