Mutação
O pôr do Sol avermelhado sinalizava que a noite seria muito fria. Os dias eram muito quentes e pelas ruas a movimentação para se aquecer já era enorme. Os mendigos rumavam para as filas em busca dos trajes descartáveis doado pelo governo, dois jovens de porte atlético e respeitoso conversavam entre si:
—Eu estou ansioso, confesso, é uma responsabilidade muito grande. – Um rapaz de cabelos negros, olhos cor de esmeralda e porte respeitoso falava enquanto mexia nervosamente as mãos.
— Sim cara é verdade, mas veja você passou com nota máxima em todas as etapas, isto é raro. Costumam dizer que quando é assim vem de sangue. – Responde um rapaz alto, musculoso, de cabelos negros e olhos castanhos escuros.
— Pois é, ai a responsabilidade é maior. – Ele suspira desanimado. — Tenho a obrigação de levar tudo até o fim.
— Ei relaxa, você está preparado! Passou por todas as etapas e o melhor, sabe o que fazer caso algo saia errado.
— Você já teve notícia de alguém que tenha desistido?
— Já sim, muitos não se apresentaram no dia seguinte. Dizem que não tiveram coragem de iniciar o processo.
— Sério? Para que se candidatam então? – O rapaz soca a palma da mão mostrando indignação.
— Não faço ideia Tales, apesar do caos mundial certos sentimentos humanos não mudam. – Diz o rapaz com os olhos voltados para o céu.
O outro observa a indicação no asfalto e estende a mão para o amigo:
— Chegou meu ponto de partida nos vemos amanhã.
— Amanhã é o seu grande dia. – Max lhe aperta a mão com força.
— Obrigado Max. – Responde o outro com sinceridade. Antes de entrar em seu ponto ele pergunta ao amigo.
—Porque nunca se inscreveu?
O rapaz eleva o olhar novamente para o céu e responde em tom de brincadeira:
— Nunca superei meu medo. – Diz sorrindo.
— Isto realmente é uma surpresa para mim. – Tales diz com os olhos surpresos.
— Nos falamos em breve, tenha uma noite boa.
O outro sorrir e se posiciona bem rente a uma linha amarela, um portal azulado se abre e Tales é sugado por um redemoinho azulado. Max por sua vez posiciona-se na outra extremidade, rente a uma linha alaranjada, um portal violeta se abre e magicamente ele some em meio ao redemoinho.
•••
Tales relê o protocolo de mutação enquanto bebe um liquido esverdeado e fumegante. Repete as etapas em voz alta caminhando de um lado para o outro. Seu apartamento está situado na parte mais alta da cidade e sua visão é privilegiada. Continua a repetir as etapas e se aproxima do gradil de proteção da varanda, para de ler e olha até onde a vista alcança, ainda está incrédulo, sente - se ansioso e ao mesmo tempo temeroso. Olha para baixo e respira fundo, olha para o copo e de um gole só termina a bebida fumegante, faz uma careta e vai se deitar.
Aquela foi noite mais longa da qual se lembrava, dores fortes maltrataram seu corpo, mas não eram em nada insuportáveis. Sonhou com pessoas carbonizadas, fogo e muitos gritos. Sentiu o sufoco e o calor das chamas, seus ouvidos foram machucados com o clamor da sirene e neste ponto ele deu um salto na cama. Seu rosto estava banhado de suor e sua pele queimava, como se realmente estivesse em brasa. Sentou-se na beirada da cama e cobriu o rosto com as mãos, respirou fundo e uma pontada no pulmão o alertou que não havia feito tudo corretamente. Corrigiu a postura e respirou novamente e desta vez nada sentiu. Levantou-se e caminhou devagar, se sentia meio desequilibrado. Colocou a coluna ereta e foi até um enorme espelho situado no corredor do apartamento, parou e olhou demoradamente. Virou-se de costas e reparou em cada detalhe, estava maravilhado. Foi até o guarda-roupa e pegou o novo uniforme, vestiu-se com dificuldade. Calçou as bostas e foi em direção ao banheiro, escovou os dentes e lavou o rosto. Não sentia fome, estava ansioso demais.
O sol já estava forte, mesmo sendo apenas cinco da manhã, óculos automáticos protegeram seus olhos à medida que ele se aproximava da varanda, abriu a porta de vidro e olhou para baixo, sentiu uma segurança incrível. Estava no décimo segundo andar, mas não tinha receio do que ia fazer.
Subiu na proteção da varanda e se posicionou, fechou os olhos e se jogou indo de encontro a sua missão. Voou livre no céu avermelhado, encantou-se com as lufadas de vento e abriu seus braços. O barulho do vento em suas asas causava uma comoção sem tamanho, seu coração batia forte e a sensação, com certeza, não era medo de altura. Plainou por alguns segundos procurando algo e quando encontrou deu um rasante entrando no redemoinho verde. Um turbilhão de cores se mostrou e em minutos estava no octogésimo batalhão de bombeiros. Foi recebido com festa por seu amigo Max e o restante da corporação. O capitão lhe entregou o novo emblema, agora ele era Primeiro Sargento Alado. A insígnia de uma asa dourada brilhava em seu peito. Sentia-se orgulhoso e estava preparado para servir a humanidade.
•••
O aquecimento global, um dos segundos problemas mais sérios da Era mundial, reduziu a água e dificultou muito os meios de transportes, ao meio dia é impossível dirigir, pois os pneus se colam no asfalto fumegante. O número de incêndios e vítimas aumentou quase que 90%. A mudança brusca da natureza obrigou os cientistas a intensificarem suas pesquisas com células troncos. Combinações começaram a ser feitas inclusive com a utilização de células animais de espécies diferentes. Muitas destas combinações não surtiram efeitos satisfatórios e a maioria foi descartada, porém a combinação humanos/accipridae resultou em algo fantástico. Durante dez anos foi criado um grupo de voluntários para confirmar o sucesso da combinação e os bombeiros foram os mais ativos nestes testes. Após várias reuniões entre os poderes legislativo e científico decidiu-se que a mutação ficaria restrita aos bombeiros, uma resolução justa e eficaz. Leis severas foram criadas para evitar o vazamento da tecnologia para mãos e uso errados. Os bombeiros alados se tornaram a nova esperança para o caos mundial. Os candidatos passavam por testes intensos e sua resistência física era colocada em xeque. Sabe-se bem que nem todos estão preparados para voar e que não é toda mente que aceita as mudanças corporais. Nada além de asas é adicionado ao corpo humano, porém esta asa torna-se parte do corpo e o processo não pode ser revertido. Nos dias atuais sabe-se que existe mais de três mil bombeiros alados em todo o mundo, um número bem inferior ao desejável. Os cientistas continuam suas pesquisas, tentam combinar a resistência de certos animais, como o camelo, a frágil estrutura humana.
Os super-humanos, como são chamados, são poucos, mas com certeza já garantem a permanência da vida humana na terra.
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— Eu não disse que você nasceu para isto. – Max se aproxima do amigo lhe estendendo a mão.
— É verdade, a dor foi suportável, os sonhos é que não me agradaram.
— Eles fazem parte do teste, o que você sentiu quando sonhou e o que lhe acordou? – Pergunta o rapaz coçando de leve o queixo.
— Senti-me aflito e fui acordado pela sirene. – Tales responde enquanto desliza o dedo indicador pelo novo emblema.
— Isto é um ótimo sinal. Creio que você não precisará passar por certas etapas. – O amigo lhe sorri satisfeito, orgulha-se dele.
— O sonho é parte do teste? Disto eu não sabia! – Ele novamente olha surpreso. — E o que meu sonho significa?
Antes mesmo de Max responder uma sirene toca alto, a insígnia no peito de Tales brilha e ele corre para o pátio. Olha para trás e se despede do amigo, vários outros se agrupam e as coordenadas são passadas. No vasto céu avermelhado os super-humanos voam livres, suas potentes asas fazem sombras enormes no chão. Qual será o futuro dos bombeiros alados? Não sabemos! Apenas torcemos que as coisas não saiam do controle e que a vida seja sempre a prioridade destes corajosos homens.
FIM