DISTROPIA - Capítulo 3

Como eu esperava, a estradinha de terra acabou se encontrando com uma via principal asfaltada. Ainda não reconhecia o lugar, mas era óbvio que logo me depararia com placas de sinalização que me ajudariam a me orientar. Havia pouca gasolina, eu estava na reserva. Conseguiria chegar longe com isto?

A via asfaltada era pouco movimentada, mas os poucos encontros que tive com outros veículos foram bem estranhos! Por que todo mundo naquela estrada insistia em guiar, a alta velocidade, em marcha ré? Quase colidi com um veículo, vi o motorista se aproximando tranqüilo, passar por mim, para, depois de passar o perigo, ouvi-lo atrás de mim esbravejando numa língua estranha. Será que não estava mais no Brasil? Que língua louca era aquela na qual o motorista me xingara com tanta raiva?

Minha dúvida foi logo sanada ao ler uma placa, onde se lia em bom português: São Paulo a 50 km. Sim, pelo menos já me localizara. Embora ainda sem lembrança nenhuma do caminho, sabia que estava perto. Teria combustível para chegar até lá? Foi quando, surpreso, notei que o ponteiro do mostrador havia subido! Será que todos os mostradores resolveram, de uma hora para outra, funcionar ao contrário?

Estranhei a falta de trânsito. Época de férias? Mas agradeci a coincidência. Vejo agora, por outro ângulo, que na época teria pirado se fosse logo colocado em contato com as outras pessoas naquela minha estranha situação. Reconheci rápido o caminho que costumava seguir habitualmente. Cheguei ao meu prédio (ninguém na rua), parei o carro em minha vaga na garagem (sim! eu me lembrava dela!) e subi até meu apartamento. O velho porteiro me olhava assustado enquanto atravessava a portaria em direção aos elevadores. Mas, o que quer que o tenha deixado espantado, perdeu o interesse assim que entrei pela porta do elevador.

Entrei em meu apartamento no 27º andar. Fazia calor, de forma que tirei o casaco e o deixei cair displicente atrás do sofá da sala. O ar condicionado estava ligado no máximo! Conclui que deveria ser um dia especialmente quente. Muito estranho isto, já que do lado de fora estava quase tremendo de frio...

“Preciso de ajuda! Que se passa comigo? Por que não me lembro de nada?” Ao lado do telefone, debaixo de um peso de papel, uma anotação: “Dr. James Karnot (psiquiatra): 555-3575”. Não me lembrava de a ter escrito, mas certamente reconheceria minha péssima caligrafia em qualquer lugar. Psiquiatra? Relembrando os estranhos fatos recentes, fazia todo o sentido. Liguei para o tal Dr. Karnot, talvez parte de minhas dúvidas fossem sanadas. Digitei, e ouvi uma mensagem automática numa língua desconhecida. Mas pelo contexto, entendi o que deveria significar: “este número não existe!”. Tentei de novo, e de novo, e nada! Relógios que correm ao contrário? Carros que precisam ser engatados em ré para avançarem? Resolvi entrar de vez na brincadeira, e digitei: 5753-555. Não é que funcionou!!

- Alô? É o Dr. James Karnot?

- Césari, siôped oguílet! Ishtnêm muaníf.

- Alô?? Alô?? Como? O que você disse?

- Cérari Dias é? Césari? Ôla?? Ôla??

- Doutor Karnot?? Não estou te entendendo!!

- Odãlaf ônrak-irôtoud... Ôla? - e a ligação cai...

Estava realmente perdido. Possivelmente minha última chance de contato falava uma língua totalmente incompreensível! E agora? Precisava relaxar. A TV era uma excelente idéia neste momento. Começava o noticiário, e ouvi a jornalista dizendo:

- Saissíton samitú sá siê. Aíjd mob!

Foi demais. O chão me fugiu dos pés quando percebi que a jornalista também falava naquele idioma infernal. Lembro de ter perdido a consciência ao ouvir novamente aquela estranha língua na televisão, e acordar uma ou duas horas depois.

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Quando recobrei a consciência, já começava a escurecer. A TV continuava ligada, mas quem agora falava naquele idioma estranho eram personagens de um filme. Desliguei o aparelho com raiva.

Escolhi um disco de vinil (sim, eu ainda tinha esta velharia em casa!) e imaginei que seria uma boa idéia ouvir um pouco de música para refrescar a cabeça. Posicionei a agulha numa faixa central daquele velho disco do Raul Seixas, a minha favorita: Sunseed. Coloquei o aparelho para funcionar. Porque será que nem fiquei tão surpreso assim ao descobrir que o disco, assim como os ponteiros dos relógios, girava ao contrário? Será que nem mesmo uma música decente eu seria capaz de ouvir de novo? Não havendo remédio, me contentei em ouvir a música anterior ao contrário mesmo, a engraçadíssima “Fim de Mês” ainda mais hilária quando tocada de trás para a frente. Fazer o quê, né? Quem sabe eu acabasse descobrindo mais uma das famosas “mensagens satânicas” que muitos afirmam ouvir tocando os discos ao contrário... Foi quando percebi que aquela língua invertida na qual Raul estava cantando lembrava muito o esquisito idioma que ouvi no telefone e na TV. Será? Como era possível isto? Seria uma brincadeira bem elaborada? A campainha do telefone me interrompeu os devaneios:

- Alô??

- “Irazés? Sêijd Irazés? Por favor, não responda. Apenas ouça, isto aqui é uma gravação. Por enquanto é a única forma que encontrei de falar contigo. Sou o Dr. James Karnot. Nos conhecemos a bastante tempo, mas você ainda não sabe disso. Precisamos nos encontrar, conversar sobre esta confusão toda pela qual você deve estar passando. Retornarei depois combinando o lugar. Ainda não é o momento de ir para fora, entrar em contato com as pessoas. Mas sei que é inevitável. Te dou então um conselho, pode parecer estranho mas é importante: se resolver sair para dar uma caminhada, não ande para a frente! Caminhe para trás, assim você vai chamar menos a atenção das pessoas. E evite conversar com elas por enquanto. Tente se acostumar a falar e ouvir vozes de trás para a frente. Você pode treinar com seus discos, por exemplo. Por hora é só. Descanse mais um pouco, te ligo mais tarde.”