DISTROPIA - Capítulo 2

Evidente que desisti rápido da idéia de tentar cozinhar qualquer coisa que fosse naquele fogareiro com defeito. Felizmente descobri caixas com biscoitos debaixo da cama, e por hora poderia matar a minha fome com eles. Logo pensei: “precisaria então utilizar uma geladeira para cozinhar alguma coisa?”. Não havendo nenhuma disponível, muito menos a leve sombra de energia elétrica, não seria capaz de verificar isto por enquanto...

Estava assustado, sem dúvida alguma! Mas vendo o estranho relógio marcar 2 horas, resolvi sair. Independente dele contar o tempo ao contrário ou não, o fato é que eu já estava trancado a 4 horas naquele cubículo. Precisava agir!

O sol radiante sugeria um quente dia de verão, mas o frio ao redor me confirmou ter sido uma boa idéia trazer comigo o velho casaco marrom surrado. Aquela insolação intensa realmente não combinava com o frio absurdo... Apertei o casaco contra o corpo, e caminhei pela clareira em torno da casa para tentar lembrar onde estava. Nada veio de minhas lembranças.

“César, César... onde foi que você se meteu desta vez?” Não me sentia mal, nem com dores de cabeça, de forma que definitivamente aquilo tudo não era conseqüência de um porre da noite anterior. Havia algo estranho em tudo à volta, em cada balançar de galhos, em cada pio de pássaro, embora no momento eu fosse incapaz de determinar com exatidão o que estava errado. Só sabia que estava errado!

Havia um carro estacionado à frente, semi-oculto por um alto arbusto. Trancado. Onde estariam as chaves? Resolvi voltar ao casebre de madeira.

Era estranho, o interior da casa parecia um cenário preparado para o momento em que eu despertasse. Não demorei para encontrar as chaves numa gaveta de um criado mudo ao lado da cama. Pareciam ter previsto minha atual confusão, meu estado amnésico, e tentado preparar tudo para me facilitar as decisões o máximo possível! Quem estaria por trás disso tudo?

Com chave do carro em mãos, sentei-me na cama e pus-me a pensar. Noventa porcento do problema já estava resolvido, não faria mal perder um tempo mais em reflexões. Então vamos lá, fazer um checkup geral da situação. Quem sou eu? Lembro bem quem sou, César Dias, minha amnésia não era assim tão grave a ponto de esquecer meu próprio nome. Onde estava? Não tinha a mínima idéia... Qual minha última lembrança antes de acordar hoje? Me esforcei, mas... não havia nenhuma! Quem eram meus pais, amigos, conhecidos? O que fazia da vida? Nada se revelava! Comecei a me desesperar... Onde morava? Ah! Enfim, um resquício de memória começou a surgir. Lembrava muito bem de meu pequeno apartamento de rapaz solteiro. Onde ficava? Como chegar a ele? Grande problema! Não fazia a mínima idéia. Certamente numa cidade grande, e não no meio do mato onde agora me encontrava. Mas como chegar lá?

Doze horas em ponto naquele relógio maluco. De nada adiantaria eu ficar lá sentado, delirando. Precisava agir! Coloquei vários pacotes de biscoitos salgados e doces numa mochila que descobri meticulosamente pendurada acima da cabeceira da cama, e novamente me aventurei no estranho exterior da casa.

Fui até o carro, abri a porta, entrei, girei a chave. Ótimo, ele deu partida! Para onde ir? Uma estradinha de terra se estendia à minha frente. E se eu a seguisse na esperança de reconhecer alguma paisagem familiar? Foi o que fiz. Pisei na embreagem, movi o câmbio para a primeira marcha, e... o carro começou a andar para trás!!! “Praga!!! O que tem de errado com as máquinas daqui???”

Desliguei o carro e saí dele desapontado. Deitei-me no chão. “Pensa, César, pensa!!! Você já passou por coisas piores!!”. Adormeci uns minutos exausto na grama, atormentado pelos recentes absurdos. A solução me veio dentro destes delírios loucos que costumamos vivenciar quando estamos no limite vigília-sono. “Relógio que gira ao contrário? Chuva que cai para cima? Fósforos que precisar ser ‘desriscados’ para acender? Chamas que congelam? Carros que andam para trás?” Acordei num pulo já sabendo muito bem o que fazer!

Entrei de novo no carro, girei a chave, e o coloquei em marcha ré. Surpreso? Nem fiquei surpreso ao perceber que o carro, lentamente, começava a marchar para a frente! Segui então aquela bucólica estradinha de terra, esperando reconhecer alguma parte do caminho e entender o que estava se passando...

... continua...