A Grande Viagem
Dava dó avistar aquela gente conectada uma à outra pelo cadeado inteligente, aguardando a vez de embarcar no aerotrem que os levaria para Yo. Senhores, senhoras, crianças, bebês de colo e até cachorros e gatos. Todos condenados a separarem-se definitivamente da Terra.
Certamente muitos deles não sobreviveriam a dura e longa viagem, por uma questão óbvia de tempo necessário até Yo, ou por conta da validade do medicamento pluslife, muito utilizado para estender em algum percentual de tempo a longevidade das pessoas. Enfim, somente alguns, de fato, fincariam os pés em Yo.
Os gestores até esforçaram-se em providenciar as melhores condições para que aquelas pessoas pudessem ser felizes durante a Grande Viagem e assim minimizar a dor e o sofrimento pela separação definitiva de seu planeta, aonde deixariam parentes, sonhos, alegrias e esperanças.
A vida humana na Terra findaria, disto ninguém duvidava e todos tinham consciência de que alguma coisa precisava ser feita para que a espécie humana não fosse definitivamente extinta. O pensamento unânime era de que a forma mais racional, humana e decente de encarar o problema seria mesmo enviar estas pessoas para Yo. Todos sabiam que, no futuro também que iriam, pois a Terra seria inabitável após o grande impacto, conforme concluíam as irrefutáveis e infelizes pesquisas científicas.
Apesar de a maioria estar convencida disto, alguns grupos ortodoxos fundamentalistas lutavam para arregimentar seguidores para o que eles, eufemisticamente, chamavam de a grande passagem, que seria o suicídio em massa no dia X. Quando seria esta data ninguém sabia ao certo. O que as autoridades sabiam era que deviam proteger o grupo que embarcaria para Yo das ameaças terroristas feitas pelos fundamentalistas, que não concordavam que a raça humana deveria ser enviada para outro planeta, e lá dar continuidade à vida consciente.
Antes de chegar a Yo os viajantes iriam aportar em um imenso cometa, que passaria a aproximadamente duas vezes e meia a distância da Terra à Lua, ou seja, em torno de 960 mil km da Terra. Esta era uma chance preciosa e irrecusável oferecida pela natureza para chegarem bem próximos de Yo, aonde algumas naves construídas pelos exploradores com materiais próprios do planeta, iriam resgatar as pessoas em diversas viagens.
Todos receberam os treinamentos para a Grande Viagem e a vida em Yo. Em milhares de postos espalhados mundo à fora aprenderam como flutuar, dormir, usar o banheiro, comer e outras coisas mais que seriam necessárias para a sobrevivência fora da Terra. Algumas pessoas saíram-se melhores que outras, mas na maioria todos acabaram acostumando-se com esta nova realidade. Já há muitas gerações as crianças vinham aprendendo na escola os conceitos básicos da vida em Yo e do comportamento que teriam de ter na Grande Viagem.
Os robôs, juntos com os técnicos, já estavam há séculos em Yo e já haviam alcançado o nível planejado de autonomia para não dependerem mais dos recursos da Terra. Lá eles cultivavam diversas espécies de alimentos preparados há muitas gerações para serem consumidos pelos homens e animais.
Na Terra todos tinham acesso às imagens e imersões virtuais para simularem a realidade de Yo. Diversos brinquedos, equipamentos, cursos, palestras, eram comercializados com abundância nas feiras e nos centros de consumo estando acessíveis a todos.
Os centros de realidade virtual reproduziam fielmente as condições climáticas, geográficas e de temperatura de Yo. Na verdade, havia controvérsia se estes aplicativos não eram muito otimistas cumprindo, desta forma, uma estratégia dos governantes.
A merenda escolar era formada, em grande parte, por alimentos que também eram cultivados naquele cometa. O organismo das novas gerações já estava sendo adaptado, aos poucos, para esta nova realidade.
Apesar de todo o esforço de adaptação e transição, na fila existiam pessoas que não queriam embarcar agora. Algumas delas não haviam passado por todo este treinamento, principalmente os mais idosos que se negavam a atualizarem-se com as novas versões dos treinamentos. Outros questionavam por que levar os idosos já que, possivelmente, eles não iriam além do cometa transitor. No entanto as autoridades, por mais questionadas que fossem, insistiam na necessidade de enviar também estas pessoas, pois desta forma a célula familiar estaria completa proporcionando uma maior autoestima aos viajantes.
Alguns poucos, mesmo assim, tentaram desistir da viagem na última hora, mas o cadeado inteligente era irreversível, como todos já sabiam e aceitaram. Os mais conscientes sempre lembravam aos indecisos da responsabilidade coletiva que fora exaustivamente debatida com a sociedade.
Por outro lado, outras pessoas que ainda não estavam agendadas para a viagem insistiam em embarcar agora.
Na verdade esta já seria a terceira leva de pessoas para Yo. As duas primeiras foram de técnicos e aconteceram em períodos muito distantes um do outro. Ninguém tinha notícia clara de como estas pessoas estavam virando-se naquele planeta. Apesar dos boletins oficiais, pairava no ar uma certa desconfiança de que o "Cérebro Central" não dizia a verdade plena sobre o assunto. Afinal, até o momento nenhum técnico tinha dado algum depoimento ao vivo. As raras entrevistas foram, visivelmente, editadas pelas autoridades para passarem sempre uma imagem de felicidade e otimismo.
Havia polêmica quanto a este comportamento. Alguns achavam absurdo as autoridades manipularem os fatos, enquanto outros entendiam que isto era justificável, pois certamente nem tudo correria como planejado, no entanto, não havia outro jeito. Com problemas ou sem problemas, a Grande Viagem precisava ser feita, pois a Terra não abrigaria mais seres vivos. Também havia a preocupação em não dar argumentos para os grupos ortodoxos, revelando problemas que surgiam em Yo.
Afastei-me correndo daquela gente e mergulhei na multidão indiferente ao embarque, e fui pensar sobre o assunto mais detidamente, agradecendo a sorte de ainda não ser a minha vez.