Involução das Espécies - Parte 1

Parte 1 – A Cordilheira Subglacial

A descoberta das cordilheiras em si já era um achado científico sem precedentes. Antes ocultas debaixo de quatro quilômetros de gelo, o topo da Cordilheira de Gamburstsevs abrigava agora populações de paleontólogos, ainda incapazes de acreditar nos fósseis que surgiam quase que diariamente. Apesar de estarem na Antártida, numa cavidade escavada sob vários quilômetros de gelo, a temperatura daquele sítio arqueológico até que era agradável. O gelo era bom isolante térmico, algo que os esquimós, no extremo oposto do planeta, sempre souberam quando construíam seus iglus. À medida que escavavam mais fundo, maiores eram as surpresas. Mais as novas espécies descobertas iam se diferenciando das atuais. Mas todas completamente novas, nunca encontradas antes em ponto algum do planeta!

Havia o dente-de-sabre, por exemplo, mas muito diferente daquele outro "tigre dentre-de-sabre", já bem conhecido. Ao invés de ser um ancestral dos felinos, surpreendentemente tudo indicava existir parentesco com caninos, mais especificamente com os lobos atuais. Outro ser estranho encontrado lembrava muito o morcego, apesar de não ter asas. Estas tinham dedos bem mais curtos, sem membranas interdigitais, curvados numa espécie de garra. As grossas patas traseiras sugeriam que talvez fosse bípede. Nenhum paleontólogo havia visto nada parecido antes, e muito menos conseguiam imaginar que tipo de desenvolvimento evolutivo o havia tornado o ser alado representado hoje pelos atuais morcegos. Aquele pedaço do antigo supercontinente Gondwana ainda guardava muitos mistérios. Mas nada semelhante ao que aquele velho crânio de um ancestral humano apresentava agora a Charles.

- Obviamente é um ancestral da espécie humana, mas não é nenhum dos que conhecíamos até agora!

Ao encontrarem esqueletos completos da nova espécie hominídea, ficou claro que eram bípedes, apesar de andarem bem curvados. Mas era o crânio que mais intrigava. A evolução natural conhecida até então para a espécie humana era a que causava progressivamente o aumento do ângulo facial. Em resumo, a testa antes recuada dos hominídeos primitivos avançava com a evolução, abrindo caminho para o cérebro em expansão. Mas naquela espécie nova era diferente. Elas não tinham testa recuada. Ao contrário, tinham rosto quase em ângulo reto, como o homo sapiens atual. A circunferência do topo do crânio é que era reduzida, apresentando um desenvolvimento evolutivo nunca antes observado. Eles não tinham frontal recuado, e sim o topo de suas cabeças menor. Ao invés de testa recuada, eles tinham testas mais baixas, e a circunferência do crânio diminuía.

- Como este ancestral humano veio parar aqui no continente antártico, Charles? Talvez devêssemos rever a atual teoria da deriva dos continentes. Me parece que este continente teve um clima ameno a muito menos tempo do que imaginávamos. E deveria estar também muito mais perto do que pensávamos do berço da humanidade.

- Existem muitos mistérios aqui. Estes seres que nunca observamos antes. O lobo-dente-de-sabre, por exemplo. De onde veio? Teria se desenvolvido só aqui?

- Está bem claro que isto foi um nicho ecológico isolado por bastante tempo, capaz de sustentar uma evolução distinta daquela que acontecia no resto do mundo. Algo parecido com o que ocorreu na Oceania, por exemplo. Particularmente na Austrália e Nova Zelândia.

- De fato. Quem seria capaz de imaginar um mamífero com bico, e ainda capaz de botar ovos?

- Infelizmente neste aqui a evolução literalmente congelou, teve que encerrar logo sua experiência. O clima se tornava cada vez mais insuportavelmente frio a medida que o continente navegava em direção ao polo sul do planeta, boiando sobre o magma pastoso interno. Os atuais pinguins provavelmente foram os únicos que conseguiram evoluir para uma forma mais adaptada ao ambiente novo.

Mas havia um fato novo que desconfortava todos os cientistas envolvidos nas escavações e registro dos fósseis.

- Como várias espécies atuais podem ter ancestrais distintos? Como acontecia com os morcegos, que aqui parecem ter evoluído de criaturas bípedes que não eram aladas? Não consigo conceber uma árvore evolutiva de cabeça para baixo...

- Convergência evolutiva, talvez?

Charles pensou um pouco. Não, isto não explicava o problema. Os lobos-dente-de-sabre, por exemplo, possuíam um parentesco genético notável com os atuais lobos. Convergência evolutiva implicava apenas na morfologia das espécies, não em sua genética. Era o que fazia golfinhos, tubarões e orcas adotarem morfologicamente as mesmas soluções hidrodinâmicas, apesar de geneticamente diferentes. Não era o caso: o lobo-dente-de-sabre era sim ancestral do atual lobo, bem como o outro ancestral já conhecido até então pelos paleontólogos. O ancestral bípede do morcego era ancestral do morcego moderno, bem como o antigo Icaronycteris já conhecido. E o hominídeo com circunferência cranial reduzida era tão ancestral de nós quanto o Neanderthal, de testa recuada. Que se passara de diferente na história daquele continente?

- É como se o continente antártico tivesse várias vezes se reaproximado para em seguida se afastar de novo dos outros continentes. Se aproximava para ficar atualizado das espécies dominantes daquela era, e logo depois se afastava para que elas pudessem ter uma continuidade evolutiva isolada do resto do planeta... Não consigo conciliar isto tudo! Não tem explicação!

Huxley mostra a Charles os ossos fossilizados da pata dianteira de uma gigantesca tartaruga antiga.

- Não dá para duvidar disto aqui, meu caro! Vou pedir uma análise de datação radioativa das amostras que conseguimos até agora, e amanhã continuamos esta conversa.

Percorreram os longos túneis escavados debaixo do gelo, indo cada um para seus próprios aposentos. Mas realmente seria bem difícil pegar no sono. A cabeça de ambos, bem como a de milhares de outros cientistas lá embaixo, fervilhavam de idéias malucas que tentassem esclarecer aqueles mistérios, encaixar as informações novas tão desconexas.