A Garota do Capacete Térmico
- Não consigo enxergar nenhuma veracidade nesta história.
- Por favor, quer falar baixo?
- Me desculpe, sempre esqueço!
Olharam para todos os lados, com medo de estarem sendo observados.
- Mas tem que ser verdadeira! Por que escreveriam um relato falso com tantos detalhes?
- Muita coisa não se encaixa. Aquela questão do caminho bifurcado, por exemplo. Seria alguma referência às probabilidades quânticas? Dualidade onda-partícula?
- Duvido. Existe bastante linguagem figurada nestes relatos. Mas neste caso específico acredito que seja algo mais concreto. Não creio que o capacete térmico da garota que escolhe um dos caminhos seja algum tipo de referência a um elétrons atravessando uma grade de difração. Tenho quase certeza de que se tratam de pessoas reais, vivendo uma história real.
- E como retirariam a anciã inteira e com vida lá de dentro? Impossível resistir em saúde perfeita, e muito menos doente como o relato descreve que ela estava.
- Acho que isto sim pode estar figurado. Provavemente não retiraram nem a anciã nem a garota vivas de lá, mas pedaços suficientes de seus tecidos para que elas pudessem ser clonadas mais tarde.
- Tudo bem clonarem a garotinha. Mas como fariam um clone já idoso?
- A história é bem antiga. Talvez na época ainda não tivessem desenvolvido a técnica de reconstrução dos telômeros cromossômicos. O clone da anciã certamente deve ter envelhecido muito rápido.
- As enzimas digestivas já teriam quebrado as cadeias de DNA, se não estou enganado.
- Não necessariamente. Tudo depende de quando a anciã foi atacada, e é certo que, de acordo com a história, a garota não deve ter levado mais que algumas horas para percorrer o caminho mais longo. Ainda haveriam células intactas não digeridas da anciã dentro do estômago.
O geneticista continuava com a pulga atrás da orelha. Precisaria demostrar experimentalmente que isto era possível.
- Mais uma coisa: o caminho longo não teria sido sugerido à garota pelo próprio...
- ...híbrido licantropo? Sim, este é o relato, e estou inclinado a acreditar que foi assim mesmo ocorreu.
- Por outros relatos da época, tais híbridos licantropos não eram o que se podia chamar de seres racionais, não é mesmo? As histórias com estes tais "lobisomens" não os mostra sempre se comportando com selvageria? Por que ele argumetaria com a garota ao invés de atacá-la imediatamente?
- Poderia estar faminto. E a possibilidade de devorar duas presas ao invés de apenas uma deve tê-lo feito elaborar este plano. Além disso, ele devia estar frustrado por não ter conseguido apanhar antes aqueles três suínos.
- Não sei... já pensou na possibilidade do livro dos ancestrais estar errado?
- Blasfêmia!!! Nunca mais repita isto, entendeu! - e cochichou na orelha do amigo: - Quer acabar pulverizado nas câmaras de dissociação molecular dos Censores?
Ambos os cientistas-tradutores olham apavorados para os lados, temendo olhos e ouvidos ocultos dentro do laboratório.
- Nós vamos conseguir provar esta história! Pensa um pouco mais, me ajuda! Tem de haver uma saída...
- Tudo bem, vamos lá. O que acontecia mesmo quando a garota chegava à casa da anciã com a cesta de glicose?
- O licantropo já devorara a anciã, e estava deitado na cama vestindo suas roupas.
- Como assim? Ele desnudou a velha antes de devorá-la?
- Não esqueça que licantropos eram parcialmente racionais, apesar da selvageria instintiva. Obviamente ele saberia que teria uma indigestão se a devorasse com as roupas.
- Então a matou antes...
- Bem, ela já estava doente e fraca de acordo com a história. Pode ter sido por estrangulamento. Fraca como estava, não deve ter conseguido resistir.
- Pobre velhinha... Mas devorando um ser humano inteiro, ele já não teria ficado satisfeito?
- Talvez ele fosse um espécime bem grande. Ah, sim! Tudo se encaixa agora! Lembra do diálogo final?
- Lembro sim! "Que olhos grandes você tem, vovó!"
- "Para te ver melhor"
- "E que orelhas grandes!". "Para te ouvir melhor..." Concordo, parece que era um hibrido dos grandes mesmo. Mas... ainda não encaixa.
- O que, por exemplo?
- A garota não teria reconhecido a avó? E ao ver que era um licantropo, não teria fugido?
- Ela estava de capacete! Talvez o visor estivesse sujo.
- Outra coisa - e chama o amigo para um canto, para não ser ouvido. - Como eles eram capazes de criar um híbrido combinando duas espécies diferentes, se na época ainda nem sabiam reconstruir os telômeros dos clones?
Os cientistas não ousaram mais tocar no assunto. Acabariam chegando a uma explicação para aquele texto sagrado milenar. Além disso, esta não era a única dúvida que precisavam esclarecer. Chapéu, por exemplo: o que signicava esta palavra? Entenderam pelo contexto da história que era algo usado sobre a cabeça, e traduziram o texto antigo como "capacete" por ser o objeto conhecido que mais se assemelhava a esta função.
E quanto a vermelho? O que significava "vermelho"? A natureza não gosta de desperdício, e o ser humano só possuiu visão tricromática centenas de milhares de anos atrás porque era útil à sua sobrevivencia, era o que os permitia diferenciar as frutas verdes das maduras. O ser humano do ano 100.000 D.C., vivendo num mundo totalmente tecnológico em que a própria comida poderia se materializar à sua frente, não precisava mais diferenciar isto. Foi evoluindo. Atualmente eram todos dicromatas, mais precisamente portadores de protanopia, ou ausência de cones capazes de perceber o espectro do vermelho. Foi um antigo texto discorrendo sobre as estrelas gigantes vermelhas que lhes deu a dica do que isto significava: óbvio, eles falavam da faixa do espectro emitida por aquelas estrelas térmicas escuras! "Chapeuzinho vermelho" deveria ser então algum tipo de pequeno capacete térmico. A garotinha sofreria de alguma espécie de hipotermia cerebral para precisar usar algo assim? Seria um problema genético, que na ocasião havia se agravado em sua boa avózinha? Sim, havia um trabalho árduo pela frente! Muitas partes do livro sagrado ainda precisavam ser esclarecidas...
- Poderíamos parar por hoje? Ainda existem capítulos novos para traduzir?
- Só mais aquele capítulo sobre o autômato lenhoso que se torna humano.
- Esse vai ser difícil! Tecido vegetal se transformando em células animais? De que época é isto?
- Poucos séculos de diferença.
- Não, me recuso a acreditar que nossos antepassados desenvolveram tal tipo de manipulação genética em tão pouco tempo!
Pela terceira vez, o amigo pede silêncio, apontando para as paredes ao redor.
- Ao trabalho, Grimm! Ao trabalho! Ainda temos muitas verdades antigas para provar!
Voltam à tradução daquelas páginas antigas sobre a bancada, escritas a muito tempo em línguas já mortas e registradas num alfabeto milenar praticamente esquecido. Não era mesmo um trabalho dos mais fáceis, mas era recompensador!