Pulsação

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Continuação de três outros contos também já publicados aqui:

1 - Transmigração

2 - Transmutação

3 - Recordação

Na época, parei por aqui mesmo... Mas estou animado com a idéia de retomar a história! :-D

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Numa sala em penumbra, uma caixa fechada. Dentro da caixa escuridão total, fraca fluorescência aqui ou ali. Massas sem muita forma sob o fraco brilho. Talvez orgânicas. Dezenas de primatas enfileirados, seus cérebros expostos. Parcialmente separados de seus corpos, mantidos inertes num gel espesso. Uma sonda eletromagnética sobre cada um, indução e captação dos sinais nervosos. Sinais recombinados, reorganizado. Centenas de pensamentos, a maior parte perguntas. ‘Onde estamos?’ Ondas captadas pela máquina fria. ‘Não sinto o resto de mim!’ Um cérebro de cristal reorganizando os sinais, indiferente aos seus significados. ‘Alguém pode nos ouvir?’ A máquina ouve... mas ela não compreende! ‘Quem está nos vigiando?’ E enfim o sinal mais forte, o que mais se repete. ‘Por favor, saiam da minha cabeça!!’

Os sinais captados continuam se recombinando segundo a lógica fria do cérebro de cristal. Ondas mentais de vários seres semelhantes são analisadas e comparadas. O modelo cerebral criado não corresponde às atividades dos cérebros reais. Nem poderiam, pois seria incompreensível. As atividades de várias regiões cerebrais diferentes são transformadas e deslocadas no modelo, para uma forma mais coerente. Do cérebro de cristal, o modelo criado é projetado numa câmara de neblina. Forma-se uma imagem que, embora mais coerente que a observada na distribuição espacial normal do cérebro, ainda apresenta várias facetas não totalmente compreendidas. Os pensamentos e memórias de dezenas de seres surgem sintetizadas naquele modelo, diante dos olhos de Qvain.

‘Meu velho e conhecido tecido de pensamentos...’

A imagem do modelo criado mudava de forma incansável. A alguns anos Qvain percebera uma repetição de padrões em duas regiões diferentes, separados apenas por um pequeno intervalo de tempo. Poderia ser algo característico da espécie primata sendo testada. Mas para espanto de Qvain a repetição também ocorria nos ashcroni. Uma excelente descoberta: isto permitiu reduzir ainda mais o tempo de transferência, pois o padrão repetido não precisaria ser explorado no cérebro doador!

Qvain tocava o modelo luminoso de quatro dimensões, tentando desdobrá-lo em outras facetas tridimensionais. ‘Será que isto é mais uma repetição de padrões?’ Com a ponta do dedo, ele estimula um pequeno ponto amarelo-pálido da imagem, tentando induzir o fluxo nas regiões vizinhas. Sensores nas paredes da pequena câmara de neblina identificam o movimento e sua localização. Começa a funcionar a lógica do cérebro de cristal. O espaço tridimensional induzido é transformado numa seqüência com os impulsos nervosos correspondentes. Utilizando uma chave de transformação calculada para aquela espécie, a máquina determina quais e por quanto tempo devem ser estimuladas algumas listas de regiões cerebrais, bem como as freqüências e variações harmônicas do sinal de cada uma das regiões. Do cérebro de cristal, a lista de impulsos elétricos se dirige às várias sondas, e destas centenas de milhões de neurônios de criaturas primatas são estimulados.

‘Vocês sentiram? Ele voltou!’ Dezenas de corpos distenderam os dedos simultaneamente, mas o gel espesso no qual estavam mergulhados não permitia um movimento mais brusco que este. ‘Quem é você? Por que não nos deixa em paz?’ O cérebro de cristal nada respondia, seu único objetivo era terminar de enviar aquela seqüência de impulsos nervosos para o qual fora programado. ‘Isto não está correto! Você não pode continuar colocando coisas em nossas cabeças!’ Mas a máquina prosseguia impassível com a sua tarefa...

Pelo ponto amarelado passavam várias linhas de um anil tênue. Apenas duas ou três destas linhas estavam mais brilhantes antes de Qvai tocar o núcleo brilhante. Ele sabia que cada linha do modelo na verdade representava milhares de ligações sinápticas relacionadas entre si, que podiam inclusive estar localizadas em extremos opostos do cérebro, na distribuição real. Sem a chave de conversão calculada e o auxílio da máquina, observar e manipular os pensamentos seria algo impossível.

Quando Qvain tocou o ponto brilhante ele se expandiu e se tornou vermelho. Começou a pulsar numa freqüência bastante conhecida, e fez brilhar todas as linhas conectadas a ele. Por tais linhas, as pulsações se propagaram e iniciaram a atividade de outros pontos brilhantes antes inativos, ativando outras linhas que antes estavam desligadas. Bastou pouco tempo para que Qvai percebesse uma sucessão de padrões já bastante conhecida, iniciando-se no centro do modelo, propagando-se até a superfície que parecia um elipsóide e finalmente se desfazendo num dos cantos mais afastados do centro. ‘Me enganei, era apenas mais um centro motor...’ O sinal foi se tornando mais fraco com o passar do tempo. Isto ocorria porque os neurônios envolvidos no estímulo fatigavam. Finalmente o modelo retornou ao seu estado padrão.

Algumas vezes os padrões mudavam espontaneamente, sem o estímulo do operador. Muito destes estímulos eram iniciados por nervos sensores dos próprios organismos estudados, apesar de todo o esforço feito para isolá-los do mundo externo. Talvez algum som dentro da sala, ou uma pequena centelha produzida pelas sondas e captada pelos olhos das cobaias. A cada novo padrão coerente descoberto, a chave era recalculada e os centros coincidentes apareciam numa única região espacial no novo modelo. Algo semelhante ocorria com as linhas que ligavam os vários centros de pulsação. O modelo era quase que totalmente previsível: a indução de tal centro vai se propagar por tais linhas, e estimular estes outros centros. A velocidade da propagação também era importante: quando as linhas se cruzavam, o fato de um dos sinais passar antes do outro afetava o resultado geral. Basicamente era em tal disposição de linhas e de pontos pulsantes que estavam as memórias e habilidades aprendidas pela criatura.

<< Qvain? Te incomodo se entrar? >>

Por alguns segundos Qvain se concentra em seu sentido de presença, tentando identificar o visitante. Geralmente demorava algum tempo para reconhecer alguém que não se costuma ver com freqüência.

<< Não me incomodo, Krivt. Precisava mesmo discutir idéias novas com alguém >>

<< Você sabe que não sou especialista nisto... >> disse apontando para o modelo luminoso na frente de Qvain.

<< Sem problemas, não é algo muito específico do meu trabalho. >>

O modelo começou a entrar em atividade. Foi iniciada por uma região bem conhecida, com meia dúzia de centros luminosos bem definidos. Inclusive foram destacados por Qvain na própria chave de transformação, gerando uma pequena névoa brilhante em torno daqueles centros. Este conjunto era invariável, e o mais incompreensível do modelo. Todas as outras partes do modelo tinham um comportamento bem definido, respeitando leis bem conhecidas de causa e efeito. Mas este conjunto destacado tinha um comportamento próprio, imprevisível. Seus estímulos dificícilmente partiam como resposta aos estímulos dos nervos sensoriais. Além disso, a rede de linhas que os ligavam entre si era de uma complexidade tal que impedia qualquer tentativa do pesquisador de estimular artificialmente esta área, como minutos atrás Qvain fizera numa área motora. Estas ligações se organizavam de forma a contrabalançar qualquer tentativa de estímulo artificial.

<< Você acha que as cobaias que usamos em testes têm consciência como nós? >>

<< Filosofia também não é minha especialidade, Qvain... >>

<< Só gostaria de saber se estes primatas sabem que eles existem. >>

Isto não interessava muito Krivt. Mas ele tentou manter a conversa, para descobrir onde Qvain queria chegar.

<< Bom, eles reagem à luz, aos sons, ao calor... São capazes de se mover até a comida. Também aprendem a diferenciar agentes dolorosos daqueles que lhes causam prazer. >>

<< Certo, mas isto nós também fazemos. Mas eles têm alguma autoconsciência? >>

<< Entendo pouco disso, mas sei que tem algo a ver com a memória de curtíssimo prazo. >>

De fato Qvain já sabia parte da resposta. Em tempos bastante remotos, quando se faziam as primeiras transferências para organismos novos, várias pessoas se questionaram se estavam mesmo transferindo um indivíduo para outro organismo. O receptor recebia alguma "essência" da pessoa original? Em que se baseava tal "essência"? Toda pessoa acredita que seus pensamentos ocorrem em torno de tal essência, que na falta de uma palavra que melhor a descrevesse elas chamam de "eu". Mas o que era? Era o cérebro? Neste caso as pessoas não se transferiam realmente aos organismos receptores, pois o cérebro original era destruído. Porém isto não parecia ocorrer. Ora, ele, Qvain, sabia que era mesmo Qvain, apesar das inúmeras transferências já feitas. Sentia que todas as suas lembranças, recebidas durante as várias transferências, foram vividas por ele mesmo, e não por algum outro organismo do qual recebera uma cópia do sistema nervoso.

<< Certo, Krivt. Sempre pensamos que esta nossa autoconsciência é algo constante, que existe o tempo todo em que estamos vivos. Mas não é o que vemos nestes modelos artificiais. Esta idéia surge e se desfaz o tempo. Só parece constante por causa de nossa memória de curtíssimo prazo: a cada fração de tempo que ela surge, por associação são ativadas as lembranças das últimas frações de segundos, e é isso que nos faz acreditar que existimos o tempo todo... >>

Mas Qvain voltou a se perturbar ao olhar novamente para aquela região destacada do modelo. Tudo indicava que esta região era a responsável pelo que chamamos de consciência. Ela nunca parava. Várias vezes por segundo ela disparava inúmeros impulsos por todo o "tecido de pensamentos", como Qvain gostava de chamar o modelo de quatro dimensões. Várias vezes por segundo um impulso era emitido, ainda que bem fraco, para todos os centros de controle e por todas as linhas de ligação. Parecia que era importante sempre manter algum fluxo mínimo dentro delas para que não ficassem bloqueadas. De fato descobriu-se que esta pulsação periódica, que se repetia aproximadamente 12 vezes por segundo no cérebro de um ashcroni desperto mas relaxado, eram responsáveis por facilitar a atividade de todo o sistema nervoso. Parecia que doze vezes a cada segundo esta área conferia se a mente continuava funcionando direito...

<< O que te incomoda exatamente, Qvain? Acha que houve alguma falha na sua transferência? Alguma memória discordante com seu estado atual? Por acaso está achando que você não é você? >>

<< Mitati comentou algo? >>

<< Não entrou em detalhes. Apenas se mostrou preocupado. >>

<< De qualquer forma, não estou perguntando se nós temos ou não alguma autoconsciência verdadeira. É irrelevante se ela existe e é constante ou se nossa memória é que a faz parecer assim. O que estou me perguntando é se esta espécie que usamos como cobaia também tem algo parecido. >>

Krivt ficou impaciente. Agora parecia óbvio que aquele diálogo com Qvain não chegaria lugar nenhum.

<< Mas não foi isso que vim discutir com você, Qvain. Podemos tratar de tais questões filosóficas outra hora. >> Na verdade Krivt não via a hora de se livrar de tal conversa sem sentido. << Vim te comunicar uma convocação dos Administradores. >>

<< Sobre o sistema de Bjar-Nok? >>

<< Não se trata disso. Não me disseram o que exatamente, mas parece que será uma reunião bastante restrita. Querem ouvir uma opinião de um especialista em sua área de trabalho. Será em dois dias.>>

<< Tudo bem. Quanto ao que estávamos discutindo... será que você poderia pensar um pouco mais no assunto? Talvez uma idéia diferente me fizesse ver uma resposta que não percebi ainda. >>

<< Lógico que sim... >>

Mas isto não interessava Krivt de forma alguma. Ele nunca mais pensou no assunto. Posteriormente ele passou a evitar Qvain, ainda mais quando ele tentava voltar à discussão. Tudo era perfeito na sociedade dos ashcroni, e Krivt se sentia muito feliz em sua função de técnico de clonagem. Um indivíduo um pouco desajustado como Qvain não tinha o direito de tentar colocar dúvidas em sua cabeça.

<< Krivt me falou algo da discussão filosófica que vocês tiveram no primeiro turno do dia. >>

<< Ele pensou no assunto? Teve alguma idéia. >>

<< Estava furioso. Parece que ele não gosta muito de discutir essas coisas... >>

Qvain e Mitati saíram da cúpula, e caminhavam na superfície do planeta. As estrelas mais brilhantes podiam ser vistas atravessando a névoa. Em volta da cúpula, uma enorme piscina circular estava cheio de água. Era importante para manter a temperatura suportável. Os dois caminhavam sobre uma ponte estreita e bastante longa, cujas bordas luminosas indicavam o caminho em meio à neblina.

<< Você desligou o aparelho antes de dormir ontem, não é verdade? >>

<< Como? >>

<< Eu te conheço bem Qvain! Depois do que conversamos, duvidava que você não tentasse dormir com o aparelho desligado, tentando sonhar novamente com aquelas lembranças antigas. >>

Eles se conheciam a séculos, não havia como esconder algo de Mitati.

<< E então? Voltou a sonhar com o tal de... como era mesmo? Nôrva? >>

<< Não, acho que não aconteceu de novo. >>

<< Eu me lembro que nem tudo o que sonhamos é registrado. Fiquei curioso e li uns estudos antigos sobre isso hoje cedo. Parece que só recordamos dos sonhos que ocorrem pouco antes de despertarmos. >>

Qvain bocejou, contra sua vontade.

<< Háhá! Vejo que você já está pagando o preço por me desobedecer. Tem certeza que vai agüentar o segundo turno da noite sem dormir? >>

<< Consigo sim. Ainda preciso verificar algumas idéias no laboratório. >>

<< Às vezes eu também acho que 20 horas é muito pouco para um dia. Talvez se dormíssemos mais horas poderíamos dispensar o indutor de ondas. >>

<< Vou experimentar desligá-lo hoje novamente. Quem sabe as lembranças surjam desta vez. >>

<< Você está começando a me deixar curioso, Qvain. Quem sabe um dia desses eu tente fazer esta experiência também. >>

<< Pelo menos isto ainda não é proibido, apenas desaconselhável... >>

<< Sim... Talvez seja por isso que não tentei fazer até agora. Quem sabe eu faça quando nos proibirem de desligar o aparelho. >>

Ambos se perderam na neblina. Ainda restava uma hora antes de começar o novo turno, e eles estavam dispostos a gastar todo esse tempo restante em conversas sem muito sentido...

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