Recordação

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Também um texto antigo, que escrevi em 2000 mas nunca publiquei.

Coloquei em minha homepage pessoal, mas sem divulgar muito...

É a terceira parte de dois outros contos que postei aqui, "Transmigração" e "Transmutação". Reli, vi que não estava tão ruim assim como imaginava, e resolvi postar aqui. :-)

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Qvain se sentia pronto para reocupar seu alojamento. Dispensou a ajuda dos Preparadores: sentia-se bem recuperado, e se recordava com clareza do caminho para casa. Já havia perdido a curiosidade quanto a seu novo organismo, e desejava apenas retornar ao antigo cubículo e descansar, como já fazia a séculos depois de cada transferência...

Os túneis milenares continuavam bem familiares. Por uma estreita fenda no teto, Qvain descobriu que amanhecia. Encerrava-se outro ciclo de vinte horas. Quando a estrela amarela finalmente surgisse começaria um novo dia na contagem dos ashcroni. Qvain só lamentou não poder subir à superfície antes de se recolher e respirar ar fresco, pois a séculos era desaconselhável se expor aos raios do sol. O fato obrigou os ashcroni a inverterem o ciclo normal de atividades: se recolhiam nos períodos luminosos, e exerciam suas atividades durante a metade escura do dia.

Depois de caminhar durante dez minutos, as paredes do túnel, antes lisas, começaram a apresentar saliências retangulares a intervalos regulares. Uma dessas saliências era a entrada para o alojamento de Qvain. Colocou a mão direita numa área circular mais acinzentada que o restante da parede, e imediatamente a saliência retangular se abriu revelando um minúsculo cubículo. Os ashcroni eram todos clones de uma mesma matriz, e os desenhos nos dedos e nas palmas das mãos eram uma das únicas características capaz de diferenciar um indivíduo de outro.

Ele poderia facilmente ter percebido alguma presença dentro do cubículo antes de entrar, caso quisesse. Entre os ashcroni, tal sensação de presença era um dos sentidos mais importantes para que os indivíduos fossem capazes de se reconhecerem. Mas o fato é que Qvain não esperava haver alguém lá dentro, pois sabia ser impossível. Por isto ele não havia dado muita atenção àquele sentido, e se surpreendeu ao encontrar alguém dentro do alojamento.

<< Mitati??!! >>

O amigo de vários séculos esboçou um leve sorriso.

<< Mas... Como você entrou? >>

<< Tenho meus meios, Qvain. Mas isto não importa. Sabia que você voltaria hoje, quis saber se está bem. >>

<< Me sinto mais jovem... >>

Ambos sorriram levemente, o máximo que faziam dois indivíduos da espécie que se conheciam a muito tempo.

<< Sim, você parece mais jovem... E tudo correu bem com a tranferência? >>

<< Sem dúvida! Parte daquela máquina veio daqui de dentro da minha cabeça. Lógico que ela teria de funcionar bem! >>

De fato era esta a ocupação de Qvain nas últimas décadas. Decifrar os padrôes mentais do organismo antigo para copiá-los no organismo receptor era algo que os ashcroni sabiam fazer a pelo menos três milênios. Mas fazer isto de forma eficiente já era outro problema. Há poucos anos Qvain havia percebido uma certa coerência ainda não notada nos padrões cerebrais da espécie, o que permitiu reduzir o tempo da transferência quase pela metade. Esta coerência permitia às máquinas de transferência prever alguns dos padrões seguintes com apenas informações parciais do sistema nervoso doador.

<< Bom, eu ainda terei de esperar uns trinta anos para me sentir como você está se sentindo agora. >>

Por alguns minutos ficaram silenciosos. Qvain sabia que nem tudo havia corrido perfeito, mas não conseguia identificar qual o problema.

<< Foi simples entrar aqui. Eu havia preparado seu organismo novo durante a fase da maturação, e não foi muito difícil conseguir o desenho de seus dedos... >>

<< Você já havia me tocado antes? >>

<< Ora, Qvain... Ainda não era você! >>

A ousadia de Mitati geralmente o divertia.

<< Você sabe que é proibido abrir os tanques de maturação. >>

<< Muita coisa é proibida. Só queria ter certeza que estava tudo bem com o organismo novo de meu velho amigo. >>

Novo período de silêncio. Qvain não conseguia se concentrar na conversa. Talvez fosse a lembrança do tanque de maturação, de sua água salgada. Desta vez ele precisou da ajuda dos Preparadores para se livrar dela. Talvez o choque o tivesse abalado um pouco. Provavelmente ele estaria recuperado depois dos primeiros dias de trabalho.

<< Você não está falando muito hoje, Qvain. >>

Novamente Mitati encontrou Qvain perdido em pensamentos. Precisou aguardar um pouco pelo momento exato de reiniciar o diálogo.

<< Tem certeza que você está bem? >>

<< Como? >>

<< Você está bastante disperso. Está cansado? >>

‘Não, o problema não foi o tanque de maturação. Já aconteceu antes, e não me havia abalado tanto...’

<< Mitati, não tenho certeza... Acho que é algo que não consigo me lembrar. >>

<< Aconteceu durante a transferência? >>

‘Não me lembro da transferência. Nunca me lembro. Definitivamente foi algo que aconteceu depois.’

<< Não, foi depois dela. >>

<< Os Preparadores disseram algo a você? >>

<< Você sabe que eles não costumam falar muito. É a rotina de seu trabalho. >>

Mas tinha uma vaga noção que o que incomodava tinha algo a ver com palavras.

<< Mitati, quanto tempo atrás você consegue voltar em suas lembranças? >>

<< Dez ou quinze séculos talvez, não mais que isso. Antes disso as lembranças ficam bastante confusas. Mas isto é importante? >>

<< Você sabe que as lembranças não desaparecem... >>

<< Existe um limite para nossas memórias. Lentamente eliminamos o que não é mais importante para registrar lembranças mais recentes. Bom, mas você deve saber disso muito melhor que eu, é o seu trabalho! >>

<< Certo, mas as lembranças antigas nunca são apagadas inteiramente. Elas são apenas sintetizadas. Vão sendo retiradas as informações acessórias, menos importantes, até restar apenas uma fração sufocada pelas lembranças mais recentes. Mas sempre é possível restaurá-la por completo, caso possamos identificar este resíduo... >>

<< Por quê isto está te incomodando? >>

Qvain novamente se tornou pensativo. Que palavra era aquela que tanto o estava incomodando, mas que ele não conseguia se lembrar?

<< Nórvam!! >>

<< Como? >>

<< Antes da transfusão, quando dormia, me lembrei desta palavra! Sabe o que significa? >>

<< Não tenho certeza, não me parece que tenha sentido. Talvez seja o nome de alguém. Era um dos Preparadores? Posso verificar para você. Talvez tenha despertado quando eles conversavam... >>

<< Não, não foram eles que me disseram esta palavra. A ouvi enquanto dormia. >>

Havia incompreensão no olhar de Mitati.

<< Enquanto dormia? Você quer dizer antes de dormir, não é? Ou quem sabe depois de despertar... >>

<< Não, estou certo que foi pouco antes de despertar. Parte de uma conversa, mas não eram sons vindos de fora. >>

<< Você esqueceu de ligar o indutor de ondas neste dia? Porque o que você está tentando descrever é um sonho! >>

<< Não sei, talvez o equipamento tivesse falhado. >>

<< Isto é grave, Qvain! Sem o indutor de ondas você não desperta totalmente refeito no dia seguinte. Não é aceitável que sua mente continue a trabalhar quando seu organismo repousa! >>

‘Nórvam, Nôrva... Sim! Tenho quase certeza que ouvi a palavra Nôrva!’

<< Precisamos chamar Nôrva... >>

<< Quê? >>

<< Foi esta a frase que ouvi quando sonhava! Mitati, quem é Nôrva? >>

<< Não sei se você devia se preocupar com isto. Mas posso procurar em registros antigos para você. >>

<< É proibido. >>

<< Eu sei. Abrir o teu tanque de maturação também era. >>

Agora o riso trocado pelos dois foi bem mais aberto, algo não muito normal entre os ashcroni.

<< Fui eu quem disse esta frase, Mitati. Não consigo me lembrar do contexto em que ela foi dita, nem quando exatamente... ‘Precisamos chamar Nôrva’. Deve ser uma lembrança tão antiga! Provavelmente é muito importante, ou não me lembraria dela tanto tempo depois. >>

‘Pobre Qvain, sempre volta um pouco estranho depois das transferências... Mas tenho certeza que isto passa depois dele trabalhar alguns dias. Sempre passa.’

<< O sol já deve estar alto lá em cima. Seria melhor que eu me recolhesse >>

Qvain concordou. Provavelmente ele esqueceria esta história toda quando voltasse a se concentrar no trabalho. Mitati se dirige à saída do cubículo.

<< Até amanhã, Qvain! >>

A entrada se fechava, mas Mitati ainda teve tempo de dizer:

<< E não se esqueça de ligar o indutor de ondas! >>

Ele não se esqueceu. Quando as luzes foram reduzidas, o zumbido do aparelho começou a induzir a parada completa do sistema nervoso. Mas seu cérebro ainda estava ativo, e ele ainda consciente, quando imagens e sons de um passado muito distante começaram a se formar dentro de sua cabeça.

Pouco antes de adormecer completamente, ele ainda de lembrou de desligar o aparelho...

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