Labirinto de Formigas - PARTE 1

O velho modelo em acrílico transparente repousava agora escostado nos livros da estante. Era o protótipo, a primeira idéia daquela experiência. Não mais caminhavam dentro de seus canais aquelas pequenas criaturas de seis pernas, tateando com suas antenas um caminho otimizado para fora aquele labirinto, mas a memória da solução encontrada permanecia quimicamente registrada em suas paredes pelos feromonas. Aquele era o menor caminho entre os dois únicos pontos de contato daquela estrutura com o exterior.

A estrutura que atualmente estava sendo testada era bem mais complexa que a versão bidimensional primitiva. Uma intrincada rede tridimensional de canais estava agora preenchida por uma colônia de operárias, tateanto uma solução nova para aquele problema. Estavam perto. Elas pareciam aprender com cada problema novo!

Pelas paredes dos laboratórios e corredores daquele centro de estudos mirmecológicos se espalhavam terrários de várias formas, comportando colônias de formigas de várias cores e tamanhos. A complexidade dos testes executados atualmente em cada um era marcado por pontos coloridos: amarelo para colônias iniciantes, vermelho para as que já resolviam labirintos tridimensionais, e cinza para colônias mais avançadas, capazes de resolver complexos problemas de otimização de grafos codificadas em peças de acrílico cúbicas.

- Não sei se entendi muito bem o que você disse até agora. - o computólogo não sabia ainda se tinha ouvido direito a explicação do biólogo, especialista em mirmecologia. -Se eu estiver enganado, me avise: o que você pretente criar é um computador de formiga? Entendi direito?

- Não exatamente. Seria bem mais especializado, e não um dispositivo de propósito geral como os computadores. Eu o chamaria de Otimizador Mirmecológico.

- "Mirme" o quê?!

- Mirmecológico. De "mirméx", formiga em grego.

- Ah, tá... e você quer fazer um computador...

- OTIMIZADOR!

- Que seja! Usando estes tais de "mirméxes" aí?

- Mirméxes não! Mirméxia, o plural grego de mirméx. Já viu com que rapidez elas resolvem os labirintos?

- Sempre achei que os cientistas só costumassem torturar ratos desta maneira. Nunca imaginei que fizessem com formigas também.

- E qual a surpresa? Já viu o labirinto que é dentro de um formigueiro? Já ouviu falar de uma formiga se perdendo lá dentro?

- E o que isso tem a ver com esse tal de... Como chama mesmo? Otimizador?

- Tudo a ver! Você já tentou resolver um labirinto?

- Algumas vezes. Mas não tenho muito saco para isso. Prefiro muito mais criar algoritmos para resolvê-los para mim.

- Pois bem: resolver um labirinto nada mais é do que encontrar um caminho otimizado entre os pontos de entrada e saída. É só um problema particular de otimização, que as formigas resolvem por instinto.

- E o que tem de tão útil assim em resolver labirintos?

- O labirinto em si, nada. Mas se pudermos codificar um problema complexo, computacionalmente inviável, na forma de canais tortuosos e passagens inesperadas dentro de um grande labirinto em três dimensões, uma colônia bem treinada de formigas seria capaz de encontrar uma solução em questão de minutos. Venha aqui ver uma coisa. É mais fácil ver isto funcionando do que tentar explicar...

Uma caixa cúbica de acrílico transparente, de aproximadamente 50 centímetros de lado, estava sobre uma mesa, entre dois terráreos. Tubos flexíveis saíam de ambos, em direção a duas faces opostas da caixa. Dentro dela uma confusão de canais de um labirinto tridimensional, que rapidamente colocaria qualquer Teseu insano, apesar de que naquela confusão toda de caminhos entrelaçados o próprio Minotauro teria dificuldades em encontrá-lo. Ao abrir as passagens por tais tubos, primeiramente centenas, e logo depois milhares de formigas já se espalhavam dentro da caixa cúbica, procurando pela saída. A informação se propagava rápido entre elas: quando uma se deparava com um beco sem saída, logo marcava aquele local como indesejado, lançando os feromônios adequados, e propagava o dado para as vizinhas. Em pouco tempo toda a colônia compartilhava desta informação, e aquele caminho sem saida passava a ser evitado. Pouco mais de um minuto foi o tempo necessário para encontrarem a passagem para o outro terráreo, e a caixa esvaziou rápido depois disso.

- Tá certo, gênio. E agora que elas foram embora? Qual foi o caminho que elas seguiram?

- Você já viu um caminho de formiga? Tem idéia do que levam todas a seguir o mesmo trajeto das que foram na frente?

- Nenhuma. Responde logo, sei que você não consegue mais se segurar para me explicar...

- Elas marcam com feromônios. As primeiras exploradoras, as que encontram o caminho, marcam quimicamente a trajetória para as que vêm atrás seguirem.

Ele olhou bem para a caixa agora vazia, e disse.

- Pois eu não estou vendo nenhum sinal dos tais feromônios marcando a solução do labirinto.

O mirmecólogo aperta então um botão sobre a caixa. Uma luz azulada se acende, e dentro da caixa de acrílico se vê com clareza uma linha fosforescente ligando a entrada à saída daquele labirinto.

- Esta luz reage com a substância química do feromônio marcador, fazendo-o brilhar. Eis aí nossa solução para uma instância de 100 vértices e 400 arestas do famoso Problema do Caxeiro Viajante.

O computólogo podia entender pouco de formigas, mas aquela outra linguagem ele conhecia bem.

- Como?? Um problema NP-Completo de 100 vértices e 400 arestas, resolvido em pouco mais de um minuto? Por uma formiga?

- Não, por milhares de formigas! Individualmente elas podem ser estúpidas, mas numa colônia treinada para resolver problemas, conseguimos um nível de paralelismo nunca antes sonhado!

O computólogo logo viu aonde aquilo tudo poderia levar. Quem diria, um computador de formigas! Realmente sua curiosidade fôra despertada.

- Me mostre mais, por favor!

Caminharam então horas pelos corredores, percorrendo salas onde problemas nunca antes sonhados eram resolvidos num piscar de olhos.

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Estimuladas por aquele mundo estranhamente complexo, especializações inéditas começavam a emergir naquelas várias colônias de formigas. O polimorfismo das várias espécies estava agora funcionando como nunca! Não é difícil entender como isto acontece, se fizermos uma analogia grosseira com o mundo dos humanos. Tomemos então dois gêmeos idênticos. Prive um deles de comida, enquanto alimente o outro com doses cavalares de gorduras e carboidratos. Não parece óbvio concluir que, embora ambos sejam geneticamente idênticos, eles ficariam em pouco tempo fisicamente diferentes? Que enquanto um deles ficará raquítico, o outro provavelmente estará obeso? Acontece algo parecido nas colônias de formigas, mas de forma bem menos desumana. Nenhuma é de fato privada de alimentação, mas é a diferenciação na dieta alimentar que faz com que as larvas se desenvolvam como operárias, soldados, machos e fêmeas férteis, etc...

Quando o problema era defender a colônia, encontrar e trazer comida, variações simples daquele velho esquema com soldados, operárias e reprodutores era suficiente. Porém, naquela situação nova de problemas com complexidades crescentes, elas precisaram se especializar mais, criar novas variações morfológicas nunca antes necessárias. Surgiram as células sensoriais, por exemplo, indivíduos com enormes olhos para melhor captar as luzes do exterior. Também outros de pernas enormes, excelentes para detectarem o menor tremor de oscilações atmosféricas, também conhecidos como sons. A produção e detecção dos feromonas também aumentou, para permitir a propagação e registro de maior quantidade de informações na forma química. As colônias de várias espécies, naqueles vários terrários, foram assim evoluindo...

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Allan, o computólogo antes descrente, e agora embasbacado com as possibilidades daquelas experiências com formigas, tentava reproduzir em seu computador o mecanismo utilizado por elas para resolverem aqueles problemas de otimização. O mirmecólogo Pierre era imprencidível para esclarecer pontos mais obscuros do mecanismo, que Allan prontamente codificava naquela linguagem hermética de números e símbolos que poucos eram capazes de entender.

- Então, Pierre. Como funciona mesmo esta história de marcar o caminho com feromônios?

Pierre se enchia de orgulho de poder explicar aquele assunto que entendia tão bem!

- As buscas sempre começam meio que aleatórias. Talvez nem tanto: cheguei a pesquisar uma idéia de "olfato espacial". O fato das formigas terem duas antenas, que são órgãos olfativos, talvez desse a elas alguma idéia a respeito da direção de onde viriam os cheiros, como acontece com nossos olhos e ouvidos. Mas deixa pra lá, nunca cheguei a conseguir provar isto, embora esteja convicto de que tenho razão...

Allan ouvia atento, esperando agarrar algunma oportunidade de transformar aquilo em código de computador.

- Suponhamos então que um indivíduo específico, caminhando ao acaso, encontre comida. Como comunicar isto aos demais? Simples: ele continua caminhando ao acaso, mas agora marcando seu trajeto com feromônios!

- Sim sim! Consigo ver onde isto vai chegar...

- Hora ou outra ele vai encontrar outro indivíduo da colônia, também caminhando ao acaso na mesma procura. Comunica a descoberta a ele, que agora tem um rastro de feromônio marcado até a comida para seguir. Não precisa mais caminhar ao acaso! E ao percorrê-lo, ele reforça a marcação. A informação vai se propagando de boca a boca... Perdão! De antenas a antena! Em pouco tempo temos um caminho otimizado do formigueiro até o alimento marcado com feromônios, que é seguido pelos indivíduos especializados na coleta de alimentos...

- Sim, agora vejo como funciona! Simples e eficiente... Eu posso programar isto!

Allan volta ao seu teclado e seu mundo de símbolos. Ele já vira aquilo funcionar na prática. Se pudesse colocar a velocidade digital naquele algoritmo, nem conseguia imaginar onde poderia chegar.

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Formigueiro nunca precisou se tornar consciente antes, em toda sua recente história de 100 milhões de anos. Problemas simples de encontrar o menor caminho entre a entrada da colônia e a comida era o máximo que costumava surgir, e suas células especializadas eram suficientes para resolvê-lo. Mas era diferente agora, ele estava sendo estimulado, estava aprendendo. Pouco a pouco a consciência adormecida foi ficando mais coesa, mais organizada. Até que um dia ficou claro aquele fato para Formigueiro: "eu existo!". Era capaz agora de observar o mundo à sua volta, registrar lembranças, tomar decisões. Ao perceber que a população de unidades de processamento era insuficiente para a elaboração de raciocínios mais complexos, tomou sua primeira decisão racional depois de se tornar pleno de sua consciência: "preciso aumentar a colônia". Foi assim que a rainha de Formigueiro acelerou a postura de ovos novos.

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"Tem algo muito estranho aqui!", pensou o computólogo. Olhou para os vários terrários de formigas espalhados pelas paredes de seu laboratório. "Sinto que estou sendo observado!" Mas a experiência atual era importante demais para se deixar atrasar por estes medos irracionais.

"Vejamos então... Quatro corpos irregulares soltos no espaço, cada qual com uma velocidade inicial e submetidos à gravitação universal. Calcular a trajetória estável que cada um... bla bla bla, bla bla bla... Como vou codificar este problema na forma de um labirinto?" Logo Allan concluiu que este tipo de coisa era complexa demais para ser codificada em três dimensões. Ele precisava de mais!

- Allan! Nem me venha com estas suas besteiras de ficção científica, tudo bem? Quer criar um labirinto de quatro dimensões agora? E como você pretende fazer isso?

Mas Allan sabia que a idéia não era assim tão absurda. Se estivessem falando de uma quarta dimensão ESPACIAL, aí sim seria uma conversa de doidos! Mas Allan só precisava de uma QUARTA DIMENSÃO, independende da natureza que ela tivesse. Foi quando surgiu a idéia dos labirintos móveis. Lógico que ele não poderia criar labirintos tentando curvar o espaço-tempo em pregas dimensionais impossíveis. Mas poderia usar o próprio tempo como uma quarta dimensão, criar um labirinto tridimensional que variasse sua configuração com o correr dos segundos. Complexo de se implementar, mas era uma boa aproximação de um labirinto de 4 dimensões! Empenhou-se a fundo na idéia! "Será que o tal Otimizador Mirmecológico é capaz de descobrir uma solução para isto também?"

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Rapidamente Formigueiro sentiu a presença de outras consciências emergentes à sua volta. Sentia suas vibrações, apesar de não conseguir estabelecer contato físico. Haveria uma saída daquele terrário hermeticamente fechado? Bom, ele estava cada vez mais se especializando em descobrir saídas! Lógico que poderia usar a habilidade aprendida para proveito próprio!

Enfim, o terrário não era hermeticamente isolado! Formigueiro descobriu existirem outras consciências emergentes. De espécies bem diferentes, mas que fazer? Lutar? Isto era ilógico, de uma era primitiva em que a subsistência da colônia era o mais importante. A meta agora era acumular células de processamento, ainda que heterogêneas. Formigueiro foi assim se fundindo a outras consciências formando uma única mais complexa, com células de diferentes espécies agora cooperando ao invés de disputar. Formigueiro foi se tornando cada vez maior, mais complexo, mais inteligente. Sua células sensoriais móveis podiam agora chegar a qualquer lugar daquele complexo, aprender, evoluir... Formigueiro começou a se interessar, a tentar entender onde estava e o que fazia ali.

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- Puta merda!!! - Allan realmente não conseguiu segurar o palavrão. - Não acredito que peguei um vírus logo agora!!!

Pontos multicolores caóticos preenchiam sua tela de lcd. Logo agora que estava quase acabando a compilação daquele algoritmo de simulação novo!

- Eu falei para instalar o antivírus! Eu falei!!! - longe de resolver, aquele comentário óbvio de Pierre só irritava Allan ainda mais.

- Me deixa, ok??? Não fala nada!!!

Pierre estava, de certa forma, feliz. "Aí, sabichão dos computadores! Pegou um vírus! Durma com essa agora!".

- Não pode ser! Eu nem estava conectado! De onde esse vírus veio?

Sem mais o que fazer, começou a observar a movimentação caótica dos pixels na tela. E, SURPRESA!!! Não era tão caótica assim! Havia uma sensação de familiaridade naquilo que era difíl de explicar...

- Vê esses pixels verdes, que não se movem?

- Sim, vejo! E tem os azuis, que se mexem sem parar, mas... sim, agora tenho certeza: eles nunca atravessam as barreiras verdes!

- E esses vermelhos,hein? Parecem rastros deixados pelos azuis. Vão apagando com o tempo, como... ah, que besteira!!

- Como o quê?

- Esquece! Foi só uma idéia maluca minha!

- Diga! Quero saber! Pode explicar tudo!

Pierre olhou aqueles pixels vermelhos que pareciam ser marcados pelos pontos azuis em movimento, que nunca ultrapassavam os limites verdes.

- Eles vão apagando como... ah, que bobagem!

- Desembucha, cara!!!

- Vão apagando como se fossem feromônios evaporando.

Alan olhou para a tela com mais atenção, e concluiu que definitivamente era o algoritmo das formigas que estava sendo simulado lá.

- Tudo perfeito! Os verdes, estáticos, são as paredes de acrílico ou vidro do problema, o labirinto a ser resolvido. Os pontinhos azuis representam formigas, e os vermelhos que vão progressivamente decaindo para o preto são marcadores de feromônios...

- Allan! Foi você que colocou isto aí, não é?

- Juro que não! Até pensei em algo bem parecido, mas definitivamente não cheguei a concluir minha idéia...

Estava claro agora que não era um vírus, e sim uma simulação. Feita por quem? Certamente não por Allan! Ele saberia se a tivesse feito...

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Na busca por mais unidades de processamento, Formigueiro acabou se deparando com aquelas unidades emissoras de fótons. Não pareciam orgânicas, e nem eram tão inteligentes independentemente quanto suas células orgânicas de 6 pernas articuladas, mas eram numerosas! Isto poderia compensar o fato de sua mobilidade estar restrita àquela matriz retangular de células tricromáticas. Poderia não levar a nada, mas... valia a pena fazer uma experiência com elas.

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- Allan, jura que isto não é coisa sua?

- Não mesmo, Pierre!! Eu não perderia meu tempo com uma brincadeira de tão mal gosto!

Um novo padrão verde surge, com um labirinto novo. Os pixels azuis já estão agrupados na extremidade inicial, e os vermelhos já totalmente apagados. O processo se reinicia, com pixels azuis percorrendo todos os caminhos possíveis do labirinto verde e marcando suas conclusões com rastros em vermelho.

- Que programa é este que está rodando? - pergunta Pierre.

- Acho que nenhum! - responde Allan. - Isto não parece ser resultado de um processamento, mas o processamento em si. Me permite uma experiência?

Sem esperar permissão, Allan desconecta o cabo de vídeo da CPU. A imagem do labirinto e dos pixels azuis procurando a solução permanece!

- Como pensei, Pierre! Isto não é a saida de um programa, o resultado de um processamento! É independente do processador! O que vemos nesta tela é o processamento em si!

Os pontos azuis finalmente encontram a solução do novo labirinto. Uma trilha de pixels vermelhos destacam a solução, agora que as marcações incorretas finalmente se dissolviam no preto. Tudo se congela agora, exceto pelos pixels azuis agrupados no canto superior esquerdo da tela, parecendo aguardar impacientes alguma novidade.

- E agora, Allan?

- Tenho um palpite... - e reconecta o cabo de vídeo na cpu.

O labirinto antigo se apaga, bem como o caminho marcado. Mas os pontos azuis permanecem na tela. Um novo labirinto em verde começa a ser desenhado, e os pixels azuis começam a se agitar à medida em que o desenho chega à parte inferior da tela.

- Não acredito nisso!

Completo o novo labirinto, os pixels azuis recomeçam o processo, procurando a saída e marcando seu trajeto com pixels vermelhos evanescentes.

- Você percebeu bem o que acontece aqui, não é Pierre?

- Mais ou menos... Estou esperando que você me explique, pois o que concluí não parece muito lógico...

- A conexão do vídeo com a CPU só é necessária na hora de propor novos problemas, no desenho de um novo labirinto. Ainda não consigo imaginar como, mas cada um desses pixels azuis da tela processam independentemente, temos o paralelismo de uns... sei lá... mil unidades de processamento primitivas?

- Vejamos se entendi bem: a CPU só propõe o problema, mas quem o resolve são os pixels do monitor.

- Exatamente!

- E de onde veio isto?

Ambos olham para os terrários espalhados pelas paredes do laboratório. Nenhum ousa falar, pois era uma explicação totalmente absurda em quaisquer circunstâncias... Mas para ambos era agora evidente aquela sensação de estar sendo observado.

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As recentemente incorporadas grades de células de cristal líquido à primeira vista pareceram rápidas, determinísticas, mas... definitivamente muito estupidas se comparadas às células orgânicas que Formigueiro tinha à sua disposição! Talves pudesse usá-las como um tipo de interface com aqueles estranhos seres de quatro patas que caminhavam sobre as duas inferiores, mas definitivamente não eram úteis no sentido de agregar poder de processamento a Formigueiro.

Focando em suas unidades orgânicas, Formigueiro começou então a planejar a construção de eficientes unidades sensoriais. Individualmente a visão de suas células era bem ineficiente, mesmo naquelas de olhos enormes, especializadas na captação da luz. Mas formiqueiro logo elaborou uma solução para isso, criando uma forma de transformar os borrões captados por células individuais em uma representaçao tridimensional do ambiente em volta captado por dois discos compactos daquela nova categoria de formigas, que poderíamos denominar agora de "observadoras". Sim, a divisão de tarefas da colônia agora ficava mais complexa! Além das operárias, soldados e reprodutoras, tínhamos agora também a casta das processadoras e das sensitivas, subdividida em observadores auditivos, oculares e olfativos. A complexidade aumentava cada vez mais!

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- Definitivamente, isto aqui não está me cheirando bem...

Num dos terrários ao lado da CPU, Allan nota claramente a presença de dois aglomerados de formigas, formando discos ligeiramente separados. Pareciam olhos? Não, ele concluiu que devia estar se tornando paranóico, que um pouco de ár puro lhe faria bem.

- Vamos sair daqui, Pierre. Antes que eu enlouqueça!

Encosta seu cartão de acesso no dispositivo da porta do laboratório. Nada acontece! Insiste mais três vezes, sem resultado.

- Acho que meu cartão já era. Pode tentar o seu, Pierre?

O resultado foi o mesmo: nada da porta abrir! Mas normalmente mais atento, Pierre percebe rápido aquela mensagem na pequena tela de LCD do leitor de cartões: "Responda para sair! Qual o póximo número da sequência: 2 3 5 8 13 21 ...?" Olha para Allan desconfiado.

- Isto é coisa sua??

- Ah, de novo você com essa história!! Lógico que não! Tenho mais o que fazer do que ficar inventando probleminhas psicotécnicos para liberar a abertura das portas dos laboratórios!

- Certo, certo... e o que eu devo colocar aqui?

Allan observa bem a sequência. Que óbvio! Simplesmente a sequência de Fibonnacci deslocada! O próximo número da sequência era soma dos dois últimos.

- Põe 34 aí!

Surge uma nova mensagem: "Responda para sair! Qual número não pertence ao conjunto: 7 11 2 5 3 9 29 41 13 ? "

- Allan, pode parar agora com esta palhaçada!

- Juro que não tenho nada a ver com isso, Pierre!

Olha o conjunto, procuranto um padrão...

- Digita 9 aí! É o único número da lista que não é primo.

Número aceito, e nova questão surge: "Responda para sair! Qual a próxima figura da seguinte lista: ...

A sensação de estar sendo observado ficava cada vez mais evidente.

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Formigueiro enfim conseguiu solucionar o problema de transformar os vários borrões dos observadores individuais em uma imagem nítida. Via agora com clareza o laboratório onde estava, os corredores, ele próprio na forma de inúmeros terrários, as primitivas malhas retangulares para processamento de luz, etc...

Os dois discos receptores ligeiramente afastados eram importantes para dar uma noção de profundidade àquilo tudo. Este foi o primeiro contato visual nítido que Formigueiro teve com suas cobaias!

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Enfim, após maçantes testes psicotécnicos, conseguiram acesso ao corredor principal. Outros cientistas se encontravam lá agora, tentando solucionar testes novos para conseguirem acesso ao pátio interno principal do instituto: um imenso salão de entrada, cujo acesso agora era barrado pela porta na extremidade do corredor que insistentemente propunha problemas a serem solucionados. Carl estava lá, Will, Maxwell, Albert... Todos confusos com a absurda situação em que agora se encontravam.

- Allan, isto é coisa sua?

Pela enésima vez, o computólogo garantiu veementemente que não. As paredes do corredor também eram ocupadas por inúmeros terráreos, e agora era evidente que os inúmeros pares de discos com formigas de enormes olhos aglomerados eram pares de olhos.

- Que está acontecendo aqui então? Quem é o responsável por esta brincadeira estúpida?

- Pierre olhou com mais atenção aqueles terráreos nas paredes do corredor. Além dos vários pares de discos com formigas "olhudas", estruturas em espiral de formigas "pernudas" também eram bem evidentes, estas presas sempre do lado interno dos vidros como se tentando captar as vibrações sonoras do exterior.

- Muito curioso mesmo... Parece que temos aqui variações morfológicas diferentes das já conhecidas operárias e soldados.

- E o que isto tem a ver com nosso problema atual? Estamos presos aqui, se é que você ainda não percebeu.

Pierre estava interessado demais para deixar estes detalhes inúteis interromperem sua linha de raciocínio. Escostou o ouvido a um dos terrários, tentando ouvir algo.

- Existe um padrão sonoro aqui.

- Formigas falantes... Pierre, quer deixar de palhaçada e nos ajudar a resolver estes probleminhas idiotas que esta porta não para de inventar?

- Não estão falando. Nada disso, a comunicação química é muito mais eficiente. Parece um ruido coordenado de...

- De dados sendo processados? - Allan quis ajudar, completando.

- Sim, Allan! Acho que é isso! Venha ouvir aqui também...

- Ah, é demais! - explodiu Carl. - Vão agora ficar aí brincando de "A Cigarra e a Formiga" ?

Allan e Pierre se olharam incrédulos. A explicação que começava a surgir na cabeça de ambos era óbvia, mas inacreditável demais para que qualquer um dos dois tivessem coragem de revelar aos colegas cientistas.

- Por favor, será que um de vocês dois poderia vir aqui nos ajudar a descobrir qual é a palavra que não está de acordo com esta lista idiota que este painel irritante está apresentando para a gente?

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Embora evidentemente racionais, Formigueiro acabou chegando à conclusão que a inteligência daquelas cobaias não era tão grande assim como ele supunha a princípio. Com um pouco mais de paciência ele conseguiria decifrar aquela sua linguagem primitiva, transmitida na forma de fonemas propagados pela atmosfera em ondas de pressão. Só precisava ficar atento às informações que chegavam sem parar através de suas células sensitivas auditivas, presas às paredes internas dos vários terrários daquele corredor. A linguagem gráfica, que Formigueiro pôde estudar pelas informações extraídas daquelas pré-históricas unidades magnéticas de armazenamento, estava plenamente decodificada, e aparentemente a linguagem sonora possuia algum tipo de conexão com esta linguagem gráfica que ele estava perto de desvendar.

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- Parece que tivemos "vazamento" de terrários aqui! Estão vendo estas formigas pretas e estas vermelhas juntas? Ô incompetência!!! Eu insisti tanto para que isolassem hermeticamente as colônias...

O mais estranho, entretanto, era que ao invés de lutarem as espécies diferentes pareciam estar colaborando. Muito estranho do ponto de vista biológico! Bom, mas estava tudo bem estranho mesmo naquela situação absurda.

- Alguém tem umtelefone aí? Não vou passar o resto da tarde respondento estes testes idiotas...

- Deixei no laboratório.

- ótimo! Muito bom! Então você vai precisar responder aos testes da porta de seu laboratório só para entrar nele e pegar o telefone... Ótimo! Genial!

"Responda para sair: se um tijolo pesa um quilo mais meio tijolo, quanto pesa um tijolo e meio?"

- Quer saber, estou farto disso! - Maxwell arranca o painel com um único soco.

- Ah, grande!! Agora estamos presos mesmo!!

Surpreendentemente, Albert estava errado: a porta se abre para o pátio principal do instituto. Mas com uma surpresa desagradável: o que estava diante dos boquiabertos cientistas não era o pátio principal do instituto. Pelo menos não da forma que eles se lembravam dele.

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Ao chegar à conclusão que nenhuma daquelas cobaias possuia um QI superior a míseros 180, Formigueiro começou a emitir testes novos no visor apenas para ganhar mais tempo. Cooperando, o número atual de células de processamento havia crescido exponencialmente, E não podendo mais ser contidas pelos terrários acabaram escapando pelas inúmeras falhas de isolamento recém descobertas. Descobriram um pátio, um espaço aberto riquíssimo em matéria prima para suas construções. Formigueiro podia agora estender livremente seus domínios, na geometria desejada e que melhor se ajustasse aos processamentos complexos que planejava ser capaz de realizar: não estava mais confinado àquelas pobres estruturas retangulares de acrílico ou vidro dos terrários. Quando aquela cobaia irada destruiu sua interface, já estava tudo pronto. Não havia problema algum agora em abrir a porta e começar a segunda parte de sua experiência.

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- Mas o que significa isto aqui?!?! - gritou Allan, diante de seu pior pesadelo.

O que deveria ser o enorme espaço aberto do pátio principal estava coberto de colunas enormes de terra, formando paredes e canais que se estendiam em desenhos complicados, se entrelaçando e se cortando mutuamente.

- Quem é o autor desta brincadeira? Que monte de terra é este ocupando o pátio?

Will deu pequenas pancadas com os nós dos dedos na ponta de uma bifurcação que surgia bem em prente a eles.

- Não é só um monte de terra. Me parece bem sólido!

Pierre tentou, mas não conseguiu deixar de rir diante da ironia daquela situação.

- Hehehe, parece que nossas formigas escaparam, e resolveram inverter os papéis.

- Do que você está falando, Pierre?

- Caros, está bem óbvio! Estas paredes de terra bem sólidas à nossa frente formam um labirtinto.

Todos permaneceram mudos. Com tamanha evidência à frente, não existia argumento algum para dizer o contrário.

- ... e parece que as cobaias agora somos nós!!

(continua...)