Pós-vida, Doce Pós-vida

Pós-Vida, Doce Pós-Vida

“Este pôr-do-sol! Eu nunca me canso de ver este espetáculo num mundo onde diversas coisas já estão me enfadando”, pensava Fabiano ao divisar um horizonte avermelhado por um sol rubro quase na linha do horizonte. “Passaram-se noventa e sete anos, e nunca me enjoo de apreciar os arrebóis, seja sol nascente, seja poente.”

Fabiano descansava, refestelado numa rede de descanso, cujas cordas estavam amarradas em dois coqueiros. Ergueu sua mão direita e deixou a palma voltada para o alto, e surgiu nela uma lata de cerveja da marca a qual ele julgava ser a melhor do mundo. Sentiu a friagem da lata, que parecia recém-saída de um refrigerador. Abriu-a, tragou alguns goles e, após segundos, sentia o líquido gelado no estômago.

– A Eternidade! – exclamou enquanto erguia a lata.

Fabiano tragava o primeiro gole, já meditando sobre algo que o incomodava já faz tempo: estava num lugar onde tudo era perfeito; já se surpreendera consigo mesmo por sentir falta de sensações como: medo, tristeza, preocupações... Desde que chegara a sua eternidade, já tinha consciência de que, na verdade, estava só, cercado por fantasmas programados, sendo que ele mesmo também era uma espécie de fantasma.

Bebeu o líquido até esvaziá-la. Jogou-a na grama, fitando o sol com sua metade já além do horizonte. A lata esvaiu-se na areia como o líquido que desaparecia no interior de seu corpo.

Após o sol se pôr, levantou-se e foi em direção a uma casa de fachada anil, sua cor favorita, com a luz da cozinha acesa. A construção, que fora planejada apenas como casa de praia, não era muito grande.

Fabiano, assim que chegou à cozinha, avistou uma moça que aparentava ter vinte anos. Uma moça de cabelos e olhos negros e pele morena. Os cabelos longos dela cobriam um vestido branco estampado por uma profusão de flores azuis.

– Vê se falta algo, querido – pediu a moça.

Fabiano observou o tampo da mesa: um prato contendo queijo minas, pães-de-sal numa cesta, fatias de mortadela num prato, uma garrafa térmica contendo o provável capuccino que ele pedira para ela...

– Faltam aqueles pães-de-queijo deliciosos que só você sabe materializar – lembrou sorridente.

A moça olhou para uma parte espaçosa da mesa, e uma cesta contendo o resultado fumegante do desejo de Fabiano materializou-se.

O casal sentou-se para lanchar. Enquanto mastigava, os olhos de Fabiano atentavam para Sand enquanto ele retrucava consigo mesmo: “É lógico que a Sand existe! De alguma forma ela vive; é melhor do que o nada. Afinal ela age e sente como se a Sand do meu antigo agiria e sentiria se ela estivesse aqui.”

Passou a relembrar de momentos do seu antigo mundo quando fora desenganado por um médico.

***

Numa sala bem imobiliada, Fabiano, segurando um panfleto e ouvindo uma música tranqüila vinda de uma caixa de som, estava sentado numa poltrona diante de uma mesa; do outro lado do móvel, estava um corretor. Há poucos dias, Fabiano fora desenganado por um médico. Contrastando com o sorriso largo do corretor, ele não esboçava nenhum sorriso, o que não era necessário, afinal o corretor já deveria estar habituado a receber paciente desenganado.

A sala pertencia à Eterno Lar, uma empresa que tinha a função de providenciar algo que, até então, somente os abastados podiam obter: um pós-vida programado.

– A Eternidade Programada é feita do seguinte modo: – explicava o corretor – primeiro o cliente fornece diversos dados: fotos de entes, como gostaria que fosse o lugar... Exemplo: uma pessoa quer morar numa mansão ladeada por um imenso jardim; depois um técnico, por meio de design computacional, elabora a futura morada do cliente, que será passada para um chip. O outro passo consiste em transportar a mente do cliente para o mesmo chip. Já no seu novo mundo, o pós-vivente se sentirá como se não tivesse morrido, e sim como se ele tivesse se mudado para o lugar de seus sonhos. A Eternidade Programada é, sem dúvida, a invenção do milênio! – exultou-se o corretor. – Com ela, o antigo temor da humanidade “A Morte” é apagado!

– Eu gostaria muito de ver como está uma pessoa que se foi – pediu Fabiano.

– Certamente! Podemos agora ir à central de controle.

Com o corretor, Fabiano chegou a um espaço que lembrava uma torre de controle. O corretor apresentou Fabiano a um técnico e pediu para que o funcionário mostrasse ao visitante um pós-vivente. Após ele operar alguns comandos, surgiu no visor uma lista de nomes. O técnico convidou Fabiano a se aproximar, o que ele fez prontamente. O técnico selecionou um dos nomes da lista, e surgiu na tela a imagem de um homem que aparentava vinte e cinco anos numa cena em que parecia almoçar ao lado de dezenas de pessoas. O técnico apresentou:

– O moço ruivo é o ex-prefeito Valdir Paiva.

Fabiano observava o homem, tentando crer no que via.

– Valdir Paiva!? Mas não pode ser!

– No pós-vida, uma pessoa pode ter a idade e a aparência que quiser. No caso de Valdir Paiva, ele está exatamente como era quando tinha essa idade, com a exceção de que, no seu pós-vida, ele não usa óculos – explicou o corretor.

– Mas existe pós-vida coletivo? Todas essas pessoas...

– Esse pós-vida pertence apenas ao ex-prefeito, tudo programado com base nos desejos e na memória dele. Aquele menininho louro, por exemplo, não faleceu, mas faz parte do pós-vida de Valdir Paiva, que quis o seu neto na sua nova vida. Não é raro, também, o cliente escolher um ídolo para a sua eternidade. Já estão presentes a diversas eternidades, por exemplo, Michael Jackson, John Lennon...

– Ao ver essa comida toda, algo me veio à mente: o fornecimento de comida é eterno? E para que se alimentar quando se está morto fisicamente?

– A comida foi o ex-prefeito que a fez surgir apenas com o desejo de que ela aparecesse; mas é tudo ilusão: até agora, não foi visto ninguém defecando ou urinando num pós-vida. Além de comida, os ocupantes da eternidade podem fazer surgir roupas e diversas outras conveniências.

***

Sand despiu-se, exibindo um corpo bem modelado. Fabiano, com o pênis enrijecido e ereto, aproximou-se da moça e alisou o seu corpo. Conduziu-a para a cama. Ele sentiu-se arrepiar à medida que ela lhe beijava partes do corpo e apertava de leve as costas. Quando, durante a cópula, Fabiano injetava o sêmen estéril, lembrava-se de quando retornara pela terceira vez à Eterno Lar.

***

Na segunda vez, Fabiano foi apenas entregar uma lista que elaborara por seis semanas. E cerca de um mês após entregar o rol para a programação de seu futuro mundo, ele estava na mesma sala onde estivera no primeiro dia. Mostraram-lhe, numa tela, um vale envolto por montanhas nevadas, repleto de árvores que variavam na coloração das folhas. Em meio à vegetação, pássaros de diversas espécies voavam e cantarolavam. No meio do vale, não muito longe de um rio, havia um palacete de quatro andares com fachada anil ladeado por quadras de esporte e uma piscina. Próximo à construção, havia um carro esporte que mais parecia ser feito de prata polida.

– Vamos ver agora a casa de praia – disse o técnico enquanto acionava um comando. – Não é muito longe do vale. Com o seu conversível, o senhor chegará a ela em menos de uma hora.

– Uma pergunta: como irei abastecer o carro?

– Não será necessário: o combustível será eterno; e jamais irá precisar de mecânico, já que o carro será indestrutível, assim como o seu corpo.

Apareceu na tela, próximo a uma praia, a imagem de uma casa semelhante à casa onde Fabiano conhecera o amor de sua vida. Com o olhar melancólico, perguntou sobre uma das pessoas das fotos que entregara. O técnico acionou um comando, e surgiu, próxima à casa, a imagem de uma mulher que falecera ainda jovem – Sand. A imagem girava lentamente no sentido horário. Ele explicou a Fabiano que breve os entes iriam ganhar automação e personalidade.

– Eu preciso saber de algo... – disse Fabiano – Não forneci a foto de uma pessoa, minha ex-sogra. Chego a pensar se a Sand irá indagar por ela.

O técnico riu e explicou:

– Não se preocupe: pode-se dar um jeito para que sua ex-esposa lembre-se apenas de ti. Quer ver o seu corpo eterno?

Surgiu na tela a imagem de um homem semelhante a Fabiano quando tinha vinte e cinco anos. As diferenças eram: cabelo loiro, olhos azuis, pele bronzeada e corpo de atleta.

Fabiano circulava por um dos corredores do prédio com o astral bem diferente da época na qual fora desenganado pelo médico. Chegara à conclusão de que a eternidade programada era a invenção do século, a certeza de um paraíso. A sua única preocupação agora era com o meio do caminho entre a vida e o pós-vida, um processo no qual provavelmente iria sentir dores e angústias.

A atenção dele se voltou para alguém que conversava com uma corretora: Damião, seu primo carola e também a pessoa mais mala do mundo segundo os seus padrões. Fabiano não aguentava ouvir bordões como: Jesus te ama; Glória a Deus; leia a Bíblia; vou orar por ti; aleluia, irmão...

“Mas o que esse cara veio fazer aqui!?”, pensou Fabiano. “Pelo visto, a notícia da minha doença se espalhou. Mas espere aí.... Não me diga que ele veio até aqui só para me convencer a desistir da eternidade programada!”

Lampeiramente, Fabiano sentou-se num banco e pegou um jornal que estava numa mesinha. Enquanto escondia um pouco o rosto, ele via o seu primo apertar a mão da corretora e caminhar para fora do prédio, segurando um panfleto. Fabiano esperou mais um pouco, devolveu o jornal à mesa e foi abordar a moça:

– Boa tarde, senhorita! Aquele senhor que estava conversando contigo é conhecido meu. Pode me informar se ele estava a minha procura?

– Não, ele veio interessado na programação da eternidade dele.

Fabiano teve que pedir para que a moça repetisse a resposta para que ele pudesse crer no que ouvira. Ele agradeceu a corretora e caminhou em direção à porta de saída. Sorrindo, fez um gesto de negação com a cabeça. “Essa gente! Vão à igreja, visando futuramente morar com os anjinhos, mas, quando são desenganados, mudam o modo de pensar.” Parou de sorrir ao notar que algo não se encaixava. “Aquele cara não tem dinheiro para bancar uma eternidade... Vai ver que conseguiu juntar uma boa quantia numa aplicação financeira.”

Uma semana depois, Fabiano retornou à Eterno Lar. Pediram que se sentasse numa poltrona e lhe colocaram sobre a cabeça uma estrutura metálica que lembrava patas de aranha. Um funcionário operava o equipamento e fez surgir, numa tela, a imagem do pai de Fabiano. Ele iria agora começar um cansativo processo para o projeto de sua eternidade: a definição dos entes que o acompanharão no pós-vida. O técnico pediu que Fabiano iniciasse o processo de personalização. Como fora instruído, havia alguns dias, ele pensava no seu pai e no jeito de ser dele. Mentalmente Fabiano moldava os traços de modo que o seu falecido pai ficasse com uma aparência semelhante à que tinha aos trinta e cinco anos, e tudo passava de seus pensamentos para o computador. Ao longo de horas, ele fez o mesmo processo para com os demais entes. Essa fase durou toda a manhã e a tarde, com intervalos apenas para ir ao sanitário e almoçar.

Uma semana depois, Fabiano retornou à Eterno Lar com seu irmão e cunhada; ambos foram escolhidos para serem testemunhas da assinatura do contrato e do ingresso de Fabiano à eternidade programada após a sua morte.

***

No seu conversível, Fabiano retornava com Sand, que tinha a cabeça encostada no seu ombro. Pelo caminho, viam-se as moradas de seus entes. Avistou o seu palacete e uma pequena multidão entretendo-se, aos grupos, na piscina, na quadra de futebol, arrumando a mesa para o almoço... Fabiano diminuiu a marcha do carro e estacionou-o na garagem.

– Oi, filho! Chegou bem na hora! Feliz aniversário! – saudou uma sorridente mulher que aparentava ter trinta anos, bem mais jovem da idade que tinha quando falecera. Ela ajudava algumas moças a preparar a mesa.

Pouco depois, todos serviam-se a uma grande e farta mesa que se localizava próxima ao palacete de Fabiano. Ao redor da mesa grande, havia dezenas de mesas menores ladeadas por cadeiras. A mesa grande continha javali assado, arroz com açafrão, batatas embebidas no caldo de carne, jarros com suco de cupuaçu, tachos com musse de bombom Sonho de Valsa e um bolo de nozes com duas velas, formando o número 97. Apesar de todos do pós-vida de Fabiano serem capazes de materializar qualquer alimento, tudo na mesa fora criado pela mãe do pós-vivente.

Fabiano com Sand, portando os seus pratos feitos, foram se sentar a uma mesa que já estava ocupada por oito pessoas. Após se sentar, ele pôs a palma de sua mão direita para o alto, e uma lata de cerveja bem gelada se materializou nela; abriu-a e tragou alguns goles enquanto Sand cortava a carne de javali. Fabiano observava os convidados. Todos os trezentos e setenta habitantes de sua eternidade estavam presentes: pai, mãe, irmão, demais parentes, amigos e alguns ídolos. Uma boa parte nem havia falecido no dia em que Fabiano ingressara no seu atual mundo. Nos seus primeiros aniversários na sua eternidade, sentia-se numa felicidade que parecia eterna; com o tempo, sentia momentos de melancolia, e o pós-vivente debatia-se consigo mesmo afirmando: é melhor do que estar no nada.

Após meia hora, o pós-vivente desfrutava o seu terceiro prato, a fim de saciar a sua fome ilusória. Sand e mais algumas dezenas já repartiam o musse em pequenos pratos. Após o almoço, os entes cantaram músicas de aniversário, e Fabiano assoprou as velas

Depois do almoço, Fabiano se dirigiu a um redário com dezenas de redes de descanso fixas nos galhos. No local, já havia alguns deitados. Ele procurou a sua rede favorita e se refestelou.

– Então, Fabiano? Está preparado para perder de novo, no futebol? – provocou um que estava estirado numa rede.

– Hoje vai ser diferente! Após a soneca, veremos!

Fabiano passou a balançar a rede enquanto observava as copas das árvores e, sentindo o sono chegar, lembrava-se do seu último momento de vida no antigo mundo.

***

A última lembrança de que Fabiano tinha, quando estava na sala de sua casa, era que sua visão ficara turva, e que sua cabeça latejara forte. Ele tombara no chão, e, cerca de dois minutos depois, ouvira a voz da empregada chamando-o diversas vezes; a voz ficava mais baixa até não ouvir mais nada.

Agora, imóvel e sem ouvir nada, via a central de controle da Eterno Lar. Sob a forma de dois grandes olhos numa tela, via alguns funcionários, seu irmão e cunhada. Fabiano sentia nada: não sentia dor, nem medo, nem angústia, nenhuma curiosidade... Um técnico disse algo para o irmão de Fabiano e ele e esposa levantaram-se das cadeiras e se aproximaram. O irmão de Fabiano foi pegar algo que estava sobre a mesa e retornou, já lacrimejando, com um papel, que estava escrito: “FABIANO, VOCÊ FALECEU. A SUA ETERNIDADE JÁ ESTÁ SENDO PROVIDENCIADA”. Fabiano continuava a não ter nenhum sentimento. Passou a presenciar o técnico operando alguns comandos; depois o funcionário disse algo para o irmão do falecido; ele exibiu outro papel, que estava escrito: “ADEUS, MEU IRMÃO! DE ALGUMA FORMA, A GENTE SE ENCONTRARÁ! ATÉ BREVE!” O irmão de Fabiano lacrimejando puxou a esposa, que também lacrimejava, para junto de si e ambos ficaram com as cabeças encostadas. O técnico, após operar novamente os comandos, disse algo para os entes do falecido, e eles passaram a acenar.

Fabiano via outra cena. Desabaladamente entraram na central um grupo de vinte invasores. Os recém-chegados dominaram os presentes enquanto um dos invasores exigia do técnico a chave da porta. Após os invasores expulsarem os que estavam presentes, a porta foi trancada. Fabiano pode reconhecer um deles: Damião, que, segurando o que parecia ser um pen drive, dirigiu-se a um aparelho. Após encaixar o que carregava, passou a operar alguns comandos; e Fabiano continuava sem emoção, nem mesmo se perguntava o que diabo o seu primo planejava.

Passivo, Fabiano observava um túnel de luz que lhe passava numa velocidade considerável. O túnel desapareceu, e ficou Fabiano em meio à escuridão. Repentinamente surgiu um clarão, e, segundos após, Fabiano viu-se deitado num gramado enquanto uma brisa tocava-lhe a face. Levantou-se e, sentado, reparou ao seu redor. Apalpou o corpo sem nenhuma roupa e depois a grama enquanto sentia o cheiro da relva. Pôs-se de pé e atentou para o que sua vista podia alcançar: casas, pássaros, árvores, montanhas... O recém-chegado reparava que os cantos dos pássaros eram similares ao do lugar de onde viera. “Quando jovem, jamais sonhei que a tecnologia chegasse a tal maravilha! O incrível é que nem senti o tempo passar!”, pensou enquanto uma lágrima escorria pela sua face. “Não sinto nenhuma dor, nenhuma fraqueza. Muito pelo contrário, nunca me senti tão ótimo!”, gargalhou depois. Resolveu logo pôr em prática o que um técnico lhe instruíra: fitou a parte inferior de seu corpo, e surgiu uma imagem transparente de uma bermuda anil. Após um minuto, a veste pareceu se materializar no seu corpo, fazendo-o dar outra gargalhada. “Segundo o técnico, com um pouco de prática, estarei me vestindo em átimos de segundo.”

Notou uma forma transparente e antropomorfa surgir a cinquenta metros dele. Aproximou-se e viu que a aparição pertencia a alguém em especial: Sand. Estático, o pós-vivente via o seu grande amor se materializar até ganhar vida própria. A recém-chegada olhou à sua volta, parecia constrangida por estar sem nenhuma peça de roupa.

– Fabiano!? – Que lugar é este? Mas os seus olhos, seu cabelo...

A princípio, ele permaneceu calado, tomado pela emoção, e, com voz embargada, explicou que ambos haviam falecido e que estavam no paraíso.

– Eu morri? – questionou-se Sand. – Mas não me lembro de nada, isto é, só me lembro de diversos momentos com você.

– É que você era uma pessoa só, Meu Amor – mentiu enquanto começava a acariciar o seu corpo. Na outra vida, você só tinha a mim.

Fabiano segurou firme a recém-chegada e a beijou na boca. Ele, para matar a saudade, queria fazer sexo com ela naquele instante, mas reparou em mais formas antropomorfas que começavam a se materializar. Assim que se materializavam, os convidados à eternidade de Fabiano, pelados, indagavam onde estavam.

***

No campo de futebol, os times estavam formados. Numa arquibancada aglomeravam-se os homens que iriam assistir à partida até chegar a vez de jogar, e também algumas mulheres que iriam torcer.

– Então, filhão? Tu achas que o uniforme do Fogão nos trará sorte? – perguntou um homem que aparentava ter trinta anos apesar de ter falecido aos sessenta.

– Vamos ter que usar mesmo o uniforme do Botafogo? – quis saber um dos entes de Fabiano com expressão de tédio.

– Hoje é meu aniversário! Eu tenho o direito de jogar com a camisa do meu time de coração! – exigiu Fabiano – “É isso que me deixa tiririca: arrumar equipe para jogar com o uniforme do Flamengo é fácil”, pensou, olhando para a equipe adversária já uniformizada. “Eu deveria pedir para que eles esquecessem daquele clube; mas eu penso que seria chato se todos fossem programados para serem exatamente do jeito que eu gostasse que eles fossem.” – Vamos lá pessoal! Todos com o uniforme do Fogão! – dirigiu-se para a sua equipe.

Na equipe de Fabiano as roupas se desmaterializaram, deixando-os com apenas a sunga de banho, e um uniforme do Botafogo surgiu para vestir o time.

A partida havia começado. Aos cinco minutos de jogo, o pai de Fabiano, ao perceber a aproximação de Jairzinho, que jogava pelo outro time, deu um belo passe para Garrincha, que driblou dois e chutou forte, e a bola balançou a rede.

– É isso aí galera! Hoje será goleada! – exultou Fabiano enquanto voltava para o outro lado do campo – ... mas o que... está havendo? Vamos lá pessoal!? O que estão esperando?

Fabiano notou algo inusitado: todos estavam parados como estátuas, não apenas no campo como na arquibancada. Ele sacolejou a cabeça e continuou a observar a cena. Aproximou-se de seu pai e tocou em um de seus ombros. Quando já ia perguntar o que havia, o seu pai desabou no gramado. Reparou num bem-te-vi que voava como em câmera lenta até estacar no ar. Correu para a arquibancada e sacudiu desesperado a sua amada.

– Sand, fale comigo! O que está havendo por aqui!?

Sem respostas, deixou-a na arquibancada e correu para além campo de futebol. Para o seu desespero, descobriu que todos ficaram congelados como estátuas, cada um ao seu jeito: sua mãe jogava cartas com outras mulheres; alguns estavam na piscina, sendo que um ficara parado no ar em posição de mergulho; Paul MacCartney, com expressão de pensativo, segurava lápis e papel com um violão ao lado... Sentou-se numa cadeira na esperança de que tudo que presenciava fosse um sonho.

Ele notou que alguém se aproximava. Estava todo trajado de uma roupa branca e brilhante. O pós-vivente tentava saber quem era até não crer no que via.

– Não pode ser! Mas... mas... mas é Damião! Mas o que aquele papa-hóstias está fazendo na minha eternidade!?

Incrédulo, Fabiano observava o recém-chegado se aproximar, e este o cumprimentou sorridente:

– Como vai, primo!? Há quanto tempo não nos vemos!

Fabiano não respondeu e, boquiaberto, observava o recém-chegado. Não conseguia crer no que via.

– Eu não posso crer no que vejo. Posso saber o que você está fazendo aqui!? – quis saber Fabiano.

– Eu vim te salvar. Para que você ingresse na Verdadeira Vida Eterna.

Fabiano ficou alguns segundos em silêncio até rir e dar o seu parecer:

– É isso! Eu almocei, tirei um cochilo e estou sonhando, porque tudo isso é um absurdo. Eu farei o seguinte: vou até a minha rede de descanso, deitar-me e depois acordar – principiou a caminhar até a rede, mas um tremor fez com que Fabiano tombasse. – O que foi isso agora!?

– Fabiano, por favor! Ouça-me. O que está para ocorrer aqui é sério!

O pós-vivente olhou à sua volta e anuiu:

– Muito bem. Desembucha logo! Quem sabe assim você desaparece, e tudo volta ao normal – levantou-se.

– Fabiano, há quanto tempo você acha que está neste pós-vida?

– Noventa e sete anos. Cada residência daqui possui uma folhinha que nunca acaba. Tudo para que festas de aniversário sejam feitas.

– Neste lugar, pode até ter se passado noventa e sete anos, mas sabe quanto tempo se passou no mundo onde vivíamos? Quase mil anos.

– O quê!? – gargalhou com uma das mãos na barriga e sentou-se – Agora estou com quase certeza de que você é um sonho – reparou que as montanhas estavam transparentes – agora suma daqui, que você está começando a me assustar! – ameaçou, enquanto se levantava.

– Fabiano, por favor, deixe-me explicar tudo! Depois você dá o seu parecer.

– Muito bem, conte tudo e desapareça, e não se esqueça de deixar tudo aqui como era antes.

– Eu não sou o responsável pelo que está ocorrendo aqui. Fabiano, o tempo deste lugar e da dimensão na qual viemos não são iguais. E, no lugar onde estou, nem mesmo existe tempo: nem passado, nem presente e nem futuro. Sabe o que aconteceu com a central de processamentos na qual ficou guardada a programação deste mundo? O oceano invadiu cidades litorâneas, incluindo o Rio de Janeiro. A filial carioca da Eterno Lar, literalmente, foi por água abaixo. Eu falo no passado, mas está acontecendo agora neste pós-vida. E as coisas não param por aí; segundo O Nosso Senhor, breve anticristos irão dizimar a humanidade, lançando supergermes assassinos, ou seja, não sobrará ninguém para garantir o fornecimento de energia para empresas post-mortem. Conclusão, foram tolos os que acreditaram numa eternidade artificial.

A centenas de metros, onde Fabiano estava, surgiu uma enorme fenda no chão. Ao mesmo tempo, viu pessoas desaparecerem. Ele gritou pelo nome de sua amada e correu de volta ao campo de futebol, onde avistou Sand, que ficava transparente. Gritou o nome dela diversas vezes enquanto corria em sua direção, mas Sand desapareceu antes que ele a alcançasse. O pós-vivente caiu em prantos e voltou para onde estava Damião.

– Seu desgraçado, eu quero minha gente de volta! – mirou uma das mãos no rosto de Damião, mas a mão o atravessou e Fabiano foi ao chão.

Ainda com o sorriso e o rosto brandos, Damião explicou:

– Fabiano, essa gente nunca existiu: é tudo clone quanticamente programado. Os seus verdadeiros entes estão no lugar onde eu estou. Numa felicidade eterna, estão todos com o corpo juvenil e bonito. Eu lhe apareci com esta aparência, incluindo os óculos, para que você me reconhecesse, mas os meus traços são bem diferentes do que você vê. Para que você vá ao lugar onde estou, com seus verdadeiros entes, só precisa fazer uma coisa: dizer “Senhor, estou arrependido dos meus pecados!”

Fabiano pôs as mãos no rosto e tentou achar uma explicação para o que ocorria, e uma possível justificativa lhe veio à mente:

– É isso! – levantou-se – Antes de chegar a minha eternidade, eu presenciei uma cena: você, com um grupo, invadiu a central; depois você parece que enfiou algo num equipamento! Você deve ter lançado algum vírus ou alguma programação extra! Isso explica o que está ocorrendo! – ameaçou dar um soco, e viu que não iria adiantar.

– De fato, entramos lá para causar alguma avaria. Eu até me fiz passar por cliente para saber da localização da central de processamentos. Naquele dia, centenas fizeram uma manifestação em frente ao prédio, eu com algum grupo driblamos os guardas e chegamos à central de processamentos; mas eu não consegui o meu objetivo: queria lançar um vírus para danificar os softwares da Eterno Lar, mas tive muito trabalho. Quando já estava quase conseguindo o meu objetivo, os policiais conseguiram arrombar a porta nos dominaram.

Ouviu-se um grande barulho. Ao olhar para trás, Fabiano divisou o seu palacete ruindo. No mesmo instante, as montanhas desabavam. A fenda se tornava maior.

– É lógico que este mundo foi avariado naquele dia! – esbravejou o pós-vivente – Você me desgraçou.

– Fabiano, já está na hora de eu ir – Damião adquiriu uma textura transparente. – Eu espero muito que você mude de ideia para eu lhe ver na Verdadeira Vida Eterna. É só você dizer que está arrependido de seus pecados.

– Vá ao inferno! – gritou antes de Damião desaparecer.

Fabiano sentiu-se gelar. O céu ficara negro, e a escuridão passou a engolir as montanhas que ainda restavam. Por todos os lados, o breu se aproximava. Veio ao pós-vivente a ideia de correr para dentro de seu palacete, atirar-se debaixo de sua cama e torcer para acordar de um suposto sonho; mas a escuridão foi mais ligeira, engolindo também a construção. Reparou que o uniforme que usava se fora. Após alguns segundos, viu-se mergulhar no breu; mas ainda havia luz, e isso o ajudou a testemunhar o desaparecimento da parte de baixo de seu corpo. Enfim, Fabiano anuiu ao pedido de Damião, não por ter se tornado religioso repentinamente, mas por pavor de ir em direção ao nada.

– Senhor, eu me arrependo dos meus pecados! – gritou três vezes, com a face umedecida pelas lágrimas, já sem enxergar nada e tendo apenas o pescoço e a cabeça.

Com o desejo, no seu subconsciente, de reencontrar os seus verdadeiros entes na dimensão para onde o seu primo o convidara, ficou na esperança de que estivesse num sonho, deitado na sua rede de dormir, e que iria acordar no seu pós-vida, doce pós-vida.