O Sexto Sólido de Platão

Mais uma vez o Professor Mauro começou a contar as faces daquele modelo de poliedro regular em papel-cartão que estava em suas mãos. Há horas aquele fantasma em papel amarelo o assombrava, aquele ente completamente sobrenatural, que não poderia nunca existir. Mas tanto existia que estava lá, bem entre suas mãos! Contou de novo: uma, duas, três... quinze faces quadradas! Um poliedro totalmente regular, formado de faces que eram polígonos regulares de quadro lados. Um pentadecaedro regular! Um pensamento fixo não saía de sua cabeça: “Rapaz, você não deveria existir!”.

A idéia inicial era muito boa: ao invés de uma chatíssima aula de matemática descrevendo os cinco sólidos platônicos e suas propriedades, por que não uma aula prática, onde seus alunos desenhassem o desdobramento plano de seus sólidos em cartolina ou papel-cartão e depois os montasse colando suas arestas? Colocar a mão na massa economizaria em minutos explicações geométricas que da forma tradicional talvez levasse algumas horas de explicações.

Os sólidos platônicos, ou poliedros regulares convexos, são cinco. Quer dizer, pelo menos era no que Mauro acreditava até aparecer a aberração geométrica que estava agora diante de seus olhos... O mais simples era o tetraedro, quatro faces formadas por triângulos eqüiláteros, seis arestas que eram os contatos entre duas faces, e quatro vértices dos quais partiam três arestas de cada um. Depois o cubo, bem conhecido dos jogos de azar por ser o formato do dado: seis faces quadradas, doze arestas e oito vértices. O octaedro, formado de oito triângulos eqüiláteros, o dodecaedro de doze faces pentagonais e o icosaedro composto de vinte triângulos eqüiláteros. Regulares porque todos os lados eram formados pela mesma face, todas as arestas tinham mesmo comprimento, e todos os ângulos entre as arestas eram iguais. Convexos porque não são considerados platônicos nem os três dodecaedros estrelados nem o icosaedro estrelado: partes deles “entravam” na figura, eram côncavos!

O professor de matemática recontou pela enésima vez os vértices do seu poliedro: um, dois, três, quatro... quinze! Ainda mais essa: o dual do pentadecaedro era outro pentadecaedro. Se fossem unidos os centros de todas as faces quadradas do poliedro, obteria outro pentadecaedro menor inscrito no primeiro. Um sólido platônico auto-conjugado, cujo único exemplo até então era o humilde tetraedro, com suas quatro faces e quatro vértices.

— Posso fazer um cubo, professor? – lembra-se de um aluno ter perguntado durante a aula.

Bom, era uma das planificações sólidas mais corriqueiras. Quase todo mundo sabe montar um cubo de papel-cartão, com aqueles quadrados dispostos em cruz e abas laterais para colar as arestas. Mauro esperava mesmo que seria a escolha da maioria, mas alguns alunos ainda mais preguiçosos escolheram montar o tetraedro, com suas quatro faces triangulares simples de se desenhar, cortar e colar. Estava dentro das regras, Mauro não tinha porque impedir.

Levantou novamente o sólido assombroso, que agora repousava sobre sua mesa de professor. Girou-o de todos os lados mais uma vez, impressionado: “Não pode ser! Todos os lados são quadrados! Que trapaça este moleque fez desta vez que eu não estou conseguindo enxergar?” Olhou com desconfiança os ângulos dos quadrados, e tirou um esquadro de sua gaveta. “Ah, moleque! Se estes ângulos não forem retos vou te chamar aqui nesta sala para uma conversa séria!” Mas eram! As faces do poliedro eram quadrados perfeitos formados de quatro ângulos de noventa graus cada um. Não seriam faces planas então? Reexaminou com cuidado cada uma das quinze faces, e não existia nenhuma nem côncava nem convexa. Eram quadrados perfeitamente planos!

Como era de se esperar, o sólido mais construído pelos alunos foi mesmo o cubo. Alguns fizeram tetraedros, outros se arriscaram com octaedros. Poucos mais ousados se aventuraram na montagem do icosaedro, com suas vinte faces triangulares, mas via-se que estavam com dificuldade tanto para colocar aqueles vinte triângulos no plano quanto para montá-los depois no formato do sólido. Deveriam desenhar as faces com régua e compasso apenas. Fácil fazer quadrados e triângulos eqüiláteros assim, mas não acreditava mesmo que algum aluno soubesse a complicada construção de um pentágono usando apenas estes dois instrumentos. Por isso se surpreendeu com a montagem de Zequinha, aparentemente o único aluno que tentou se aventurar desenhando as doze faces pentagonais de um dodecaedro. Foi apenas ao chegar mais perto daquela construção, pronto para parabenizar a habilidade do garoto, que Mauro percebeu que se tratava de quadrados. De quinze quadrados!

— Que você fez aqui, Zequinha?

O moleque estava assustado. Respondeu em voz quase inaudível.

— Não sei, professor. Não achei este aí no livro...

Pensou na hora: “Não, ele deve ter entendido mal, talvez seja um poliedro semi-regular que ele fez sem querer. Devem existir faces triangulares misturadas com esses quadrados...”. Virou de um lado para o outro, mas tudo o que via eram quadrados. Zequinha olhava para o professor, com um olhar de dar pena:

— Queria fazer um dado, mas acho que desenhei quadrados demais, né professor? – estava quase em prantos.

Sim, Zequinha tinha mania de exagerar. Quadrados demais? Já havia acontecido antes, em outro laboratório de matemática. Enquanto todos desenhavam projeções de cubos sob vários ângulos numa folha de papel, Zequinha havia aparecido com a perfeita representação de um hipercubo no plano! Teria o moleque aprontado de novo, e montado um poliedro de quatro dimensões? Não, logo afastou isto da cabeça. Seria tão ou mais absurdo ainda que admitir a descoberta de um sexto sólido platônico...

— Posso levar isto aqui, Zequinha?

— Eu faço outro, professor! – o aluno suplicava. – Um cubo, e desta vez não erro! Vou desenhar só seis quadrados. Deixa eu tentar de novo, por favor!

— Calma, Zequinha! Está tudo bem! Ficou ótimo! Só me deixe levar isto aqui para olhar melhor. Você fez um bom trabalho, relaxa!

Foi assim que aquele sólido impossível veio parar em sua mesa. O contemplava há horas, mas ainda não podia acreditar no que via. Um desafio à geometria, um objeto que parecia rir de milhares de anos de estudos de Matemática! Seguiria o Teorema de Euler? Teria ele duas arestas a menos que a soma das faces e dos vértices? Mauro realmente não se surpreenderia se aquela aberração geométrica, tão fora da realidade, também ousasse transgredir esta lei tão respeitada pelos poliedros de quaisquer tipos, regulares ou não, convexos ou não. Mesmo assim contou as arestas, que totalizavam vinte e oito. Um poliedro perfeito, que seguia à risca o Teorema de Euler. Como poderia ser?

Havia um grosso e pesado livro de cálculo num canto de sua mesa. O sólido de faces quadradas no centro parecia rir dele, desafiar anos de estudo de Matemática. Olhou o livro, olhou o modelo em papel-cartão... e uma idéia sinistra começou a aparecer em sua cabeça. Teria coragem de fazer isso? Sim, teria!

— Maldito sólido platônico! Você nunca existiu, e vai continuar não existindo!

O pesado livro de cálculo transformou o modelo de pentadecaedro numa massa achatada de papel entre a mesa e a capa do livro. Ninguém havia visto aquilo, nem nunca veria. Ele próprio, Mauro, já estava plenamente convencido de que fora apenas vítima de uma curiosa ilusão de ótica. Sua consciência estava tranqüila agora: o equilíbrio do universo foi preservado, e a quantidade de sólidos platônicos continuaria sendo a que sempre foi desde a mais remota antiguidade: CINCO!

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OBS.: mais tarde, já adulto, Zequinha acabaria compreendendo por que via o mundo tão diferente de todos, e descreveria isto no conto "Visão Trinocular", que também está aqui no Recanto das Letras. ;-)