Tempos Perdidos
“Eu posso sentir o gosto do câncer na tua boca.”
Foi o que ela disse logo após o breve beijo de despedida, enquanto pegava sua bolsa e ia para a porta.
Ele riu meio sem jeito, ainda um tanto atordoado de sono. Acordara junto dela cerca de vinte minutos atrás, mas enquanto a mulher se arrumava para o trabalho, Serge permanecera na cama, juntando forças se levantar.
Por fim, num esforço gigantesco, decidiu não ceder à preguiça. Levantou-se e foi na cozinha, despedir-se da esposa.
Lembrava-se de ter acordado de madrugada, depois de um sonho que não fora bom nem ruim, e que apenas impressionara-o suficiente para que saísse da cama e fosse fumar no quintal, enquanto tentava lembrar-se dos detalhes. Sem muito sucesso, desistiu no terceiro cigarro e voltou a dormir.
Agora eram sete e quarenta e quatro da manhã, e qualquer lembrança do que ocorrera no sonho já se fora durante o resto da noite.
E agora, enquanto a esposa abria a porta, ele permanecia encostado no balcão da cozinha, observando-a. Continuava bonita como sempre, embora ele continuasse a achar que ela ficava melhor assim que acordava do que quando se arrumava para sair, opinião obviamente não compartilhada por ela.
Ela não olhou para trás, apenas seguiu apressada. Talvez estivesse um pouco atrasada, pois teria que chegar ao trabalho até as oito, ou talvez houvesse um pouco de fúria no comentário inicial. Serge não soube dizer, mas não pensou muito sobre isso.
Não estava em condições de pensar sobre esse tipo de coisa.
No breve instante em que a porta se abriu e fechou, viu a luz projetada pelo mundo lá fora. Era um dia ensolarado, provavelmente sem nuvens no céu, o que irritou um tanto sua vista.
“Um belo dia pra ficar em casa.” – Disse, para si mesmo.
Lavou o rosto na torneira da pia e preparou um chá de Cutidulccio, com uma pequena dose de um destilado qualquer que a esposa havia ganhado de alguém do trabalho já fazia umas boas semanas, e que ele fazia questão de terminar o mais rápido possível.
Serge não tinha o costume de beber – nunca fora grande apreciador do gosto e do conceito - mas um pouco daquilo de manhã parecia lhe fazer bem, e quanto menos tempo a bebida permanecesse na sua casa, melhor. Tinha certo ciúme que não combinava com seu jeito indiferente de ser, mas que não conseguia ignorar.
“Dando presentes pra ela.. São todos uns cuzões.” – Pensou ele.
Claro, ela fora promovida, e sempre era sociável e carismática. Ele gostava disso nela. Mas detestava os rapazes do seu trabalho. Tinha certeza que eles estavam interessados na sua esposa. Todo mundo estava, provavelmente. Mas no fim, era só um presente. E era ele quem estava bebendo. Nada de errado nisso.
Bebeu o chá misturado em um rápido gole, e sentiu o gosto doce da erva neutralizando o amargo da bebida.
“Hm..”
E então se viu obrigado a ter que lidar com mais um dia de sua vida.
Não que não gostasse de viver. A morte, apesar de um fato, não lhe agradava. Mas a vida em si não parecia lá muito interessante também.
Claro, morava em um bairro seguro e tinha uma vida confortável, uma esposa que (provavelmente) o amava, estabilidade financeira e nenhum problema grave de saúde, mas ainda assim não conseguia sentir-se feliz.
E também não adiantava comparar sua vida com a de outras pessoas em situações piores. Cada um era cada um, e embora sempre achasse que todo mundo sempre teria do que reclamar, independente do quão rico, bonito ou bem-sucedido fosse, não conseguia fazer com que esse pensamento o confortasse.
Era sua vida ali, e era ele quem tinha que vivê-la. A realidade nunca fora assim tão impressionante. Acostumado desde cedo com mundos fictícios, aventuras épicas e personagens poderosos, não conseguia aceitar muito bem o mundano.
“Como é que eu vou lidar com esse mundo e esse corpo se tudo o que eu queria é impossível?” – Pensou ele, em diversas ocasiões.
Mesmo se chegasse ao ápice do limite humano, se tivesse o corpo e o intelecto perfeitos, ainda não seria o suficiente.
A verdade é que nada lhe deixava satisfeito, porque seus padrões eram irreais. Sabia disso muito bem, mas não conseguia deixar de sentir vontade de viver em outro lugar. Não queria, como muitos amigos seus da infância diziam, viver em outra época. Sabia que os cavaleiros da antiguidade não deviam ter uma vida assim tão interessante, cercados de bosta de cavalo e doenças bizarras.
Não, não importava que época fosse, esse mundo em que vivia continuaria real demais, e os limites ainda estariam ali para impedi-lo de realizar o que realmente queria, fosse o que fosse.
Se houvesse alguma esperança, talvez estivesse no amanhã. A tecnologia, provavelmente, faria possível com que as pessoas realizassem o que nos dias de hoje era considerado impossível. Mas não seria o suficiente. Nunca seria, para ele.
Suspirou e considerou mais uma dose da bebida com o chá, mas desistiu da idéia. Não seriam drogas que lhe dariam o que procurava. A percepção falsa de uma alteração na realidade nunca lhe fora suficiente. Já experimentara uma coisa ou outra, mas sempre tivera consciência de que aquilo tudo ocorria dentro dele apenas. E que o mundo lá fora continuava a mesma idiotice de sempre.
Fosse para tornar-se um prisioneiro de sua própria loucura, preferia fazê-lo enquanto são.
Foi até o quarto e pegou seu jaleco. Vestiu-o e dirigiu-se para a porta que levava para dentro da garagem. No caminho, atravessando a sala, observou seu reflexo de relance no espelho e parou.
Não costumava fazer isso. Não era do tipo de pessoa que ficava reparando no próprio reflexo. Inclusive, sempre fora um tanto alienado quanto a isso. Se pedissem para descrever sua aparência, só saberia repetir o que outros haviam lhe dito. Cabelos desarrumados, que jamais encontraram um pente. Olheiras profundas, resultadas de incontáveis noites de sono perdido, fossem por insônia ou trabalho – geralmente ambos. Rosto fino e pálido, agravado por uma má alimentação e o hábito de fumar.
Parando na frente do espelho, que ia do chão até quase o teto, não conseguiu deixar de rir. A imagem de si mesmo estava um tanto patética. Mas não parecia ruim. Parecia correto.
Era como se sentia.
Estava usando uma cueca samba-canção, e o jaleco por cima. Só isso. E a mesma cara de sempre.
Riu por um bom tempo daquela imagem, e aquilo lhe deu certo ânimo para começar o dia.
Seguiu a passos rápidos para a garagem, abriu a porta e acendeu as luzes.
O portão dela não era aberto do lado de fora fazia alguns meses. O carro do casal ficava em frente ao quintal, e aquele local agora servia apenas para Serge.
Os cantos e as prateleiras estavam abarrotados por todo o tipo de tralha eletrônica, e muitas ferramentas e peças ficavam jogadas em cima dos balcões, ou presas de modo desleixado nos suportes das paredes. Girou o botão do ar-condicionado que ele próprio havia alterado até a posição de 10°.
Gostava do frio, e era o melhor clima para as horas de trabalho que viriam por ali.
É claro que apenas Serge considerava aquilo trabalho. Sim, se divertia, mas havia um grande esforço físico e intelectual no que fazia durante seus dias e noites, trancado naquela garagem. Mas ninguém entendia muito bem o que fazia ali, e todos consideravam aquilo apenas um passatempo seu, algo envolvendo sucata e eletrônicos.
Por vezes, alguns vizinhos apareciam para pedir que consertasse algum aparelho, porque sabiam que ele entendia do assunto, ou pelo menos deveria entender. A esposa, quando questionada sobre o marido, dizia que ele estava envolvido em um projeto, e que em breve patentearia alguma de suas invenções.
A verdade é que Serge já criara um ou outro aparelho, mas nada realmente útil ou que lhe garantisse alguma satisfação. Eram apenas coisas simples, que ele não se orgulhava de ter feito. O que ele realmente queria nunca era finalizado, fosse por falta de recursos ou o fato de que em algum momento a coisa havia adquirido tamanha complexidade que se tornara simplesmente impossível de ser construída.
A inspiração acabava sempre, de um jeito ou de outro, em frustração.
E apesar de provavelmente ser capaz de consertar o que lhe era pedido pelos vizinhos, e de ter sim o tempo livre para fazê-lo, ele negava na maioria dos casos.
Não queria fazer, então não o faria. Também não se importava tanto assim com as outras pessoas ao ponto de querer agradá-las. Quando consertava algo, era por insistência da esposa, e isso entrava no velho jogo de favores que os casais costumam jogar.
O frio começou a bater na garagem fechada. Ele sabia que, quando precisasse, teria alguma pantufa e peças de roupa jogadas por ali. Mas por enquanto, estava agradável o suficiente para permanecer apenas com a cueca e o jaleco.
Foi para o meio da sala, onde numa mesa de plástico estava o seu mais recente projeto.
Como todos os outros, aquela esfera de vidro sobre uma caixa metálica envolvia apenas uma coisa: Viagem no tempo.
Desde os treze anos, quando o incidente lhe ocorrera, fora essa sua obsessão.
“Eu sou você do futuro.” – Disse o velho. Usava roupas brancas, e o cabelo comprido e a barba eram ambos grisalhos. Tinha um ar abatido, mas um sorriso sincero estampado no rosto.
“Grandes merdas.” – Respondeu o garoto.
Quando pequeno, Serge pegava uma rota alternativa para chegar em casa. Era um pouco fora do caminho, mas ali não teria tanta gente. Ficava longe do comércio, da gritaria e da correria.
Eram apenas ele, sua mochila abarrotada de tralhas e uma seqüência de casas humildes, com um grande terreno baldio sinalizando a proximidade com a sua própria. Vez ou outra, parava ali por algum tempo e procurava algo de interessante nos entulhos.
Naquele dia, que parecia ser um como qualquer outro, ele andava na calçada e o homem aparecera, dizendo ser ele mesmo, do futuro.
Serge já havia lidado com esse tipo de gente. Pessoas loucas, querendo atenção, dinheiro ou coisa pior. Era algo até comum de se ver naqueles tempos de crise, embora eventualmente ele descobrisse que todos eram os tempos assim eram, e fora educado a não dar atenção pra esse tipo de gente. Mesmo não sendo “escravos do seu cotidiano” como a maioria dos outros, estes “dejetos da sociedade” também não poderiam lhe oferecer nada de bom, dizia seu tio Vincent.
Portanto, a resposta cheia de indiferença e vazia de educação que fora dada não parecera nem um pouco fora de lugar para ele. Não fazia ainda parte dos hábitos do garoto uma percepção visual do individuo, mas, se fizesse, ele teria entendido que o homem não poderia, nem de longe, ser confundido com um mendigo. Por mais desgastado que estivesse seu rosto, sua vestimenta e porte demonstravam alguém que não poderia ter saído de algum canto sujo qualquer.
“Típico descaso, com uma tentativa de ofensa. Comportamento padrão, que uso eventualmente até hoje, sem perceber. Acho que não posso te culpar.” – Respondeu o homem, andando ao lado de Serge, que havia apenas desviado o caminho e continuado andando, sem nem olhá-lo.
"Talvez um pouco de medo também, hm? É normal, com um estranho mais velho vindo conversar com você, ainda mais quando é algo tão surreal que está sendo dito.” – Continuou ele, ao ver que não havia obtido resposta. – “Mas não se preocupe. Não planejo machucá-lo, e nem quero que se assuste, Serge Zaurouix Pedert, treze anos, filho de Henrique Pedert e Marie Zaurouix, que ainda semana passada se impressionou tanto com o episódio do desenho animado “Lagartia” que fora capaz até mesmo de se perguntar, por alguns minutos, se aquela lagartixa que sempre parecia lhe observar no canto da parede não era, de fato, um mini espião mandado pelo império maligno dos Lagartos.”
E aquilo sim havia impressionado Serge, porque era tudo verdade. Uma verdade pessoal e única.
Porque, por mais que alguém lhe observasse e tivesse adquirido informações sobre sua família, fosse para um seqüestro ou qualquer coisa do tipo, não teria como saber sobre a história da lagartixa. Ele não havia comentado com ninguém , e de fato nem havia pensado naquilo desde a ocasião. Havia considerado-se um tanto idiota posteriormente, inclusive, por ter sequer considerado a idéia de deixar um programa de televisão afetá-lo tanto.
Serge parou e olhou na direção do homem. Ele ainda parecia emitir o sorriso sincero, mãos dentro do bolso da calça, nenhum tipo de investida em sua direção.
“Você... é a lagartixa espiã?” – Perguntou Serge, sinceramente sem saber direito o que pensar.
E uma grande risada ecoou por muitos tempos e lugares.