Transmigração
Qvain se recorda com certa clareza de seus últimos 17 séculos de vida. Talvez tenha vivido mais, porém suas memórias não alcançavam tão longe. Estava quase a encerrar mais um ciclo de 60 anos, e contemplava agora o organismo clonado à sua frente, repousando no tanque de maturação. A cópia fora feita dois anos antes, porém o tanque já havia amadurecido o organismo o equivalente a vinte anos. Agora só faltava completar a transferência...
Qvain já havia perdido a conta de quantas transferências já realizara na vida, mas a mais recente ainda estava bem nítida em sua memória. Como agora, antes ele também havia insistido em ver o organismo receptor. Sua imagem no espelho. Um sistema nervoso com todas as conexões ainda a serem completadas, pronto para receber uma cópia exata do seu doador: lembranças, habilidades, personalidade... Mas ele nunca conseguiu se lembrar com detalhes da passagem. Lá estava ele, encarando seu reflexo na água. Tudo se torna confuso à medida em que Qvain mergulha em direção à imagem refletida. Tem uma sensação muito forte dos pensamentos sendo drenados enquanto a cópia é feita, e em seguida sente ... o nada! De súbito está do outro lado da superfície da água a se afogar, até erguer-se num rápido movimento para fora da água salgada do tanque de maturação.
Isto é tudo o que ele se lembra do processo de transferência mais recente, e tem a impressão de que os anteriores não foram muito diferentes. Seu atual organismo já está muito envelhecido, e o processo precisa ser repetido. Sua imortalidade deveria ser assegurada, pois Qvain era uma célula muito importante num organismo muito maior: a sociedade dos ashcronianos.
A cópia de ligações sinápticas para o organismo doador não era muito agradável, embora também não chegasse a ser insuportável. Grande parte do desconforto era devido ao dispositivo de exploração que envolvia todo o crânio do organismo doador. Tal dispositivo estimulava magneticamente áreas bem definidas do cérebro, e captava de forma semelhante as suas reações. Para que isto fosse possível, Qvain precisou ingerir antes soluções de metais pesados. Dissolvidos na corrente sangüínea, estes metais eram responsáveis por receber e transmitir estímulos eletromagnéticos para o dispositivo.
Copiar os estímulos de resposta não era tarefa simples, e necessitava de um considerável processamento antes de ser passado ao doador. Isto porque à primeira vista as respostas aos estímulos não passavam de ondas periódicas praticamente idênticas geradas por várias regiões do lobo estimulado. A informação se apresentava como variações muito sutis destes padrões, e apenas um processamento posterior de combinação das ondas poderia extrair uma variação mínima capaz de ser replicada no outro sistema nervoso. Acontecia assim pelo fato do cérebro armazenar informações como se fosse um gigantesco holograma: qualquer parte de um lobo cerebral é quase uma cópia do lobo inteiro, sendo que as informações apenas se tornavam mais "refinadas" à medida que se consideram partes maiores.
Os metais pesados ingeridos certamente deixariam seqüelas a longo prazo no organismo antigo de Qvain. Entretanto isto não tinha importância, pois ele seria destruído logo após a conclusão do processo de cópia. Os Preparadores também ofereceram a Qvain substâncias para facilitar a passagem dos impulsos nervosos entre os neurônios. Até alguns séculos atrás tais substâncias poderiam falhar em uma porcentagem mínima de doadores, facilitando de forma exagerada a transmissão dos impulsos e comprometendo toda a cópia das ligações nervosas. Isto ocorria porque naquela época os indivíduos não eram totalmente idênticos: o método de clonagem ainda gerava variações genéticas mínimas, mas imprevisíveis. Atualmente, com todos os organismos praticamente iguais, as reações destes em relação às várias substâncias eram totalmente previsíveis, e a possibilidade de falhas podia ser considerada nula (ao menos não ocorrera nenhum caso nos últimos quatro séculos). Foi confiando numa operação bem sucedida que Qvain se deitou e deixou que o dispositivo explorador se fechasse envolvendo seu crânio.
Alguns minutos se passaram para que os metais fossem totalmente absorvidos pelos bilhões de neurônios. Qvain aos poucos percebe luzes coloridas, embora esperasse total escuridão. Mas não está certo se são reais, ou conseqüência da dissolução dos metais, ou da substância facilitadora...
Um forte estímulo sem causa externa aparente faz Qvain concluir que o dispositivo de exploração começou a entrar em funcionamento. Iniciando a exploração pela parte anterior do cérebro, Qvain é invadido por uma confusão de conceitos, símbolos, sons e palavras. Sente uma vontade incontrolável de falar, conseqüência da combinação dos estímulos eletromagnéticos e da substância facilitadora. Sem saber se existem ouvintes (talvez os Preparadores estivessem supervisionando), passa a discursar sobre as formas de vida daquela região da galáxia, sua preocupação com o processo de transferência, os boatos infundados de degeneração nos processos de clonagem... Inicialmente, embora mudando de assunto de forma caótica, o discurso de Qvain ainda faria sentido caso fosse acompanhado por um possível ouvinte. Mas à medida que áreas mais centrais do cérebro são estimuladas, o discurso se torna simples sucessão aleatória de palavras, sem a mínima preocupação com a sintaxe. Qvain não está mais preocupado em formar sentenças com sentido, está simplesmente estudando os sons das palavras. Nunca antes havia percebido como são belos os fonemas! E também considera incrível a associação quase instantânea dos sons que ele emite com os símbolos e imagens que estes representam, e a forma como tais símbolos acabam gerando novas palavras... Sem dúvida a máquina estava testando tudo aquilo que ele havia aprendido.
A vontade de discursar acaba da mesma forma que havia começado. Está exausto e com sede. Ao sentir que está sendo aplicado o soro em seu braço, tem a certeza que os Preparadores realmente estavam lá fora supervisionando tudo. A reidratação tem um efeito particularmente agradável, e ele se sente pronto para que seja iniciada a exploração de outras regiões do cérebro.
As memórias de Qvain são as próximas informações a serem replicadas ao doador. Esta foi a parte mais confusa da transferência. Possivelmente ele não se lembra com clareza desta fase porque era exatamente a parte responsável pelas lembranças que estava sendo estimulada artificialmente. Foi sem dúvida a fase mais desagradável, pois a sensação posterior era de que havia uma falha no tempo, um período de alguns minutos que foi vivido mas totalmente perdido...
Alguns minutos antes da estimulação artificial do córtex motor, um inibidor muscular foi adicionado ao soro. Apesar do efeito um pouco desconfortável (pois era fracamente antagônico à substância facilitadora ativa no cérebro) era muito importante que os músculos do corpo fossem "desativados" nesta fase: Qvain poderia se machucar seriamente ao se mover em desordem, como conseqüência dos estímulos!
Apesar de totalmente imóvel, a sensação de estar correndo era muito clara. Mesmo com os músculos inertes, a substância inibidora não bloqueava a realimentação dos impulsos musculares, e Qvain sentia que seus membros respondiam como de costume aos seus comandos. Logicamente era uma sensação um pouco diferente da natural, pois não haviam as resistências normalmente sentidas por uma pessoa correndo: o atrito com as correntes de ar, o impacto com o solo, a sensação de peso... Também o equilíbrio não estava funcionando normalmente, e em determinado momento ele se sentiu em queda, deslizando numa superfície inclinada de gelo liso. A sensação de espaço estava seriamente afetada: ora Qvain se sentia enorme, ocupando a sala inteira, e no momento seguinte ele era um minúsculo ponto caindo num vácuo escuro. Mas nada disso era de todo desagradável. Ao contrário, tais deformações dos sentidos às vezes se tornavam bastante interessantes.
Com o inibidor ainda fazendo efeito, o aparelho passou a explorar as habilidades motoras mais primitivas armazenadas no cerebelo. Esta era uma das fases de cópia mais grosseira, pois de certa forma as ligações nervosas do cerebelo eram quase que inteiramente transmitidas geneticamente, portanto a maior parte destas ligações já estavam presentes no clone receptor. Mas ainda restavam poucas habilidades aprendidas que precisavam ser copiadas. Qvain não teve sensação de movimento nesta parte. Sentiu uma vaga catalepsia, a impressão de que o corpo não respondia às suas vontades. Isto era de se esperar, já que uma parte das respostas aos impulsos musculares eram tratadas pelo cerebelo. Na verdade todos os impulsos nervosos de alto nível gerados pelo córtex motor do cérebro passavam pelo cerebelo antes de serem transmitidos pela medula espinhal.
Muito mais se passou, e ainda muito mais Qvain não era capaz de recordar, tamanha a sua confusão nos momentums!
... ... ...
O final da transferência encontrou um Qvain desorientado. Era incapaz de se lembrar de todos os detalhes do processo, muito menos quanto tempo haviam durado. Um gosto metálico pulsava na base de seu crânio quando o mecanismo de exploração se abriu. Qvain nunca havia demorado tanto para completar um ato tão simples como se levantar. O estranho efeito se tornou mais forte quando ele se apoiou para fazê-lo: o tempo não parecia mais contínuo como sempre fora, mas estava quantizado. Nem mesmo a seqüência normal era mantida, pois enquanto Qvain prosseguia no aparentemente lento ato de ficar em pé, quadros anteriores e posteriores surgiam na sua mente simultaneamente. Embora apenas sentado e apoiado numa das mãos, tornava a se sentir deitado e, logo em seguida, já totalmente sobre seus pés. Ora o ritmo desta seqüência de pensamentos coincidia com as batidas metálicas em sua mente, ora defasavam. Mas o efeito geral era agradável.
Qvain se sentia muito feliz por conseguir levantar. Se sentia feliz com os "flashes" de imagens que invadiam sua mente, a cada milionésimo de intervalo de tempo. Os dois Preparadores que acompanharam o processo se dirigiam à porta que se abria para o dispositivo de dissociação molecular, pois era o momento de se desfazer do organismo antigo para assumir o novo.
Qvain se sentia feliz por estar caminhando até eles. Se sentia feliz porque o impacto de cada passo dado ressoava por todo o seu corpo e convergia para a base do crânio, aumentando aquele estranho gosto de metal sendo sacudido. Se sentia feliz por estar desorientado, e se sentia feliz porque os rostos dos Preparadores eram ora grotescos, para em seguida se tornarem angelicais.
Qvain se sentia muito feliz por ser um ashcroni. Se sentia muito feliz porque agora abandonaria um organismo já gasto. Se sentia muito feliz porque os ashcroni eram a única espécie hominídia conhecida que conseguira plenamente se tornar imortal. Se sentia muito feliz por habitar aquele planeta perfeito. Se sentia muito feliz por estar quase a 9/10 da extremidade do terceiro braço espiral daquela galáxia.
Ele se sentia muito feliz! Apenas isto! Não importa o motivo, não era importante naquele momento!
Estava feliz... alguém pode censurá-lo por isso?
Abre-se a porta de entrada para o minúsculo cubículo. Qvain entra sabendo que em breve ela se fechará, e o calor cuidará de devolver a matéria de seu velho organismo ao cosmo do qual ele foi produzido. Seus átomos serão dispersos para formar outros organismos e, talvez num futuro distante, estrelas. Mas isto não o assusta, pois agora tem certeza absoluta de que aquele velho corpo não é Qvain... Ainda se sente fracamente ligado a ele, mas isto (como explicaram os Preparadores) acabará quando seu antigo sistema nervoso for dissociado pelos raios térmicos. Muito menos teme a dor, já que não haverá tempo suficiente para a propagação dos impulsos nervosos. Os batimentos aceleram quando a porta do cubículo é cerrada, mas trata-se apenas da adrenalina liberada naquele organismo, que ele já sabe não fazer mais parte dele próprio.
Mas o fato é que ele sentiu sim um calor e uma dor indescritíveis quando os raios térmicos foram enfim ativados! Não soube precisar exatamente a duração. Sabe que foram frações ínfimas de segundos, mas também sabe que apesar disso pareceram intermináveis. Enfim, os pulsos nervosos realmente eram mais rápidos que a dissociação das células pelos raios térmicos... mas era muito tarde para constatá-lo. Os feixes se refletiam nas paredes prateadas do cubículo e o calor crescia cada vez mais. A fração de tempo em que sentiu dor pareceu eterna, pois agora sabia muito bem que seu tempo fluía de modo diferente. O calor e dor insuportáveis pareciam que nunca acabariam...
Por fim Qvain se sentiu desligado. Cessou a dor, com certeza as antigas células já estavam pulverizadas o suficiente para não permitirem mais a propagação do estímulo doloroso. Como ele não pôde se lembrar de tal fase traumática nas transferências anteriores? Provavelmente o trauma apagaria tais lembranças do organismo novo. Se lembraria disso ao voltar? Ou a lembrança seria novamente apagada?
Mas agora ele estava aliviado, flutuava numa paz profunda. Novamente, pode ter durado frações de segundos... mas para Qvain a sensação de tranqüilidade já durava uma eternidade.
Qvain só pensava agora em retornar ao organismo clonado. Como? Não fazia idéia. Nunca os Preparadores haviam entrado em tais detalhes, provavelmente porque não sabiam. Mas o fato é que todos retornavam. Ele próprio se lembra de ter feito isto inúmeras vezes. Não recordava com exatidão dos detalhes, das sensações de agora... mas sempre voltou. Talvez a cópia orgânica o atraísse como um ímã, devido à semelhança.
Qvain sente agora um pânico terrível! Tem a nítida noção de estar desintegrando. Primeiro fisicamente: de forma estranha, parece sentir cada um de seus trilhões de grãos pulverizados caírem suavemente, se acumulando num monte de poeira no fundo do cubículo. Depois vem a sensação ainda mais difícil de se conceber, que é a desintegração do pensamento e da própria consciência. Que teria acontecido?! É tomado pelo medo. Pela primeira vez lhe vem à mente que algo pode ter dado errado. Toda aquela lucidez de antes de entrar no cubículo, a sensação de ser algo separado de seu corpo... tudo lhe parece agora um terrível engano! Ele quer voltar, mais do que nunca ele deseja voltar. Mas como? Qvain não sabe mais para onde voltar. Nem sabe mais para quando voltar! Tempo e espaço não fazem mais sentido, dissolveram-se com a própria idéia de consciência. Não sabe mais se os fatos de que se lembra estão acontecendo, já aconteceram ou ainda estão para acontecer... Apenas num infinitésimo instante em meio ao caos ele consegue seqüenciar parcialmente suas lembranças e seu raciocínio. É quando acaba concluindo que, definitivamente, algo muito errado aconteceu desta vez! Lembrou-se claramente que nunca tivera as atuais sensações nas outras transferências. Na verdade, nem se lembrava de alguma "outra transferência". Se as sentiu agora, estava claro em sua mente que o motivo era ... ... ... não consegue completar o raciocínio... a sua consciência antes focalizada num minúsculo instante retorna ao estado caótico... ...
Nada disto tem mais importância para Qvain-Cosmo... ... a noção de que existe e de que é um indivíduo separado de todo o resto do universo se focaliza e se dissocia ritmicamente, inúmeras vezes em cada fração do tempo... (E o que significa "fração do tempo"? para cada pessoa significa uma coisa!!)... ...Qvain-Cosmo só deseja agora se dissolver completamente no caos, ter a última fração de sua consciência completamente absorvida pelo espaço-tempo... ... ... ... não há mais pensamentos, só silêncio, paz e escuridão... Ele sentiu o universo se expandindo... ... e Ele... ELE!!! ... Ele se expandia junto... ... e achou isto muito bom... ... ... Sim, isto era MUITO BOM!!!...
Ao se levantar bruscamente de seu tanque de maturação, a única coisa de que Qvain se recordava era de seus pensamentos sendo drenados, enquanto mergulhava em direção ao seu reflexo e se sentia afogar com aquela água salgada...