O Mistério de Arghtar - Capítulo 1 - A última Noite
A Última Noite de Arganon
" não é somente o brilho das estrelas que nos chegam dos céus"
Inhotep - 3280 a.C.
Alzimor 19484 a.C.
A visão da violência com que as ondas do mar batiam por sobre as pedras do grande rochedo da face norte da ilha de Arganôn estava escondida pelo escuro profundo da noite sem estrelas, mas o barulho ensurdecedor do açoite insistente e impiedoso não poupava os habitantes assustados. Não chovia e, mesmo assim, o céu totalmente encoberto por grossas nuvens que impediam a passagem das luzes da imensidão, anunciava a iminência da tempestade.
Um tanto alheio ao que acontecia do lado de fora e envolto pelas fumaças azuis que saiam dos candeeiros de bronze, Harmáz tentava, diante do oráculo, entender os presságios sinistros que recebia constantemente nos últimos dias. Buscava uma luz, uma saída. Harmáz, guardião das pedras, sabia que o alinhamento total que estava prestes a se completar desencadearia forças nunca vistas por nenhum dos moradores da ilha e que nem mesmo ele, mesmo com a ajuda das revelações do oráculo, conseguiria suportar.
A outrora majestosa ilha de Arganôn, situada no meio do grande oceano, tinha sido escolhida pelos povos de Atlis como refúgio logo após a migração desde o ponto de localização do grande portal. Mil anos tinham se passado até que as doze tribos que atravessaram as enormes portas se reunissem novamente, após desbravarem o novo mundo em diversas direções em busca do lugar ideal para o recomeço. Somente os Argnos, uma das tribos, que dominava as artes da navegação, tinha voltado com notícias alvissareiras de um lugar perfeito, longe de tudo e com todos os atributos necessários ao dia a dia dos povos de Atlis. Arganôn foi a escolhida.
O guardião estava velho, cansado dos longos anos carregando o fardo de zelar pelos poliedros que foram passados a ele pelo guardião anterior já há muito tempo. Logo que recebeu as pedras restantes com a incumbência de cuidar delas até que fosse feita uma separação segura das raras peças, Harmaz sabia que aquele dia finalmente chegaria e que ele estaria lá.
A decadência de seu povo, outrora uma civilização dominante e resplandecente que influenciava os demais povos pelos quatro cantos do mundo, era evidente. Já não tinha importância os milhares de anos em que seu povo habitou Alzimor e o legado que ficaria por outros tantos milhares de anos no futuro. Não interessava mais as centenas de templos espalhados pelo mundo erguidas pela ânsia dos povos de Alzimor de chegar mais perto deles. Estava escrito. O guardião sabia que tinham seguido por um caminho sem retorno e que estava, com o alinhamento e a conseqüente abertura do caminho, completo o novo ciclo de existência de seu povo em Alzimor.
Quando a terra começou a tremer com mais violência, a ponto de desequilibrar Harmáz, junto ao altar de pregação, o reino começou a ruir. O velho zelador das pedras soube que aquele era o início do fim. Poucos sobreviveriam ao que estava por vir e Harmáz só conseguia pensar em garantir um bom destino aos poliedros. Abrigadas em seus respectivos munis negros, elas estavam prontas para a grande viagem.
Os abalos começaram a ficar violentos, o mar cada vez mais revolto batia, como um látego furioso, impiedosamente, nos rochedos e nas praias de Arganôn. A terra rachava em profundas gretas por todo o lado, com o vento zunindo e abafando os gritos de horror.
O guardião não se importava com a força descomunal do vento, com a chuva torrencial ou com os tremores cada vez mais fortes que a terra esfacelada o fazia sentir sob seus pés. Os gritos desesperados de seu povo não chegavam aos seus ouvidos e os clamores das ruas não tocavam seu coração fatigado. Pensava no destino das pedras, sabia que o portal já estava aberto e que os sete poliedros seguiriam destinos diferentes. A aproximação entre os mestres das coisas dos mundos e os mestres das coisas das gentes vinha de tempos muito antigos e nem mesmo a união entre as coisas do ser e dos mundos tinham aplacado os efeitos danosos de um espírito cruel. Das doze tribos que formavam o seu povo apenas sete estariam mantendo a guarda de algum poliedro verdadeiro, mas não saberiam disto. Era melhor que fosse assim, pensava o guardião. Ele também pensava no seu fim.
A terra se abria e se espalhava. A cada tremor o mar violento avançava e, pouco a pouco, se apoderava de tudo o que antes tinha sido Arganôn. E, então, como que por encanto, as nuvens sumiram do céu dando lugar a um manto negro pontilhado por milhares de estrelas e, abaixo, o mar outrora violento e avassalador servia, calmo, de espelho para a beleza da noite.