O Ano da Anomia…
“Crónicas dos tempos que hão de vir…”
Foi então que o que se temia aconteceu…
O que tinha que acontecer começou a acontecer…
O Ano da Anomia…
- Ou o principio ou o fim de Tudo…-
Anomia…
A Anomia é um estado de falta de objectivos e perda de identidade (…)
Durkheim emprega o termo “Anomia” para mostrar que algo na sociedade não funciona de forma harmónica. Algo pode funcionar de forma patológica ou de forma anómica.
“No seu famoso estudo sobre o suicídio, Durkheim mostra que os factores sociais - especialmente da sociedade moderna - exercem profunda influência sobre a vida dos indivíduos com comportamento suicida.”
Quando uma necessidade básica ou não revelada não é ou não pode ser satisfeita, em certos casos pode-se tender para a anomia, para o suicido…
Incidência -1
Sujeito:
Individuo de sexo masculino com 44 anos, de origem caucasiana, professor de reconhecidos méritos numa prestigiada universidade.
Vida familiar, profissional e social bem sucedida.
Encontrado morto numa sala de aula.
A autópsia revelou que se suicidou.
Incidência -2
Sujeito:
Indivíduo de sexo feminino com 25 anos, de origem asiática, vendedora bem sucedida de produtos informáticos.
Vida familiar, profissional e social bem sucedida.
Encontrada morta na sua viatura de empresa
A autópsia revelou que se suicidou.
Incidência -3
Sujeito:
Indivíduo de sexo masculino com 70 anos, de origem hispânica, reformado das forças de segurança
Vida familiar, profissional e social bem sucedida.
Encontrado morto na sua garagem.
A autópsia revelou que se suicidou.
Incidência -4
Sujeito:
Indivíduo de sexo feminino com 15 anos, de origem mulata, estudante do quadro de honra do respectivo estabelecimento de ensino.
Vida familiar, escolar e social bem sucedida.
Encontrada morta numa sala de estudo.
A autópsia revelou que se suicidou.
Incidência -5
Sujeito:
Indivíduo de sexo masculino com 8 anos, de origem berbere aluno prometedor, criança afável e delicada
Vida familiar, escolar e social bem sucedida.
Encontrado morto numa casa de banho da sua escola.
A autópsia revelou que se suicidou.
Incidência -6
Sujeito:
Indivíduo de sexo feminino com 10 anos, de origem chinesa, aluno prometedor, criança afável e delicada
Vida familiar, escolar e social bem sucedida.
Encontrada morta em casa.
A autópsia revelou que se suicidou.
6 Incidências…
Meras 6 Incidências…
No escritório de Hanna, na sua secretaria acumulavam-se centenas de Incidências…sem explicação…sem nexo…
6 representativas de todos os tipos, mas apenas meras 6 que ela escolhera para as analisar de forma conveniente e assim limitar o seu objecto de estudo…
Ao longo do ano eram normais Incidências, a sua profissão tratava de as analisar…Mas num ano mau no máximo seriam dezenas…e ainda estava em Junho e já eram centenas…muitas…e numa área de apenas 50.000 habitantes…e através de colegas seus de outras áreas sabia que a coisa era igual, e nalguns casos bem pior…
“Epidemia de suicídios “
Quando era estudante lera um Ensaio algo obscuro com esse nome que defendia esta eventualidade…mas era um Ensaio obscuro…de tal ordem que foi censurado e afastado da biblioteca da sua Universidade…no entanto ela tivera acesso a uma copia clandestina, que fazia algum furor entre alguns alunos, apesar de não passar de uma mera teoria algo delirante…
Com o tempo os alunos tornavam-se profissionais e perante a prática diária esse ensaio mais parecia um perigoso exercício de imaginação supostamente científico, que haveriam de esquecer, mas perante os factos daquele ano, e sem respostas, relembrou-se do ensaio…
Procurou a cópia…
Em vão…perdeu-a…
Procurou na Rede…
Nenhum exemplar ou mera referencia a tal…
Estranho…
Nunca nada sai da Rede…a menos que seja incómodo, demasiado…a equipa de técnicos para apagar algo da Rede passaria por ser tão grande e tão dispendiosa que só num caso de excepcional gravidade algo seria apagado da Rede…
Mas porquê…?
Pelo que se lembrava, esse Ensaio apenas dizia que poderia haver uma altura na história em que meros suicídios individuais passassem a serem de massas, um fenómeno de massas…em tão elevada escala, que se poderia falar de “Epidemia de suicídios “. Depois a justificação de tal…lembrava-se por alto…afinal já tinham passados mais de 15 anos desde que lera esse Ensaio…o autor defendia uma série de justificações, cada uma mais confusa, e algo delirante…ao ponto de se tornarem algo…sem nexo…O que apaixonava os leitores era a hipótese de suicídios em massa, porque as tais explicações, por serem confusas perdiam o interesse que deveriam ter…
E depois…a prática profissional demonstrava que o tal Ensaio não passava de uma enorme patetice, uma fantasia…delirante…
E era…
Até que surgiram as “Incidências” em série…descontroladas…como se fossem uma epidemia…
Claro que Hanna não se lembrou logo do tal Ensaio, mas quando deu consigo sem explicações, depois de ter buscado estas na ciência clássica, e na urgência de respostas que a levassem a impedir novos suicídios, e, mais importante, que a levassem a impedir algo de bem pior que sentia estar prestes a acontecer, lembrou-se então do Ensaio…
Porque por outras palavras de certa forma o Ensaio antecipava o que estava a acontecer…
Agora…
Mas faltava algo, que mesmo que tivesse acesso às páginas desaparecidas tornavam tudo em vão…
Faltava um Padrão entre os suicidas, um ponto de comum entre eles, se quiserem…algo que a pudessem levar a categorizar um tipo de comportamento, para o detectar em pessoas ainda vivas e assim pudesse evitar a sua morte…uma espécie de prevenção primária, ou para leigos, actuar antes que o fenómeno pudesse ter lugar…
Mas por muito que analisasse os processos, nada havia em comum entre os mortos…
Com nacionalidades diferentes, de ambos os sexos, de todas as idades a partir dos 7 anos, de profissões diferentes, de diferentes estratos sociais…nesse grupo heterogéneo, nesses mortos estava representada toda a sociedade humana…
E esse era o único Padrão existente…
“Toda a sociedade humana…”
O que assustava Hanna terrivelmente…
E todos os dias surgiam novos casos…por vezes dezenas…num mero dia…e mais telefonemas de colegas a reportar Incidências semelhantes…
Mas por estranho que pareça, os media ignoravam tal…
Para além dos obituários publicados nos jornais, os media ignoravam o assunto…mesmo quando um governante ou um artista morriam, a coisa era ignorada ou mesmo subvalorizada…
E no entanto nas ruas sentia-se uma tensão crescente, silenciosa, mas crescente…
As pessoas andavam tensas, algo nervosas, sem sombra de dúvida inquietas…
A sensação nas ruas era semelhante àquela vivida em tempos de epidemia…: toda a gente sentia que podia, ou que lhe ia tocar de uma forma ou de outra, mas não falavam do assunto, como se tal pudesse evitar que fossem tocados por esse mal invisível…
Mas bastava olhar para os olhos das pessoas para perceber a sua inquietação…
Um problema em crescendo, e a sensação de que as coisas iriam piorar, e de facto pioraram…mais depressa do que ela imaginava, e bem mais perto de si do que ela poderia supor…
Pouco passava da hora do almoço quando Hanna recebeu um telefonema de um colega seu, mas um telefonema pessoal…
Hanna morava numa zona diferente daquela de que era responsável, e por isso quando viu o nome do colega da sua zona no seu telefone pessoal tremeu de medo, como de antecipação, mas notícias eram notícias, e evitá-las de nada iria adiantar, porque elas iriam chegar, de uma forma ou de outra, elas iriam chegar…
Algo se passara de muito grave com o seu marido, algo que lhe queriam comunicar pessoalmente…
Hanna sabia que as funções do colega que lhe ligou eram semelhantes às suas, e por isso antes do colega falar ela já sabia o que se passava…
Adoptou por isso uma postura esfíngica que disfarçava o seu real estado de espírito, limitando-se a perguntar em que morgue estava o seu companheiro…
De um segundo para o outro o companheiro de uma década deixara de ser tal, para ser uma mera Incidência…
Quando chegou à morgue a autopsia já tinha sido feita, a que ela teve acesso de imediato, privilégios da sua profissão…
Tentando bloquear as emoções, e consequentemente as lágrimas, estudou de forma profissional o relatório da autópsia, tentando encontrar Algo…
Mas nada…nada…nada…
Analise toxicologa nula…
Elementos de crime nulos…
E a forma como se processou a sua morte era inequívoca…
O marido fazia parte da nova doença humana a que deram o nome não assumido e muito menos oficial de “Incidência”…
Em choque, num primeiro momento Hanna desejara que tivesse sido vítima de algo…algo que ela pudesse perseguir ou pelo menos responsabilizar…
Mas o marido morrera vítima sim, mas vítima de um mal cego que começara a devorar a humanidade…
Há várias formas de se lidar com a morte de alguém próximo, e Hanna escolheu a que menos a faria sofrer, o seu trabalho, que por uma terrível ironia estava ligada “à sua morte”…
Foi assim que investiu ainda mais nele, ocupando o tempo familiar que deixara de existir com o trabalho, com uma pesquisa assumidamente obsessiva por um algo, um nexo de casualidade…
Foi assim que soube que o mal era planetário e não meramente nacional, ou da sua cidade…Claro que tal estava algo oculto por autoridades que sem saber o que fazerem, ocultavam como podiam este tipo de informação, mas aquela era a área de Hanna, e com os devidos instrumentos profissionais, ela ficou a saber da tal globalidade do mal…
Um mal com 6 meses, mas com tantas vítimas que as autoridades estavam positivamente à beira de um ataque de pânico…
E os números não eram assustadores, eram aterradores…mesmo aos olhos de uma perita como ela…
Mas claro que estes não eram públicos, a verdade destes estava protegida por uma série de barreiras, de protocolos que ela ultrapassou, fruto dos privilégios da sua profissão…
E a tendência era piorar de forma crescente, gradual, sistémica e algo acelerada…
De forma a deixarem-na trabalhar sem a necessária baixa de luto, Hanna conseguiu que o assunto da morte do marido fosse abafado, sendo que para todos os efeitos ele tinha viajado por assuntos particulares, sendo assim justificado o tempo crescente que ela dedicava cada vez mais ao seu trabalho.
Baseados neste pressuposto, os seus chefes desconhecedores do seu luto davam-lhe cada vez mais trabalho, dado ela ser cada vez mais necessária. Em tempos normais o número de profissionais como ela seriam mais do que necessários, e houve mesmo alturas em que se revelaram excessivos, mas nos tempos correntes eram raros, e ainda mais raros com os anos de serviço e com a sua experiência…
Deu então consigo num estado de impotência total…
No serviço, apesar de sentir tal, continuava a trabalhar de forma incansável, analisando relatórios que já tinha lido inúmeras vezes, tentando achar o tal Algo que lhe faltava, ou então a analisar os novos que de facto não paravam de chegar…
Mas em casa…houve uma altura em que pura e simplesmente desistiu…
Como a insónia da perda e da preocupação continuavam a tornar as noites demasiado grandes, decidiu arrumar essa casa dos dois, de forma a tornar a casa de uma só pessoa, deu consigo a arrumar coisas com diversos anos, os anos em que estivera casada, e foi então que Aquilo apareceu…
Metido numa gaveta onde guardava algumas fotos do seu casamento, gaveta e fotos esquecidas, estava o Ensaio…
“Epidemia de suicídios “
Folhas amarelecidas pelo tempo, mas ainda intactas, que percorreu febrilmente, para constatar de forma horrorizada, que tirando as palavras exactas, aquelas mais de 100 páginas descreviam exactamente o que se estava a passar na actualidade…Como se se tratasse de uma premonição…
Os dados eram os mesmos, a categorização a mesma que ela tinha feito…
Procurou as conclusões…
Inutilmente…
A exactidão dos dados deram lugar a algo de delirante ao qual ela não encontrou nenhum sentido…até mesmo a língua exacta deu lugar a uma língua confusa e cheia de erros de sintaxe e de concordância…
Notou que o autor ou autora do Ensaio tentara de facto dar uma explicação lógica, mas entrara num tal estado confusional, num tal delírio que nada se percebia…
Se tivesse o Ensaio original, e através da análise do papel, ou até mesmo das impressões digitais poderia saber a sua origem, e com um bocado de sorte a origem do autor, naturalmente já falecido, mas se o localizasse, localizaria os seus bens, outros escritos, e possivelmente a origem das ideias ou influências que deram lugar àquele Ensaio…
Em vão…
Era uma mera cópia, e Hanna deu consigo desalentada no mesmo beco sem saída…
A única conclusão, era que, pela língua datada em que fora escrito, o Ensaio tinha diversas dezenas de anos, ou talvez mais, escrito antes das novas regras que tornaram a língua diferente…
Mas nada mais…
Mas como a língua se mantivera igual durante muito tempo, e como a cópia poderia ser uma cópia actualizada, o original poderia ter centenas de anos…
Deu pois consigo no tal impasse que tanto temia, deu com a sua cabeça a divagar, a percorrer de forma incontrolável as emoções e as recordações que havia suprimido, tanto para se concentrar no trabalho como para evitar pensar no seu marido.
Deu consigo a pensar no seu marido, em tantos momentos passados ao lado nele, momentos de partilha carnal, momentos espirituais, momentos de camaradagem, momentos que em comum tinha uma nota de prazer que nunca esmorecera, do primeiro ao último dia em que esteve com ele. Deu consigo a pensar no que gostava dele, no aspecto físico e sobretudo no facto dele representar o seu maior desafio intelectual. Tanto ele como ela se viam a si próprios como um algo altamente estimulante a nível intelectual; ao passo que ao nível físico se completavam, nos domínios da mente também, mas sobretudo competiam entre si, tanto para se superarem um ao outro, como para se superarem a si próprios. Nessa óptica aprenderam a fazerem uma série de jogos, nos quais se tentavam ultrapassar. O mais comum e mais apreciado desses jogos era a criação de códigos que tentavam que o outro não decifrasse. Durante anos fizeram isto, e tornaram-se pois especialistas em códigos, tanto nos conhecidos como naqueles que eram obrigados a inventar, e os dois aprenderam a detectar qualquer tipo de código, por muito disfarçado que este estivesse, e logo de seguida a tentar decifrar tal…Isto tornou-se de tal ordem recorrente, que as mensagens que deixavam um ao outro, mesmo as mais simples, eram codificadas…
E de repente ela sentiu-se estúpida, absurdamente estúpida por não ter percebido tal…
As tais explicações confusas do Ensaio eram um código…
Escondido para não parecer um código, mas era sem dúvida alguma um código…
E no entanto um código podia ser indecifrável…
Mas ao fim de muitos meses, no começo de uma tragédia que estava a acontecer, ela sentiu-se imensamente feliz…
Se havia um código havia uma mensagem, havia uma resposta, pois alguém sabia o que estava a acontecer, ou soube o que iria acontecer e tinha uma resposta para tal, resposta dada depois de decifrado o código…
Mas a diferença entre haver ou não solução para colocar um fim nas mortes estava em saber o código, pois seria uma vitória ilusória saber que alguém sabia e não haver solução para tal…
Não perdeu mais tempo, escreveu para uma folha no computador a tal explicação confusa, o tal código, e depois, com uma série de instrumentos que conhecia tentaria decifrar tal…
Em pouco tempo tinha as folhas escritas, às quais adaptou então os códigos que conhecia, e ao mesmo tempo e noutro computador pesquisava na Rede outras chaves de decifração que pudessem existir.
Sabia que tal poderia durar dias ou mesmo meses, e por isso não havia tempo a perder.
Apesar de tal fazer parte do seu trabalho, da sua investigação, o trabalho propriamente dito de gabinete não poderia ser esquecido, e por isso no dia seguinte, e sem dormir, saiu de casa, mas deixou os dois computadores a analisar em modo automático o Ensaio.
Naquele tempo a chamada “inteligência artificial” dos computadores estava relativamente avançada, valendo infinitas vezes a inteligência humana em certos domínios, sendo que a decifração de códigos era um desses domínios…
Assim, quando regressasse a casa teria algum trabalho adiantado.
Não foi difícil abstrair-se da sua descoberta, pois para não variar o número de novas Incidências continuavam a aumentar de forma assustadora, mas consolava-a o facto de poder ter descoberto algo…
Nesse dia em particular o ambiente ficara ainda mais carregado, pois algumas das Incidências tinham tocado colegas seus, que não dispondo da sua resistência, ou de mecanismos de que lhes permitissem continuar funcionais, meteram baixas de diversos tipos (de luto, psiquiátricas, de apoio a familiares etc…) o que aumentou uma carga de trabalho já de si significativa…
Mas uma dessas Incidências tocara-lhe bem fundo, mais fundo do que poderia supor ser possível…:
Enquanto não tinham filhos, ela e o marido idealizavam naturalmente o filho que iriam ter, ou que poderiam ter, tendo um modelo de tal, no corpo e no espírito de Albert.
Albert era o filho mais novo de uma colega e amiga sua.
Albert tinha apenas 11 anos, e parecia o “puto perfeito” como lhe chamava carinhosamente o marido, na figura de uma criança de olhos bem castanhos, cabelo teimosamente sempre despenteado, e numa personalidade que misturava uma natural simpatia e docilidades com uma irreverência bem personalizada, tornando o conjunto global encantador.
Albert era uma criança como todas as outras, com os defeitos e virtudes de crianças como ela, mas que nunca dera grandes problemas aos seus pais, tanto na escola como em casa.
Noutras circunstâncias o facto de ser uma Incidência seria estranho, e sujeito a aturada investigação, mas não naquela altura, pois seguia o padrão de todas as Incidências: pura e simplesmente não possuía uma explicação, e como havia imensas outras Incidências esta não mereceria uma atenção diferente das outras.
No entanto a morte de Albert aumentou ainda mais a determinação de Hanna em arranjar uma solução o mais depressa possível.
Para que não existissem mais “Alberts” ou maridos desaparecidos estupidamente, ela teria de arranjar uma explicação, e logo de seguia a respectiva solução, ou cura para aquela doença terrível…
E para sua grande surpresa, para seu enorme alívio, quando chegou a casa tinha finalmente Algo a que se agarrar no meio daquele todo desespero:
Um dos computadores confirmou a sua ideia de que a explicação escondia um código…
As palavras sem nexo tinham dado lugar não a palavras com nexo, com a resposta, mas a um simples mapa.
Nesse mapa vinha assinalada uma cidade, e nessa cidade um edifício em particular, e nesse edifício uma parte dele que toda a gente desconhecia existir.
A cidade era uma das mais antigas do Continente, que em tempos há muito idos fora a Capital deste, mas que passara a ser mais um objecto de curiosidade histórica e turística do que uma cidade propriamente dita, pelo menos na forma moderna com que era entendida uma cidade. O edifício, uma velha biblioteca, hoje semi-abandonada, não o sendo de facto, e muito menos ter sido destruída porque alguns saudosistas influentes impediram tal. E no mapa vinha uma parte que Hanna (e ela pensou que mais ninguém…) pensara existir, um piso subterrâneo que ela pensou remontar ao principio dos tempos e que por isso caíra no mais absoluto dos esquecimentos, apagado da memória dos homens, e até mesmo dos registos destes.
O facto de se situar a vários milhares de quilómetros dali além de ficar noutro país, não representava qualquer tipo de entraves: desde há imenso tempo que havia acordos de livre circulação total de pessoas se tal se justificasse.
Era o caso de Hanna, que bastava revelar ao seu chefe indicado que estava a investigar uma pista das possível origem das Incidências para este lhe passar a respectiva autorização, fazer os telefonemas devidos e a vida dela seria de tal ordem facilitada que até poderia ter livre acesso à biblioteca e ao que quisesse nela procurar sem que ninguém a estorvasse com o que quer que fosse…
Mas tais facilidades não eram devidas só aos acordos, apesar de ninguém lho ter revelado claramente, Hanna sabia que o assustador Carácter Global das Incidências incutia já um tal terror, que se aparecesse alguém nem que fosse com um esboço de um plano para as travar, esse alguém teria carta branca para fazer o que quer que fosse…
Não sabendo o que iria encontrar, e por isso não querendo defraudar as expectativas de quem quer que fosse, além de por norma não gostar de revelar pormenores do seu trabalho, só gostando de apresentar os resultados de tal quando finalizados, a sua boa folha de serviços e competências reconhecidas, faziam com que confiassem de tal forma nela que a tal carta branca lhe foi dada sem qualquer tipo de hesitações…
Em pouco tempo estava pois a bordo de um avião, e em menos de um dia encontrava-se num hotel da cidade em questão, disposta a começar a sua investigação.
A cidade em si era pouco mais que um museu vivo mas algo negligenciado, bastante antiga, parada no tempo de certa forma, e de certa forma esquecida, não o sendo completamente pelo facto de outrora ter tido uma enorme importância, ter sido de certa forma a precursora da actual vitalidade cultural e industrial do Continente, criando assim de certa forma uma divida de gratidão que fazia com que algumas verbas fossem para elas canalizadas, impedindo o seu ocaso absoluto. A memória de facto existia, mas a memória só o é enquanto as gentes fazem bom uso dela, e as gentes preferiam viver o momento presente e o futuro, o passado pouco significado tinha de facto…
Por isso a cidade era habitada sobretudo ou por velhos ou por funcionários destinados a manter esta preservada. Jovens, havia apenas aqueles que passavam as férias com os avós ou eram filhos dos tais funcionários.
Como o seu trabalho começaria no dia seguinte, decidiu sair um pouco, para desanuviar, bebendo um copo no bar mais próximo, ou mais frequentado.
Mas reparou em algo perturbador, enquanto passeava pelas ruas quase vazias: ao vazio natural de uma cidade com aquelas características, sobrepunha-se outro, o vazio que começara a ser norma: o vazio da existência não assumida das Incidências.
O mesmo cenário de medo interiorizado mas jamais exteriorizado, e ela sabia, como em qualquer outro lugar que todas as pessoas tinham ou conheciam alguém com uma Incidência…
E de facto o ambiente era algo surreal…
As pessoas ou se encontravam metidas consigo mesmas, ou eram extrovertidas, tendo a atitude de “viver os últimos dias do melhor que se pudesse” que caracteriza algumas civilizações no seu ocaso…
Em certos bares bebia-se pois em silêncio, não se ouvindo nada, a não ser o som da música ambiente, ou o barulho dos copos nas mesas ou no balcão.
Noutros, uma minoria, é certo, a intensidade era de tal ordem que o som de música, de pessoas invadia as ruas e até os outros bares taciturnos, num apelo misto de repulsa por tal, ou de uma vontade de se entrar e de viver daquela forma…
Foi o que fez Hanna sem hesitar…
Sentiu um estranho apelo, sentiu que deveria viver daquela forma, pelo menos antes de se inteirar daquilo que pensava serem algumas respostas dai a algumas horas…
Deu então consigo no meio de estranhos e de estranhas que mal o primeiro copo foi bebido passaram a serem bons conhecidos, deu consigo a rir-se de forma audível, a falar de forma descontrolada de tudo o que não fosse importante, a dançar, a beber, tudo de forma compulsiva e a uma velocidade que lembrava tempos mais inocentes e mais distantes, os tempos da adolescência e da entrada no mundo adulto, sentindo-se então uma absoluta principiante de uma vida que tinha dissipado toda a sua beleza, toda a sua ternura e que se revelava agora de uma amargura perfeitamente transcendente, mas que ela se recusava a encarar de tal forma, sendo que se calhar por isso, e pelo espírito de sentir estar a viver os últimos dias, que se esqueceu de quem era ou quem fora durante anos, foi por isso que os contactos entre estranhos foram bem longe, e num repente estava na cama de um deles, abandonando de vez a sua racionalidade de quase sempre, e entrando de forma livre no domínio das sensações, puras, extremas, onde ao olhar para um homem teve vontade de fazer sexo com ele, e fez, considerações morais ou éticas deixadas de lado porque pura e simplesmente não lhe serviam para nada, prazer pelo prazer, puro hedonismo ou porque pura e simplesmente nada sentia de facto ter a perder…sentiu que era usada, mas sentiu que usava, sentiu-se livre, e ao mesmo tempo prisioneira, sentiu muitas coisas, muitas delas contraditórias, mas sentiu, o que naqueles tempos era um luxo, o derradeiro luxo a que tinha direito ou acesso…
E quando a manhã começou a despontar, saiu daquele quarto, daquela casa anónima sem nada dizer, pois nada se tinha passado de facto…
Foi ao seu Hotel, tomou um banho, vestiu roupa lavada, e dirigiu-se à Biblioteca, sentindo que nas horas anteriores tinha vivido mil anos em meras horas…
A Biblioteca tinha apenas um guarda de aspecto sonolento e desmazelado, que pouco faria para objectar a sua entrada, mas como tinha recebido um telefonema na véspera a alerta-lo para a presença de Hanna, ainda deixou esta mais à vontade, facultando-lhe um armário onde estavam guardadas dezenas de chaves, de dezenas de salas ou de anexos, deixadas praticamente ao abandono.
E ela ficou de facto desiludida, pois aquele centro de saber outrora lendário estava num estado lastimável, quase decrépito…
Um edifício enorme, mas apenas com um piso, imensas salas, todas fechadas, com livros a apodrecer pela falta de cuidado em os preservar, e nem presença da indispensável rede informática moderna, indispensável a qualquer tipo de estrutura semelhante…
Mas por muito aliciante que parecesse a pesquisa naquele local, pelas indicações do mapa, o seu motivo de interesse deveria ser outro, o tal piso subterrâneo que supostamente não existia, não vinha sequer na planta oficial da Biblioteca que numa antiga sala de exposições estava em grande destaque.
Mas se o seu mapa o dizia…
Era uma mera questão de encontrar a porta de acesso, o que não seria fácil, pois se o tal piso não existia de forma oficial, esta encontrar-se-ia escondida, ou oculta…
Para não perder demasiado tempo com tal, imaginou-se na pele de quem esconderia tal acesso, e onde ele poderia estar…
O que não era uma ciência, ou um exercício brutal de imaginação, bastava seguir uma determinada lógica…
E a lógica de tão absurda, de tão linear revelou-se de uma simplicidade absurda…:
Por detrás do maior dos armários, preenchido com livros, estava essa porta…Claro que para ter acesso a ela teve que esvaziar o armário sozinha, pois o guarda não lhe inspirava qualquer tipo de confiança, teve que arrastar o armário fazendo recurso a forças que descobriu ter na altura.
E a chave encontrava-se entre imensas outras no tal armário indicado pelo Guarda, sendo que era uma questão de achar a chave certa…
Noutra época, há muito ida, desaparecida, essa porta tinha servido com alguma regularidade, pois se não o fosse, tal estaria escondida de uma tal forma que Hanna nunca daria com ela…
Mas essa época era distante, imensamente distante, a avaliar pelos sinais de envelhecimento, mas por qualquer motivo que desconhecia o acesso teve que ser disfarçado com os parcos meios disponíveis…
Adivinhando que o piso em questão pela sua antiguidade não teria iluminação eléctrica, recorreu a uma lanterna que achou numa arrecadação.
Desceu vários lances de escadas, e deu consigo a recuar no tempo, mais do que imaginava, centenas de anos, muitas, e se calhar até mais do que isso, dando consigo por fim num enorme corredor, que lhe deu estranhas sensações e a deixou estupefacta, e sem saber o que pensar…:
Pelo envelhecimento da construção, esta deveria ter mais de mil anos, pelo envelhecimento, mas o seu aspecto era moderno, surpreendentemente moderno…Se alguém limpasse aquele espaço, este facilmente se confundiria com uma habitação do género da actualidade…
Perfeitamente baralhada, não sabia o que pensar, mas o instinto de um individuo educado da forma tecnológica como ela foi, fê-la procurar de forma instintiva uma tomada de luz, que achou, e que funcionava…
E de repente uma construção milenar estava iluminada, bastante iluminada, por luz eléctrica moderna, e lâmpadas…milenares…
Tal desafiava qualquer tipo de lógica, mas longe de ser lógicas eram as Incidências…e havia uma certa lógica do absurdo no meio daquilo tudo…: se aquele era o local onde iria encontrar respostas para a eclosão das Incidências, tudo batia estranhamente certo…
Mas essa parte da biblioteca nada tinha…esse piso nada tinha…apenas um gigantesco corredor no fundo do qual se encontrava uma secretária com aquilo que parecia ser um Computador…
De um modelo que nunca vira, nem nas revistas de computadores mais antigos, nem em museus onde os primeiros exemplares de computadores ocupavam lugares de honra…
Mas…
Os primeiros computadores eram máquinas enormes, ao passo que aquele tinha as dimensões reduzidas de um modelo actual…
Tirando o aspecto envelhecido, ele parecia actual, diferente de tudo quanto conhecia, mas actual….
Esse computador não era suposto existir, mas…
E como naquele piso nada existia, a resposta para as Incidências estaria, teria que estar naquele Computador…
Interiorizando o tal absurdo, acreditou que o Computador tinha a idade que tinha, e entrando na lógica teria que o ligar, o que não foi uma tarefa propriamente difícil…: esse computador era constituído pelo indispensável ecrã e por uma caixa rectangular, ambos os elementos semelhantes aos seus conhecidos…E se assim o era, o botão de ligação foi fácil de encontrar…
E mal o ligou entrou num mundo do absurdo ainda mais distópico, um mundo de demência aparente mas que mostrava a mais chocante realidade…
Mal o ecrã se ligou um pequeno filme com imagens e fotos desfilou perante os seus olhos espantados, incrédulos…
Estava ali a verdade da raça humana, de toda a espécie humana no seu planeta que afinal não o era…:
Há mais de mil anos a humanidade, o que dela restava, saíra do seu planeta original denominado “Terra” que entrara em colapso energético e climatérico, obrigando os que tinham conseguido sobreviver a uma série de catástrofes em cadeia a procurar um novo planeta de forma a impedir toda a extinção da espécie humana.
E assim chegaram ao planeta de Hanna, prosperando e reerguendo quase das cinzas uma espécie moribunda.
Como o regresso era impossível, destruiu-se toda a frota espacial que levara a humanidade até ali, de maneira a evitar tentações tontas…
E construi-se uma nova história, dando a impressão à humanidade que o seu planeta sempre fora aquele…
Mas tal acarretava um risco que o autor desconhecido daquele filme alertava poder ir acontecer…
Um dia a raça humana teria uma necessidade instintiva de regressar ao berço ao local onde tudo começara, de regressar à Terra que ou não existia já, ou não tinha condições para receber a raça…
Como tal regresso era impossível, dar-se-ia um processo designado por Anomia, de suicídios instintivos em massa de forma epidémica de toda a população humana a partir da idade da razão, a partir dos 7 anos…
Um desespero inconsciente tomaria conta de todos os seres, um desespero que eles não sabiam ter e muito menos assumir, pelo que a saída para o tal desespero era o tal suicídio…a tal “Epidemia de suicídios “ que alguém profetizara no Ensaio ir acontecer, e que estava de facto a acontecer…
E de seguida uma cópia, o documento original de onde tinha saído o Ensaio…
Hanna compreendeu então tudo…Tudo…
Quando a humanidade chegara àquele planeta, e enquanto se estabelecia, enquanto se reerguia, Alguém pressentira que um dia a humanidade quereria voltar, e como tal não poderia ocorrer…provavelmente numa tentativa desesperada de tentar que alguém achasse uma solução, escreveu o Ensaio, codificou o local de onde vira e programou este para entrar na Rede quando esta fosse activada…e alguém encontrou esse Ensaio, imprimiu tal e fê-lo circular clandestinamente, enquanto outro alguém o apagava da rede…
A equipa que o apagara da rede tentava que a verdade não se soubesse, achando que se calhar outras soluções seriam achadas e o problema resolvido…
Mas Hanna sabia agora que não havia solução para as Incidências…
Alias, havia uma, o regresso, mas mesmo que se arranjasse toda uma frota de naves, tal demoraria anos, anos que a humanidade não tinha, pelo aumentar rápido das Incidências…Mas mesmo que arranjasse a frota, a Terra nunca mais poderia receber a humanidade…
E a humanidade poderia alcançar coisas notáveis, fantásticas mesmo, mas nada poderia fazer contra a genética, contra o apelo genético, e este dizia-lhe que Tudo acabara…
Hanna compreendeu…
Como um ser pensante que o deixara de ser, deixou o computador ligado, deixou aquele piso, passou pelo Guarda sem o ver, e de forma instintiva escolheu a estrada movimentada mais próxima, colocou-se no meio dela e esperou que algo acontecesse…
Miguel Patrício Gomes
Conto vagamente baseado numa ideia tida a meio da década de 90