Gênesis - Parte 3

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Delirante e furioso, Cain enxergava apenas inimigos diante de seus olhos e, como uma força da natureza cruel e destrutiva, ele levou a morte a todos os seus inimigos, fossem eles reais ou apenas fruto de sua paranoia descontrolada. Ah, como via tudo mais claro agora! Como havia podido ser tão cego por tanto tempo! Eram eles, os covardes, os traidores, haviam sido eles que tinham impedido a vitória rápida e definitiva sobre aqueles malditos animais! Eles é que defendiam que podia ser possível qualquer tipo de acordo com aquelas bestas irracionais, graças a eles a guerra não havia começado quando estavam em vantagem, eles haviam insistido no acordo, eles haviam dado tempo para que os animais se preparassem, eles! Os malditos covardes!

Covardes iguais a Abel

Como odiava Abel! Como queria trazê-lo de volta a vida apenas para poder cortar novamente sua cabeça covarde e sabotadora!

Cain olhou para trás, viu seus homens, seus fiéis seguidores, eles espalhavam a morte e o caos, lavando as ruas de Jericó com o sangue dos covardes. Graças a ele, a raça humana estava sendo purificada, expurgada de todos os fracos, indecisos e indolentes. Em sua nova ordem, havia espaço apenas para os fortes, na raça humana que começava a construir naquela noite de glória, apenas os mais poderoso poderiam prevalecer e, por isso, toda a fraqueza tinha que ser expurgada do mundo. Ele havia liberado seus cães de guerra e agora somente iria parar quando o último traidor da humanidade parasse de respirar sob o fio de sua espada.

Marchando pelas amplas ruas de Jericó, Cain e seus guerreiros logo chegaram aos arredores da grande praça central onde se localizava o gigantesco complexo do palácio real, Cain sabia que somente controlaria a cidade quando tomasse o palácio, porém, contrariando suas expectativas a escadaria principal não estava desguarnecida, diante da entrada principal do palácio estavam Adão e Lilith, o rei e a rainha armados e equipados, a frente dos cinco mil soldados da guarda pessoal do rei. Ele olhou para o quadro que tinha diante de si e, com um sorriso nos lábios, se adiantou ordenando que seus cães de guerra aguardassem.

Lilith olhou para o filho e foi com o coração carregado de pesar que contemplou a sua figura. Seus olhos estavam carregados de loucura e ódio; seu rosto era uma máscara de ironia e violência e sua armadura, sempre brilhante e imponente, estava coberta de placas de sangue endurecido e marcada por golpes antigos a muito desferidos e uma ou outra placa preta indicando acúmulo de carbono de batalhas passadas. Completando o quadro terrível, Cain trazia ao pescoço um colar confeccionado com uma grossa tira de couro cru e mãos decepadas de algumas de suas vítimas naquela noite de loucura e horror.

“Mãe, Pai! Que alegria vê-los de novo!”

“Basta Cain” - Disse Lilith, com mais sentimento do que desejava - “Chega dessa loucura, desarme seus homens e lhes dê ordens para retornar a caserna”

“Não”

“Como se atreve!?” - Disse o grande rei Adão, se aproximando também do filho, em postura muito mais beligerante do que desejava a princípio - “Eu sou teu pai, eu sou teu Rei e te ordeno: depõe armas e enfrenta a minha justiça pelos crimes que cometeu”.

Cain aproximou-se lentamente de Adão com a mão ameaçadoramente pousada sobre o cabo da espada e a beligerância estampada em seus olhos, todos os seus movimentos exalavam a fúria e demonstravam que, apenas a muito custo, conseguia deter a onda de violência que ameaçava explodir em seu peito a qualquer momento.

“Você é o criminoso pai, foi a sua fraqueza ao aceitar que essa mulher tomasse o seu lugar e iniciasse negociação com essas feras que nos rodeiam que nos trouxe a essa guerra sangrenta ao dar tempo para que as feras se preparassem para o combate. Foi a sua lascívia ao preferir se deitar com a serviçal ao invés de governar aos homens, como Jeová havia instruído, que fez com que essa guerra se alastrasse por tanto tempo. Foi sua lassidão que o levou a colocar Abel no governo da cidade, que fez concessões inaceitáveis as criaturas, e nos enfraqueceu a esse ponto”.

Até aquele momento havia algo na aparência geral de Cain que perturbava Lilith porém não sabia dizer exatamente o que era, é claro que sua aparência de um modo geral era chocante e intimidadora porém havia algo mais, algo além naquela situação toda a que a perturbava muito mais mas que ficava apenas na periferia de sua percepção como um a sombra distante difusa que não conseguia classificar ou qualificar com facilidade. Quando Cain falou o nome de Abel, repentinamente ela soube o que era e o horror invadiu a sua alma quando percebeu, na mão morta que ocupava a posição central no colar que ele trazia no pescoço, o anel que simbolizava a autoridade de Abel enquanto Chanceler de Jericó.

“Por Jeová Cain! Onde está seu irmão? Que fizeste com ele?”

“E por acaso sou eu o guardião de meu irmão agora?”

Ao ouvir a conformação de seu receio, Lilith sentiu a força fugir de suas pernas e uma vertigem terrível se apoderar de seus sentidos. O mundo começou a girar ao seu redor e, não tivesse sido amparada por Adão, teria desfalecido sobre o chão, bem ali entre os dois exércitos.

“É um monstro! Uma aberração!”

Adão acomodou a rainha na escadaria o melhor que pode e levantou-se voltando a encarar o filho que observava toda a cena com o humor variando do divertido ao francamente beligerante. Ele deu um gesto a sua guarda pessoal que se pôs imediatamente em prontidão, fazendo com que o confronto estivesse próximo a se iniciar.

“Chega Cain, Basta! Deponha as armas e se entregue”

“NÃO! Entregue-me você o governo de Jericó e parta para o exílio com sua mulher, sua amante ou com as duas, pouco me importa!”

Os piores massacres geralmente são deflagrados por algum detalhe insignificante que, devido a situação geral, acaba ganhando uma proporção muito maior do que teria originalmente. Assim sendo, o detalhe que antes sequer seria notado, passa a ser o elemento decisivo entre a vida e a morte para milhões. Nesse caso específico, foi um gatilho frouxo devido a uma mola de acionamento que havia perdido a pressão com o passar dos anos e o uso contínuo.

A esse primeiro disparo acidental seguiram-se muitos outros e, após breves segundos, a batalha já irrompia selvagem nas escadarias do imponente palácio real de Jericó, os homens matavam e morriam com a mesma facilidade e seus corpos sem vida logo foram em número suficiente para ocultar o próprio chão onde transcorria a batalha, formando um terrível e irregular tapete de carne morta banhado com sangue.

Ainda que destreinadas e acostumadas a vida indolente do palácio real, as tropas de elite que guardavam o rei e a corte eram o que havia de melhor nos exércitos dos homens e, por isso, conseguiram combater os veteranos de Cain, calejados devido a longos anos de guerra ininterrupta, em igualdade de condições. Os dois exércitos chocavam-se um contra o outro como ondas de um mar revolto explodindo contra a praia e, de seu enfrentamento, apenas a morte foi glorificada e apenas os urubus e corvos se favoreceram.

Durante horas a batalha foi selvagem e devastadora pois, desesperados e em pânico, muitos dos sobreviventes do expurgo de Cain também vieram para as ruas e se viam envolvidos no sangrento combate que, pouco a pouco, se assemelhava mais a um festival de crueldade e caos do que a um embate entre duas forças militares. A rigidez das formações foi se perdendo, a hierarquia foi sendo ignorada e, em pouco tempo, não haviam mais lados ou facções perceptíveis; todos atacavam a todos tendo como única motivação nada além do puro e simples extinto de sobrevivência.

Lilith lutava como a rainha guerreira que era, filha de reis e príncipes que desde de muito tempo antes de a vida surgir no planeta que agora abrigava a raça humana, já faziam da guerra sua principal ocupação. Movia-se com a graça e a delicadeza de uma dançarina e com a precisão mortal de uma serpente, distribuindo a morte como se fosse a própria encarnação da morte em si.

Cain avançava pelo campo de batalha como um animal enfurecido, ele havia se transformado em uma força da natureza, feroz e incontrolável, destruindo a tudo e a todos que atravessassem seu caminho construído com sangue e aço. Quis o destino que, a trilha que o filho abria o conduzisse diretamente para a mãe e, sendo assim, o objeto irremovível iria se encontrar com a força irrefreável.

O resultado seria devastador para ambos.

Tomados ambos pelo furor da batalha, nem Cain nem Lilith tiveram consciência que se aproximavam um do outro até o momento em que, sentindo-se ameaçada pela proximidade de um inimigo, a rainha dos homens ergueu sua elegante espada e, realizando um rápido giro de corpo que a maioria dos mortais teria dificuldade de acompanhar com os olhos, golpeou de forma violenta e precisa o pescoço do próprio filho que, após se manter de pé por alguns poucos segundos, acabou desabando sem vida e desarticulado como uma marionete que teve seus cordões subitamente cortados. Era o fim da loucura de Cain, o fim do caminho sangrento que ele alegremente havia trilhado até o amargo fim.

Por um capricho de forças superiores a compreensão limitada dos humanos, a cabeça de Cain rolou pelas escadarias do palácio indo parar aos pés do grande rei Adão, que lutava contra um dos comandantes das forças de seu filho. Lutando contra o choque inicial que a imagem lhe provocou, Adão pegou a cabeça do filho pelos cabelos e a ergueu diante dos olhares atônitos dos homens que o haviam seguido em sua loucura.

“Eis o seu senhor!” - berrava Adão para as tropas inssurectas de Cain que, ao ver a cabeça de seu marechal nas mãos do grande rei haviam perdido todo o ânimo para continuar com a insanidade da guerra para qual haviam tão alegremente marchado. - “Vocês juraram lealdade a mim e, ao seguirem meu filho em sua insensatez acabaram por se tornarem perjuros. Não os aceito mais como meus homens, de modo que agora somente lhes cabe acompanhar seu novo mestre até as profundezas que ele agora trilha”.

Por alguns segundos, os soldados de Cain ficaram olhando imbecilizados para o grande rei porém logo a compreensão do significado de suas palavras alcançou suas mentes, compreensão essa que foi seguida pelos sons de milhares de espadas sendo desembainhadas em uníssono e pelo de milhares de vozes unidas em um só clamor.

“CAIN!” - Berraram todos os homens que o haviam seguido em sua loucura de dez anos e pelas trevas daquela noite sangrenta, antes de se imolarem com suas próprias armas. Era o fim, o último sangue havia sido derramado e, agora, restava apenas o pesar e a perda daqueles que haviam sobrevivido ao horror.

Lilith olhou para os restos mortais de seu filho e, sem forças, caiu de joelhos diante deles, vertendo sofridas lágrimas de dor e sofrimento. Sofria a pior das dores, a dor de viver além dos próprios filhos e, principalmente, a dor de saber que havia sido a sua própria mão, a mão que anos antes havia embalado o sonho de suas crianças, que havia extirpado o sopro vital de sua cria.

Então, o mundo acabou.

16

No princípio ouvia-se um ruído muito leve, uma espécie de zumbido fraco mas constante que, no entanto, acabava ficando perdido em meio aos sons muito mais agressivos e rascantes do combate que se desenrolava diante do palácio real. Aos poucos, o zumbido foi ficando mais alto, ganhando força e forma, ampliando-se até que parecesse não haver nada mais além dele no universo inteiro. Era o som de algo grande e poderoso demais para ser contido pela realidade em si que esgarçava o tecido do universo com sua simples existência.

Era a voz de Jeová que se fazia ouvir novamente.

HOMENS, OUÇAM – Bradava Jeová cuja a voz não parecia vir de lugar algum, ao mesmo tempo que parecia estar presente em cada pedra, grão de poeira e ser microscópico suspenso naquele ar impregnado como odor da morte. Combalidos pela orgia de destruição a qual haviam participado direta ou indiretamente, muitos simplesmente caíram em choro histérico ao escutar a voz de Jeová, outros tantos pediram perdão pelos erros de suas vidas e imploraram por uma clemência que, no fundo de suas almas, sabiam não existir.

A HUMANIDADE SE TORNOU SUICIDA, AMEAÇANDO NÃO APENAS SUA PRÓPRIA EXISTÊNCIA COMO A VIABILIDADE DO PLANETA – LAR. MEDIANTE O QUADRO ATUAL, A ÚNICA FORMA DE GARANTIR A SUA SOBREVIVÊNCIA É PERMITINDO QUE O MUNDO SE CURE DOS DANOS QUE SUAS AÇÕES PROVOCARAM.

Envergonhados, homens e mulheres olhavam uns para os outros e logo desviavam o olhar para o chão ou para o céu, incapazes de suportar o peso de suas culpas por muito tempo final eles haviam ganhado o paraíso de presente e quase o destruíram. O ar encheu-se de um cheiro de ozônio e a voz de Jeová tornou a retumbar por todos os lugares ao mesmo tempo.

AINDA NÃO É CHEGADO O TEMPO DOS HOMENS E, SENDO ASSIM, TERÃO DE ESPERAR ATÉ O MOMENTO EM QUE, O QUE FOI PREDITO, DEVERÁ SE CONCRETIZAR.

Jeová consumia o pouco que ainda restava de energia em seus circuitos lógicos já quase que completamente deteriorados porém conseguiu manter sua voz firme e seu pensamento com razoável clareza por tempo o suficiente para fazer o que era preciso para assegurar a sobrevivência da raça humana e a permanência do mundo-lar. Após suas palavras terminarem de reverberar, uma enorme estrutura metálica ergueu-se na praça central de jericó, esmagando os corpos daqueles que perderam suas vidas durante a loucura de Cain. Ela tinha forma cilíndrica, quinze metros de altura e quase sessenta metros de raio, com uma gigantesca porta dupla, dominando aquilo que parecia ser a parte dianteira da estrutura. Quando a estrutura estava completamente visível, a voz de Jeová fez-se ouvir pela última vez sobre a Terra.

ENTREM.

A princípio, os homens olhavam temerosos para a estranha construção de propósito misterioso porém, timidamente a princípio e, em seguida, com mais confiança, o que restava da humanidade começou a marchar para as entranhas de Jeová, confiando sua existência a ele uma vez mais. Adão, ainda atordoado com tudo o que acontecia, mal percebeu quando Eva, que havia se arrastado de volta para cidade, se esgueirando por becos escuros e vielas, tentando evitar a loucura do combate que consumia as ruas de jericó, colocou sua mão quente e macia sobre seu ombro, fazendo-o se virar para olhá-la.

“Venha, meu amor, nós temos que ir”

“Nós temos? Temos mesmo? Precisaremos voltar para o frio e as trevas?”

“Sim amor, mas dessa vez estaremos juntos” - Eva vertia lágrimas de pura alegria ante a perspectiva - “Estaremos juntos e sem nada que se interponha entre nós”.

Ainda hesitante, sem saber muito bem o que fazer, indeciso sobre o rumo que deveria tomar, Adão acabou se deixando conduzir para a estrutura. Quando estavam quase chegando a enorme portal diante do gigantesco cilindro, Adão viu Lilith ainda ajoelhada sobre o corpo morto de Cain e, se desvencilhando dos braços de Eva, foi em direção a sua ex-esposa.

“Venha, temos que ir”.

Pela primeira vez desde que havia se tornado consciente de que era a única responsável pela decapitação do próprio filho, Lilith levantou os olhos de seu corpo sem vida e , em seu rosto, não havia rancor ou ódio, havia apenas dor e vazio.

“Não há nada ali para mim, permaneço com meus filhos”.

“Jeová nos chama, venha, por favor” - Adão pareceu lutar contra seus sentimentos por alguns momentos, como se estivesse procurando em sia as palavras corretas que expressassem o que queria dizer - “Não posso viver sem você”.

Eva acompanhava a cena a distância, permaneceu em silêncio porém , em seu coração, berrava a plenos pulmões, e sentia seu espírito ser oprimido pelo peso de um sentimento que parecia torná-la insignificante. Lilith olhou para Eva e soube enxergar em sua alma todas essas emoções que a dilaceravam e, ao enxergar o vácuo que preenchia seu próprio espírito, por um momento sentiu inveja de sua rival mas, logo se alegrou pois percebeu ali uma chance de recomeço para o seu povo.

“Vá Adão, vá com Eva e a ame como ela o ama. Vá e seja o rei que nós dois sabemos que você pode ser e me deixe aqui com meus filhos”

Adão ainda tentou protestar porém o alto som de estalos elétricos e microfonia vindos da enorme estrutura metálica para a qual a população de Jericó marchava atendendo ao chamado de Jeová. Não havendo mais nada a ser dito, Adão e Eva começaram a caminhar juntos até a estrutura e , sem olhar novamente para trás, cruzaram seus amplos umbrais sendo os últimos a entrar na estrutura. As portas de fecharam após a sua passagem e, lenta e ruidosamente, a enorme estrutura voltou a se afundar no chão da praça central, sumindo nas entranhas de Jericó.

Então, tudo ficou em silêncio.

EPÍLOGO.

Lilith ficou durante um longo tempo com a cabeça de seu filho mais velho acomodada em seu colo, velando seu sono mortal, completamente imóvel enquanto os dias e as noites sucediam-se em seu ritmo regular e inflexível. Aos poucos, as impressionantes muralhas que durante décadas haviam protegido as pessoas em Jericó foram se deteriorando sem ninguém que as conservasse e, com o tempo, a putrefação dos mortos concluiu seu ciclo e o seu odor acre abandonou a cidade.

Durante anos, os descendentes das tribos evitaram as ruínas de Jericó que associavam a toda dor e sofrimento de suas vidas. A maioria regrediu a um estado animalesco e um pequeno grupo, liderado por Jobrutudes, tentou percorrer novamente o longo caminho rumo a civilização, na vã tentativa de reconstruir as tribos e sua cultura e sociedade. Um dia, motivado por razões que eram misteriosas até mesmo para ele, Jobrutudes resolveu voltar as ruínas de Jericó. Já estava velho e, em breve, deitaria-se e esperaria pela chegada do ceifador, aquele que o conduziria rumo a Maat, onde reencontraria seus entes queridos e pessoas amadas ou, pelo menos, assim esperava.

Caminhou pelas ruas que um dia havia percorrido como líder da delegação das tribos, trazendo as boas novas da paz para ambos os povos e se entristeceu ao perceber o quanto a decadência havia corroído o pouco que havia restado da civilização dos umonos até que, nas escadarias diante das ruínas do antigo palácio real de Jericó, encontrou Lilith, ainda sentada e embalando o crânio de seu filho, agora pouco mais do que uma caveira, em seu colo. O velho se aproximou da antiga rainha dos homens e se inclinou em sinal de respeito.

“Salve Lilith, rainha dos umonos”.

Pela primeira vez em décadas, Lilith levantou sua cabeça e olhou nos olhos antigos e bondosos do ancião das tribos e, mesmo desacostumada e com a alma dilacerada, ainda encontrou forças em si para sorrir e devolver a cortesia de Jobrutudes.

“Salve mestre Jobrutudes, que seus dias sejam ensolarados e suas noites frescas”.

Jobrutudes se alegrou com a gentileza e se posicionou ao lado da rainha. Ele respirou e, mesmo involuntariamente, estremeceu devido ao forte cheiro de morte que ainda pairava sobre aquele lugar, mesmo passados tantos anos do fim da guerra.

“Seu povo está bem, logo ele retornará e herdará esse mundo de meu povo”

“Sim, eu sei. Mas eu não estarei mais aqui quando isso acontecer”

“Verdade”

Ficaram em silêncio durante alguns instantes, olhando para as ruínas em volta sem saber exatamente o que dizer.

“O luto por seu filho já durou muito. Está na hora de se desapegar e seguir em frente minha senhora”

“O luto nunca me deixará, o vazio me consumiu”

“Minha vida chega ao fim. Deixarei esse mundo e minha obra seguirá inacabada, as tribos não estão mais próximas de se tornar uma realidade agora que estavam a décadas atrás”

“Eu lamento ouvir isso. Mais uma culpa para minha dor”

“Me ajude”

Lilith olhou para o ancião e seus olhos se encheram de curiosidade

“Ajudá-lo?”

“Preciso de você, preciso de sua sabedoria para dar continuidade ao meu trabalho quando me for”

“Mas eu não não sou das tribos”

Jobrutudes olhou para Lilith e a encarou por alguns instantes. Após isso, falou com uma voz serena e tranquila.

“Ninguém é perfeito”.

Pela primeira vez em décadas, se ouviram novamente risos nas ruínas de Jericó.

Fabio Campello
Enviado por Fabio Campello em 10/05/2011
Código do texto: T2961409
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