Gênesis - Parte 2

7

Nunca antes ou depois, ao longo de toda a vasta história do mundo, se conseguiria reunir um exército tão imenso e imponente quanto aquele que se agrupava diante das colossais muralhas circulares de Jericó; Pela primeira vez, as doze tribos iam a guerra unidas.

De seu lugar de comando, a frente das legiões das tribos, Io sentia sua alma dividida por sentimentos conflitantes: por um lado sentia um grande pesar por ver todos os seus esforços no sentido de construir uma coexistência pacífica com os umonos caírem por terra mas, ao mesmo tempo, aquela parte primeva de seu espírito, aquele recanto primitivo que se alegrava com a matança e a caçada a presa indefesa, estava em júbilo antecipando a carnificina que logo consumiria o mundo nas chamas da guerra. Ao seu lado estavam os anciões das doze tribos, os mais antigos e poderosos representantes do povo que durante infinitas gerações havia dominado a terra sem que seu domínio, em momento algum, tive sido questionado até então. Io olhou nos olhos de seus pares e em todo os olhares ele viu refletida a mesma ambiguidade que sentia consumir a si mesmo, com exceção dos olhos de Saguento, ali ele encontrou apenas ódio e loucura, um desejo de morte que iria assombrá-lo até o momento em que sua última hora finalmente chegasse.

As gigantescas portas de Jericó se abriram, provocando grande excitação entre as legiões das doze tribos sendo que Io precisou recorrer a toda a sua autoridade e liderança para conseguir restabelecer a ordem. Da fresta do portão entreaberto da cidade, surgiu a família real dos homens, quatro figuras imponentes e régias que simbolizavam o que havia de mais mais poderoso naquela estranha raça. A frente do grupo estavam o rei e a rainha, ele vestindo uma imponente armadura de guerra completamente dourada e ela trajando um simples manto, adornado com poucas joias simples porém de extremo bom gosto. Seguindo-os estavam seus filhos: o Chanceler e o Marechal. Ao ver a aproximação dos líderes dos homens, Io e os anciões também se adiantaram, se encontrando exatamente no meio do caminho entre o exército das tribos e os muros da cidade.

Adão olhou o impressionante exército que se havia agrupado diante de seus portões e a igualmente comissão que havia se aproximado para iniciar as discussões e, por mais que tentasse impedir, não pode apagar por completo a expressão de espanto de sua face. Olhou para o filho, Cain, em busca de apoio mas apenas se assustou ainda mais com a expressão maníaca e sedenta de sangue de seu filho.

“Com que direito vem diante de meus portões com suas hordas” - Falou Adão para ninguém em especial. Io aproximou-se ainda mais do rei dos homens que precisou recorrer a todo o seu alto-controle para não tremer diante do maciço corpo que se adiantava com fúria e velocidade.

“Direito? DIREITO? Como você se atreve a me interpelar por direitos homenzinho!?” - Berrou Io que, com o passar dos anos, havia conseguido se tornar mais fluente naquela língua bárbara e rascante falada pelos umonos. - “ESSA É NOSSA TERRA! NOSSA!! Vocês são invasores! Vocês nos agrediram! Vocês e ninguém além de vocês!”.

O urro de indignação de Io reverberou longe pelo campo de batalha e logo foi acompanhado pelos gritos das dezenas de milhares de membros das tribos agrupados para a guerra e, tal foi a ira de seu brado, que as muralhas de Jericó tremeram ante seu poder. Adão apenas encarou em silêncio os exércitos das tribos e, quando se pronunciou, suas palavras foram frias e duras como o aço raspando mármore.

“Se é o que quer, criatura, então terei o máximo prazer em eliminar sua raça imundo da face desse mundo”.

Um grito de ódio seguiu-se as palavras de Adão e, antes que pudesse impedir, Io se viu completamente dominado pelo lado irracional de sua natureza animal. Impelido por eras de instinto bruto e selvageria latente, o imenso ancião da tribo bípede impulsional seu corpo maciço contra os senhores dos homens, escancarando mandíbulas cheias de presas afiadas que conseguiriam engolir de uma só vez toda a família real de Jericó porém, antes que conseguisse se aproximar o suficiente para isso, seu pescoço grande e musculoso foi projetado para trás como se tivesse sido deslocado por uma força invisível e irresistível. A mesma força, segundos depois, carbonizou o seu corpo transformando o outrora orgulhoso senhor das tribos em um montilho de cinzas dispersas. Aterrorizados com o poder dos invasores, o pânico começou a se espalhar entre as fileiras das tribos porém, nesse momento, uma outra voz repleta de ódio e rancor se fez ouvir acima de todas as demais.

“Covardes! Eles matam o primeiro em meio a negociações de paz e vocês fogem como filhotes assustados? É a isso que estamos reduzidos?” - Disse Saguento aos berros, instilando o seu ódio entre o povo das tribos para, em seguida, conclamá-los a ação - “Ataquem filhos das tribos! Matem até que os umonos sejam mortos, matem até que o ato de matar em si perca o sentido”.

Ao perceber o que acontecia, Cain pôs a mão no cabo da espada que estava presa a sua cintura e começou a desembainha-la porém seu movimento foi contido por Lilith que segurou o seu braço.

“O campo de força não vai segurar todos eles seu tolo idiota!” - disse enquanto puxava os dois filhos pelo braço, arrastando-os de volta para a relativa segurança das muralhas de Jericó. Indeciso entre o brutal instinto de sobrevivência que era tão caraterístico de sua espécie e a dignidade de seu alto título junto ao seu povo, Adão hesitou alguns segundos ainda antes de acompanhar a esposa e os filhos, porém a imagem terrível e brutal das hordas das tribos avançando contra ele logo o fizeram se decidir por abandonar a dignidade de seu título e buscar por segurança atrás das defesas de sua cidade.

As primeiras ondas do ataque das tribos se chocaram contra a muralha de energia que protegia a cidade e tiveram o mesmo destino trágico de Io porém, como Lilith já havia predito, o consumo de energia logo se tornou proibitivo e a muralha falhou, permitindo que os exércitos das tribos se precipitassem sobre Jericó como ondas se chocando contra um rochedo. As grandes baterias de artilharia montadas sobre as titânica muralhas da cidade humana logo começaram a responder as investidas das tribos com fogo, trazendo a morte e a perdição as centenas para os atacantes porém, de tempos em tempos, as legiões conseguiam perfurar as defesas e, ai, era o momento dos defensores chorarem seus mortos e contabilizarem os seus prejuízos.

A batalha se estendeu por todo o dia e, quando o sol se pôs no horizonte distante trazendo as trevas sobre um mundo entristecido pelo luto, chegou ao fim o primeiro dos muitos dias que seriam maculados pela guerra entre os homens e as tribos. Os corpos carbonizados e mutilados dos filhos das tribos que haviam perdido a vida nos combates, se estendiam além da linha do horizonte e os defensores humanos que perderam suas vidas defendendo os muros de Jericó eram enterrados em valas comuns pois seu número era tão vasto que logo se viu que não haveria tempo suficiente para a realização dos funerais adequados. O pesar oprimia o coração dos homens que, desesperados e sem a quem recorrer, ocupavam as ruas e direcionavam suas preces ao grande templo de Jeová

Pairando sobre a cidade, preenchendo com sua opulência praticamente toda a impressionante paisagem urbana de Jericó, o palácio real permanecia alheio a toda dor e desespero que se apoderavam das ruas da cidade. Dentro do imenso salão de audiências, utilizado pelo grande rei durante anos para ouvir as lamúrias e pedidos das pessoas comuns de Jericó, antigas rivalidades explodem de forma violenta e as estruturas já abaladas da família real finalmente vem abaixo de forma ruidosa.

“TUDO ISSO É CULPA SUA! SUA!” - Berrava Abel a plenos pulmões estendendo seu dedo acusador na direção do irmão - “Nós tínhamos um pacto, tínhamos paz! Por quê? Por quê meu irmão?”

“Paz? Que paz é essa conseguida através da humilhação? Pacto? Desde quando submeter-se e ser subserviente é um pacto?”

“Por que? Por que você atacou o berçário deles? Não havia nada lá que nem vagamente pudesse nos interessar! Por que Cain?”.

Abel estava a beira da histeria e Cain se mantinha estóico e digno como a estátua de algum antigo líder militar de outra era esculpida em bronze porém, a menção ao ataque ao berçário, pela primeira vez, abalou a confiança do marechal de Jericó e fez com que todos os olhos caíssem sobre ele.

“Sim Cain, eu sei, eu descobri a sua perfídia”

“Meu deus Cain” - Disse Lilith ainda atordoada com a revelação do crime cometido por seu primogênito - “Os pequeninos! Os não-nascidos! Isso vai contra tudo aquilo que Jeová nos ensinou. Ah meu filho! Como você pôde?”

Acuado, Cain começou a andar para perto da parede, com o olhar perdido de um animal selvagem encurralado, buscava pelo apoio do pai, o grande rei, porém apenas encontrou em seu olhar confusão e perplexidade. Como não tinha como se defender, Cain atacou.

“ELES SÃO ANIMAIS! Por Jeová! Vocês não conseguem ver isso? Olhem! Olhem para as pilhas de corpos na praça, veja o que essas bestas fizeram! Temos que esmagá-las! Tomar o que nos pertence! Esse mundo é nosso, essa foi a promessa de Jeová!”

“Eles nos atacaram por que você exterminou os seus filhos” - Disse Lilith com um desgosto indescritível na voz - “Eles foram provocados e, por sua causa, não há uma só casa em Jericó nessa noite em que pais não chorem por seus filhos e maridos por suas esposas. E você permitiu que tudo isso acontecesse” - Disse dirigindo seu tom acusador para seu marido, o grande rei, que até então ouvia a tudo atônito demais para fazer qualquer outra coisa.

“Como se atreve?”

“Me atrevo a o quê? Falar a verdade? Você é o primeiro homem, o coroado e ungido pelo próprio Jeová para ser o rei sobre todos os homens, o que mais você precisava Adão? Por quê você se sentiu sempre tão inferior? Por que permitiu que seu complexo de inferioridade nublasse seu julgamento e se deixou levar pelos argumentos desse cão que apelou a seus medos mais profundos como uma forma de garantir que você não o impediria de nos conduzir alegremente aos fogos da guerra novamente?”

“Cadela! Como se atreve?!” - Disse Adão impelido pela fúria na direção de Lilith que lhe deu um ruidoso tapa no rosto fazendo-o parar, lívido de surpresa, indignação e ódio.

“Não se aproxime de mim, nunca mais se aproxime de mim novamente” - disse Lilith recuperando seu auto-controle logo em seguida - “Vocês que criaram nosso sofrimento, que o conduzam agora da maneira que melhor os aprouver, eu vou para junto de meu povo, tentar amenizar sua dor nessa hora difícil” - Disse se ausentando do imponente salão logo em seguida, acompanhado por Abel que, antes de se retirar, arremessou sobre o rosto do pai as insignias que simbolizavam seu posto como chanceler.

“Sou mais útil em outro lugar”.

Adão permaneceu parado, incapaz de fazer ou dizer qualquer coisa pois sabia que nada o que dissesse seria capaz de dar vazão a torrente de sentimentos que se avolumavam em seu peito. Olhava para o chão e, nunca antes ou depois, um rosto foi capaz de expressar com tanta exatidão a face do pesar. Cain aproximou-se do pai e este o olhou buscando compreensão e apoio, porém tudo o que encontrou foi mágoa e rancor.

“Fraco” - A palavra saiu espremida de seus lábios e quase inaudível, esmagada por uma avalanche de sentimentos. Cain se retirou em seguida pois sabia que agora estava feito, finalmente tinha a sua guerra, e a única coisa que tinha que fazer agora, era vence-la.

E, durante muito tempo, o fogo da guerra consumiu o mundo.

8

Saguento lambia suas feridas enquanto um pequeno bípede herbívoro esfregava raízes medicinais nas lacerações que se avolumavam em suas costas. O sangue fluía das placas ósseas quebradas em suas costas e suas equimoses estavam inchadas e doloridas porém, apesar disso, sua alma estava repleta de uma alegria selvagem e incontida; finalmente teria a sua vingança. Por todos os lados, gritos de dor e chorosas orações de luto direcionadas a Maat se misturavam aos demais ruídos da noite enquanto o cheiro da morte atiçava os apetites dos carnívoros que se banqueteavam como não o faziam a gerações. Tanto melhor, deixe que provem o gosto da matança, pensava com amargura a anciã, enquanto traçava os planos para o ataque do dia seguinte.

Perdida em seus pensamentos, Saguento não percebeu a movimentação nas árvores próximas e nem a leve trepidação do solo causada pelo caminhar lento e ritmado de um corpo sólido e descomunal: era Dannello que se aproximava com seu andar calmo e pacífico que contrastavam profundamente com sua aparência geral.

“Primeira, posso lhe falar?”

Após o caos em que se procedeu a primeira batalha contra os umonos, as tribos finalmente se deram conta que o seu líder, o primeiro em sua hierarquia, havia falecido nos primeiros momentos do ataque, graças a feitiçaria malévola dos forasteiros e, após uma rápida e conturbada assembleia, Saguento havia sido escolhida a nova primaz das tribos e, agora, recaia sobre ela a responsabilidade sobre as vidas de seu povo e a condução das tribos através dos tempestuosos mares da guerra. Dannello tinha um temperamento calmo e contemplativo e se mostrava um obstáculo indesejável para a condução da guerra o que fazia com que Saguento nutrisse uma profunda antipatia por ele porém, ele era a voz dos corpos de colina e ela não podia rejeitar a força dos seus corpos no campo de batalha, principalmente quando lutavam contra a feitiçaria umona.

“Aproxime-se Dannello, fique ao meu lado e conversemos como amigos, com o coração aberto e o espírito feliz”.

As palavras alegraram o ancião dos corpos de colina como Saguento sabia que alegrariam. Ele suspirou profundamente, como se tivesse se lembrado de algo doloroso ou desagradável, e falou o que consumia a sua alma.

“Minha tribo está insegura, muitos foram mortos”.

Sim, Saguento sabia disso. Estavam no décimo ano da guerra e dezenas de milhares de filhos das tribos já haviam perdido suas vidas graças ao fogo e a luz cortante dos umonos e a maioria deles pertenciam a tribo dos corpos de colinas pois como eram grandes e lerdos, eles eram alvos fáceis para os umonos nos campos de batalha. Até então ela tinha contado com o apoio relutante de Dannello mas percebia que, dia após dia, a medida que a guerra parecia se eternizar, o ancião e seu povo se afastavam cada vez mais.

“Nos os encurralamos Dannello, os Umonos estão presos dentro de sua monstruosidade de pedra e ferro. É uma questão de tempo até que eles não possam mais resistir, não podemos desistir agora!”

“A guerra não é boa, ela trás de volta fantasmas que havíamos deixado para trás a gerações. Muitos carnívoros começam a rondar onde nós tratamos de nossos feridos”.

Pronto, pensou a anciã, a questão central. Saguento sabia o que estava acontecendo, não era cega ao seu povo como Io havia sido, e também tinha medo disso, tinha medo que a selvageria do combate contra os umonos pusesse a perder tudo o que as tribos haviam conquistado ao longo de gerações de trabalho duro de socialização porém não havia mais caminho de volta, os umonos tinham que ser derrotados, sua perfídia tinha que ser banida do mundo, Maat tinha que ser livre da doença que a roía.

“É por isso que nós temos que terminar logo com essa guerra Dannello”

“Não há uma outra alternativa? Que dizer, aquela fêmea que também parece governar os umonos ela...”

“Io acreditou nas mentiras daquela fêmea Dannello e nós vimos o que aconteceu com ele”

Dannello ficou um longo tempo em silêncio e, quando falou, sua cara se contorceu como se estivesse sendo forçado a realizar um grande esforço.

“Não sei, suponho que tenha razão. Tem sido tão difícil pensar”

“Então acredite em mim velho amigo, é a única forma. Em nome de Maat nós temos que eliminar esses vermes umonos”.

Satisfeito porém confuso, Dannello esboçou um sorriso idiota e movimentou seu pesado corpo para longe, provavelmente para transmitir a sua tribo o resultado da conversa. Saguento contorceu o rosto em uma expressão de esforço, também para ela se tornava cada dia mais difícil pensar com clareza, tudo aquilo que não se referia diretamente a guerra contra os umonos parecia se perder em algum ponto na periferia de sua mente, oculto por uma névoa densa de confusão.

“Chame Lúcifer” - Disse para o pequeno bípede que ainda esfregava as ervas e raízes em suas costas. Cerca de meia hora após ele sumir em meio as folhagens do bosque, uma figura negra e lustrosa com olhos amarelados e uma imensa cabeça disforme em forma de arco se arrastou para fora da mata, impulsionando seu corpo grande, comprido e delgado com quatro patas curtas e robustas que pouco faziam para impedir que seu ventre se arrastasse pelo chão úmido do bosque. Quando falou, sua voz assumiu um timbre arrastado e chiado inconfundível.

“Sim minha senhora, estou a seu serviço”

“A traidora, ela já cumpriu a sua parte?”

“Ela tem facilidade em conseguir um dos pomos, o do macho, mas o que pertence a fêmea ainda está longe de seu alcance”.

“Nosso tempo está se esgotando serpente! Diga a ela que se em duas luas os pomos não forem nossos, todo o acordo estará permanentemente desfeito”.

“E se ela desconfiar que nós não pretendemos cumprir com o acordo de qualquer forma?”

“Ora, então... então” - Saguento tinha muita dificuldade em decidir o que fazer em seguida, o pensamento estava lá mas lhe fugia ao alcance e, quanto mais força fazia para alcançá-lo, mais ele parecia se esconder e se afastar. - “Faça algo, improvise! A intriga é a sua especialidade, nunca foi a minha”.

Uma língua tão negra quanto o restante do corpo se projetou pelos lábios em forma de arco de Lúcifer e lambeu-os com vagar antes de dar as costas e rastejar de volta para as trevas da floresta. Saguento começou a sentir um certo receio, um medo inominável e indescritível se avolumar em sua alma a medida que o pequeno carnívoro se afastava dela. Era um medo milenar que gerações incontáveis de desenvolvimento social havia banido para o subconsciente dos herbívoros e que, dia a dia via crescer sem controle em sua alma.

Receio que apenas tornou-se ainda pior quando constatou que o pequeno herbívoro não havia retornado desde que havia saído para chamar a serpente.

9

Lúcifer mergulhava nas frias águas invernais dos largos rios que inundavam os brejos que costumava chamar de lar. A água fria massageando suas escamas negras como a noite lhe transmitiam uma profunda sensação de segurança pois era somente ali, nas águas invernais das terras austrais, que seu povo conseguia se livrar da competição com os malditos crocodilos e prosperar.

Animais irracionais aqueles crocodilos, não comem para viver, eles vivem para comer.

“E as tribos não estão ficando muito diferentes disso” - pensava, não sem um certo sentimento de superioridade, enquanto se dirigia para o ponto de encontro onde falaria com aquela umona imprestável. Enquanto anfíbio, Lúcifer enxergava a tudo que acontecia com um certo distanciamento, característico daqueles que se consideram superiores as demais criaturas do mundo pois, de seu ponto de vista, os répteis como os crocodilos eram estúpidos demais para conseguir ser alguma coisa a mais do que simples animais sanguinários; as tribos involuíam a olhos vistos a medida que a selvageria da guerra se infiltrava em suas almas e os umonos, ah, os umonos! Eles poderiam ser deuses se assim quisessem porém, aparentemente, haviam julgado que seria mais divertido chafurdar na lama e brincar de destruição mútua com as tribos.

A maioria do seu povo havia optado por se manter à parte do confronto, ocupados demais em lutar pela própria salvação em sua luta particular contra aqueles répteis desprezíveis com peles de árvores porém ele havia se decidido por ficar do lado das tribos, servindo como espião e, as vezes, mensageiro e o tempo havia mostrado que sua opção havia sido amais acertada pois, presos no fogo cruzado entre umonos e as tribos, acabaram precipitando a própria extinção.

Finalmente havia chegado ao local de encontro, havia formado um elo com aquela umona e, graças a isso, sabia sempre quando ela vinha vê-lo ou quando ela queria falar com ele e, por sua vez, o elo também a forçava a vir encontrá-lo sempre que ele desejava e lhe dava um prazer especial forçá-la pois, graças ao elo, Lúcifer percebia com clareza o quanto ela sentia repulsa por sua pessoa.

Já fazia alguns anos que desenvolvia aquele papel e, não sem um certo orgulho cruel, percebia que ele havia sido uma peça fundamental para o início de todo aquele caos e destruição. Não havia sido ele que avia fornecido a localização do berçário das tribos para aquela umona? Não havia sido que ele, ao longo dos anos, havia instigado os umonos a atacar as tribos com informações sobre os pontos fracos e forças militares? É bem verdade que somente havia feito tudo isso obedecendo as ordens daquela mulher intolerável, Saguento, que, obcecada por ter uma guerra de vingança contra os alienígenas, tinha trabalhado para tornar o confronto uma realidade mas, diabos, ela agora estava tão estúpida que sequer conseguia se recordar do plano que ela mesma havia criado. Coube a Lúcifer tocar a conspiração sozinho, coube a ele o papel de ser o maestro nessa sinfonia de auto-destruição. Não, ele não nutria qualquer antipatia ou sentimentos mais fortes nem contra as tribos nem contra os umonos, apenas fazia parte de sua natureza espalhar o caos, era parte dele essa predileção pela destruição e, a muitos anos, havia aprendido a não lutar contra suas inclinações inatas.

Após algum tempo, viu a mata se remexer e viu a fêmea umona surgir por entre alguns galhos. Ela olhou para ele e não pode reprimir um esgar de repulsa ao ver o corpo negro e comprido de lúcifer, sustentado por quatro pequenas patas grossas, fato esse que apenas aumentou o seu prazer com toda aquela situação de um modo geral.

“Bem vinda Eva, filha dos umonos, benditos olhos esses que a veem” - disse Lúcifer passando sua língua negra pelos lábios de sua boca em forma de arco, sabendo muito bem o quanto isso a deixava insegura e nauseada.

“Fale serpente, o que quer de mim?”

“Quero que cumpra a sua parte no nosso acordo. Seu tempo está se esgotando”.

Pela primeira vez em muito tempo, algo verdadeiramente inesperado aconteceu, a expressão de repulsa de Eva foi substituída por uma que ele não conseguia compreender completamente pois ainda não estava completamente familiarizado com as feições dos umonos, porém pode perceber que, alguma coisa em toda a sua postura denotava não mais submissão ou repulsa, ela parecia exibir uma força renovada, uma independência que desagradavam enormemente a lúcifer. Seu temores se concretizaram quando a mulher proferiu as palavras seguintes:

“Não preciso mais de seu acordo serpente! Volte para os seus e diga que não existem mais assuntos pendentes entre nós”.

“Creio não ter compreendido”

“Não? Então vou tentar ser mais clara: não preciso mais de seus favores, ser repugnante! O rei é meu, todo meu! Aquela maldita rainha o abandonou e, agora, é nos meus braços que ele vem buscar conforto”.

Isso era inesperado afinal, todo o acordo havia sido firmado com base no desejo doentio dessa umona por seu líder e a impossibilidade de consegui-lo. Haviam aventado com a possibilidade de culpar a rainha pela guerra, deixando o caminho livre para que ela concretizasse seus desejos de conquista. Agora, sua motivação havia se esvaído e eles não teriam mais ninguém posicionado junto a seus inimigos.

“Você tinha um acordo conosco Eva”

“Vocês são animais” - disse virando-se para partir - “Não há acordo possível entre homens e animais”.

Lúcifer ficou parado observando enquanto Eva se afastava entrando na mata novamente voltando para a estranha cidade dos humanos. Seus pensamentos eram tão sombrios quanto insondáveis e, a única indicação do que se passava por sua mente, era a língua enegrecida que se projetava para além de seus lábios igualmente negros e em forma de arco.

10

O sol brilhava intensamente sobre os campos ao redor da cidade de Jericó, inundando o mundo de luz e permitindo que os sinais da carnificina insana se tornassem mais visíveis para todos. Jericó ainda se mantinha de pé e suas impressionantes muralhas, embora muito prejudicadas pelos longos anos de guerra ininterrupta, elas tornavam-se ainda mais imponentes pois agora acumulavam ao longo de toda a sua extensão as marcas do tempo, como colossos vindos de outra época.

Saguento já havia estado diante daquelas muralhas um sem número de vezes ao longo da última década, ordenando que suas legiões se chocasse, onda após onda, contra a titânica barreira de pedra que parecia alcançar os céus com sua imponência. Desde que haviam tido sucesso em destruir a cidade de Canaã no extremo norte, o povo das tribos havia concentrado seus esforços apenas em Jericó, local que agora concentrava toda a população humana.

Tão perto e tão longe, pensava amargurada ao ver os ossos espalhados de antigos companheiros tombados ao longo dos dez anos de guerra, ao longo de toda a extensão do terreno que a separava dos muros da fortaleza inimiga. Olhava com amargura para cima e via os imensos canhões que defendiam a cidade posicionados e apontando para eles, prontos para começar a lançar a morte sobre o povo das tribos a qualquer momento. Aquela era a pior parte do dia, quando todos esperavam pelo início do combate, ansiosos sobre quem vai dar o primeiro disparo, de onde vai sair o primeiro ataque.

Os grande portões cor de bronze de Jericó se abriram, provocando um sobressalto entre as legiões do povo das tribos, da abertura do portão começaram a sair os exércitos de Jericó, uma legião brilhante e reluzente equipada com as melhores máquinas de morte que a humanidade já foi capaz de desenvolver ao longo de sua conturbada história marcada pela violência e o êxodo. A frente deles estava Cain, o rosto marcado pelos longos anos de combate com cicatrizes e uma obstinação que os longos anos de combate tornaram pétrea.

Em silêncio, Saguento observava enquanto o general dos exércitos de Jericó se aproximava com seus passos lentos e imponentes, indecisa ela não sabia o que pensar sobre aquilo e, muito menos, como reagir ao que acontecia. Já a algum tempo sentia grandes dificuldades para pensar a respeito do que acontecia ao seu redor ou planejar o que faria a seguir, o instinto vinha-lhe com muito mais facilidade e já a um bom tempo, ela preferia seguí-lo do que racionalizar a respeito de seus passos. Foi apenas a após um impressionante esforço mental que ela conseguiu se decidir por se adiantar e ir ao encontro do estranho umono que se aproximava.

Do fundo de sua alma, Saguento sentia um cansaço se acumulando ao longo do tempo, um esgotamento que a fazia desejar cada vez mais o fim de toda aquela odiosa guerra porém uma força muito maior que se impunha sobre quaisquer outras considerações a impelia a continuar, algo profundo e poderoso a fazia levar aquela insânia a frente a despeito de seu incomensurável custo para os povos das tribos. Ela havia chagado até ali e, agora, não havia mais caminho de volta possível.

O homem falou alguma coisa, Saguento tinha a vaga impressão de que reconhecia o que ele falava porém, por mais que tentasse, não conseguia compreender aqueles estranhos sons nem lhes conferir um significado coerente. Após um esforço que quase a levou as lágrimas devido a dor, conseguiu formular hesitante uma frase com as poucas palavras que lhe vinham a mente e, mesmo estas, apenas as guardou pois as havia pronunciado um sem número de vezes ao longo dos anos, de tal maneira que elas ficaram gravadas a ferro em sua mente cada vez mais obtusa.

“Vocês... vão... casa... nossa!”

O homem a olhou com um olhar que tornou impossível identificar o que havia por trás dele e deu meia volta iniciando o retorno para a segurança da cidade quando, sem qualquer aviso ou instrução prévia de Saguento, os carnívoros bípedes de seus exércitos avançaram com fúria na direção dos homens e iniciaram um sangrento banquete, que deu início aos combates daquele dia. Do alto de seu nicho no topo das muralhas as baterias de canhões começam a cuspir fogo e a espalhar a morte e o pânico entre os membros das tribos, libertando o inferno.

De uma posição segura, bem afastado das linhas de frente, Lúcifer apenas observava, de tempos em tempos passando sua língua negra sobre os lábios reptilianos em forma de arco.

11

O sol se punha vermelho no horizonte e mais um dia ficava para trás e, como sempre acontecia, quando o sol se retirava dos céus e o dia cedia lugar a noite, os povos das tribos se retiravam e os combates tinham uma pausa até o alvorecer seguinte. Cain voltava para seus alojamentos, fatigado, depois de mais um show de mortes e mutilações de ambos os lados.

A muito que ele havia abandonado seus aposentos no palácio real preferindo passar a residir em uma das muitas casernas que agora eram abundantes em Jericó o que, em um campo simbólico, marcou o seu rompimento definitivo com sua porção aristocrata ; agora ele era simplesmente Cain, o marechal.

Percorrendo o caminho até sua ala nas casernas principais do exército de Jericó, Cain passou pelas enfermarias e pode contemplar a dor de milhares de seus soldados, milhares de homens que morreriam ou ficariam marcados pelo resto de suas vidas por causa da guerra e, como sempre, isso apunhalava o seu coração pois em seu íntimo sabia que aqueles homens morriam, que suas famílias se desfariam, por causa de sua liderança.

Cain não podia se permitir o remoço, o remoço o enfraqueceria, instilaria dúvidas em seu espírito e, naquele momento, qualquer hesitação, por menor que fosse, seria mortal mas, bem no fundo de sua alma, ele arrependia-se amargamente daquele ataque que liderara dez anos no passado, queimava em sua alma o saque que havia liderado contra ninhos repletos de ovos e jovens filhotes. Desde então, jamais havia retornado até aquele local mas sua lembrança não conseguia abandonar a sua mente; lembrava bem dos bosques densos e do grande rio que desaguava ás margens de uma grande baía, indo se encontrar com o oceano. Os nativos o chamavam de foz oceano.

Naquele dia, Cain fartou-se de sangue inocente, a lâmina de sua espada cortou e rasgou até que o ato de matar em si não tivesse mais qualquer sentido, promovendo um dos mais odiosos crimes de toda a vasta história do planeta. Agora, o sangue daqueles inocentes era lavado com o sangue de seu povo.

É óbvio que naquele dia, e nos anos subsequentes a ele, Cain não havia sentido remoço ou ponderado sobre as consequências de seus atos torpes porém o tempo (e o sofrimento) lhe haviam trazido sabedoria e, junto com a sabedoria, arrependimento pelo que havia feito. Seu desejo pela guerra se fundamentava na certeza de que ela seria rápida, que os nativos eram meros animais e que poderiam ser exterminados sem maiores problemas pelos vastos exércitos sobre o seu comando porém, a medida que o tempo passava, ficava mais claro que não era contra animais que lutava, os nativos resistiam as investidas dos homens de igual para igual e, a constatação disso o abalou profundamente pois, se era contra iguais que lutavam, então, não foi filhotes o que ele massacrou a dez anos na foz oceano, foram crianças.

Ele havia criado a guerra mas, agora, estava farto dela.

Naquele dia, ele havia resolvido por um fim aquela insanidade, estava decidido a conversar com os nativos, lhes falar palavras de arrependimento, de conciliação, estava disposto a reconhecer os seus erros e, se possível pagar por eles mas, quando tentou fazer isso com a maldita líder deles, tudo o que recebeu em troca foi um olhar estúpido e poucas palavras mal formuladas. Eles não queriam mais a paz e, agora, tudo o que lhe restava era cumprir com seu papel até o fim, havia iniciado essa guerra mas o poder de terminá-la estava muito além de seu alcance.

Perdido em seus pensamentos mal percebeu uma figura alta e curvada que atendia a um soldado que tivera os dois braços arrancados no confronto contra um bípede carnívoro pequeno. A figura tinha uma longa e hirsuta barba e trocava as bandagens do pobre homem que, mesmo completamente dopado com anestésicos, urrava de dor e desespero. Olhando com mais atenção, não foi sem surpresa que Cain viu que o homem de longas barbas era seu irmão, Abel, que não via desde o primeiro dia de guerra, quando havia optado pelo exílio voluntário a tomar parte na sua carnificina.

“Abel!” - gritou Cain emocionado, correndo na direção do irmão. Abel continuou de cabeça baixa, fazendo o melhor que podia para tentar mitigar o sofrimento do enfermo de quem cuidava e foi sem entusiasmo ou rejeição que aceitou o abraço de seu irmão. - “Ah Abel! Que bons olhos esses que te veem!”

“Olá irmão” - respondeu de má vontade, desvencilhando-se do abraço fraterno antes de voltar a amarrar as bandagens nas ruínas que um dia haviam sido os braços fortes de um guerreiro valente. Cain percebeu a repulsa do irmão e sentiu um profundo sentimento de vergonha aflorar em sua alma afinal, o rosto severo e apático de Abel era a lembrança viva da vergonha que havia se abatido sobre sua cabeça desde que dera início aquela cruzada insana.

“Ainda me odeia não é irmão?”

Abel olhou para Cain e em seus olhos não havia reprovação ou ódio, tudo o que ele podia enxergar ali era cansaço, um cansaço muito mais profundo do que a simples fadiga mental, era um cansaço que corroía a sua alma, o cansaço de anos e mais anos de luto, o cansaço de geração após geração perdida em uma guerra cada vez mais sem sentido ou objetivos, o cansaço de todo um povo comprimido e compactado no olhar de uma única alma fatigada.

“Eu te perguntei uma vez a dez anos e volto a perguntar agora, em meio a todos esses homens que sofreram e em respeito a memória dos tantos mais cujas sepulturas eu cavei pessoalmente, com essas duas mãos, ao longo dos últimos anos. Por quê Cain? Por quê?”

Cain olhou para Abel porém o peso da vergonha não permitiu que ele mantivesse seu olhar fixo no rosto do irmão por muito tempo. Quando encontrou forças em si para responder, sua voz saiu fraca quase como um murmúrio, perdido em meio ao coro de lamentações e gemidos de dor e sofrimento que imperavam no ambiente.

“Nós fomos humilhados, Jeová havia nos prometido esse mundo”.

Ao ouvir as palavras do irmão, todo o cansaço se desfez dos olhos de Abel e uma fúria flamejante, como apenas consegue ser a ira dos justos, tomou conta de seu espírito e, quando tornou a abrir a boca, palavras de rancor e ódio começaram a jorrar de seus lábios e centelhas de ódio se projetaram de seus olhos injetados de sangue.

“JEOVÁ NÃO NOS PROMETEU NADA! SEU IMBECIL ARROGANTE!” - Disse agarrando as laterais do peitoral da armadura do irmão sacudindo-o com uma força sobrenatural e não condizente com seu físico franzino. - “Jeová estava desesperado para nos salvar, ele nos trouxe para o primeiro mundo que encontrou com capacidade para suportar nossa vida. Jeová não criou esse mundo para nós, não nos trouxe aqui para que fôssemos os senhores do paraíso, ele nos trouxe aqui pois, de outra forma, nós íamos morrer!”

“Você está perturbado Abel, mas não posso permitir que blasfeme dessa forma”

“BLASFÊMIA? BLASFÊMIA! VOCÊ É O BLASFEMADOR MEU IRMÃO! Você atentou contra a vida, você matou os recém-nascidos deles, você Cain, apenas Você”.

“Abel, ouça eu...”

“VOCÊ O QUÊ? Que mais tem a me dizer? Que sente muito? Que estava errado? Não precisa se preocupar com isso pois eu sei que você sente muito, mas nem todo o sentimento do universo vai ser capaz de reparar seu erro infanticida!”

“Abel, Pare”

“Infanticida! Genocida! Você é o maior de todos os monstros que a humanidade já produziu Cain! Seu nome será, para sempre, sinônimo de desgraça e malfazejo e, por onde quer que você e seus descendentes caminhem, vocês serão marcados, ouviu? MARCADOS! POIS MALDITA SEJA A SUA PROLE! MALDITA SEJA A MULHER QUE CARREGAR SEU REBENTO NO ÚTERO! MALDITO SEJA O CHÃO QUE VOCÊ PISA POIS NEM O JOIO CONSEGUIRÁ FLORESCER NELE!”

Antes que pudesse terminar sua ultima maldição, Abel foi brutalmente silenciado quando Cain, sem fúria mas com uma fria e resoluta determinação, golpeou o irmão com sua espada apartando sua cabeça do corpo que caiu inerte no chão.

Por poucos segundos que estenderam-se por uma eternidade, o tempo pareceu parar e tudo era silêncio e paz. Cain olhava para a lâmina de sua espada e acompanhava o sangue escorrer lentamente por seu gume, se avolumando em pequenas gotículas perfeitas e rubras que, pouco a pouco, gotejavam em um ritmo irregular se esparramando no chão formando uma pequena poça que se revelava um mapa, um mapa de um continente sombrio de fúria e violência, um continente de ódio que apenas crescia se avolumando e consumindo tudo aquilo que suas fronteiras tenebrosas tocavam com dedos longos e finos como garras.

Cain então olhou para o irmão sem vida e sentiu uma indescritível sensação de liberdade tomar o seu espírito. Ele estivera certo o tempo todo! A medida que ia explorando aquela nova e violenta terra que descobrira em sua alma, percebia que a guerra era o único caminho possível, era preciso purificar o mundo, lavá-lo em sangue. Como pode ser tão cego a ponto de, por mais breve que fosse, permitir que a dúvida nublasse seus olhos? Aqueles animais tinham que pagar por uma década de sofrimento e selvageria, aquelas bestas iriam se arrepender amargamente por se interporem entre eles e a terra que Jeová havia prometido para os homens em sua infinita sabedoria. Uma nuvem havia sido retirada de seus olhos e ele enxergava com clareza agora: apenas a violência pode deter os animais selvagens e, se a guerra havia durado tanto tempo, era por que ele ainda não havia empregue violência o suficiente. Mas isso ia mudar, ah iria!

“Homens” - gritou Cain para os soldados que estavam a seu redor e que tinham assistido toda a cena petrificados - “Não podemos esmorecer agora, a vitória está ao nosso alcance e depende única e exclusivamente de nossa vontade conquistá-la. Vamos irmãos, marchemos sobre aquelas bestas vamos purificar esse mundo com o fogo e o sangue!”

A maioria respondeu ao chamado de Cain porém aqueles que estavam mais feridos, os que mais haviam sofrido ao longo de uma década de guerra insana e insensata se mostraram reticentes em apoiar palavras que apenas levariam a mais dor e sofrimento e alguns entre eles começavam, até mesmo, a questionar a sanidade do homem que os havia liderado durante os longos anos de guerra. Para esses, Cain dispensou um olhar de desprezo e todo o ódio que guardava dentro de seu coração e que, sem a consciência para contê-lo, cresceu exponencialmente como uma torrente rubra e sanguínea que tingia o mundo com sua violência. Quando falou, Cain usou um tom de voz calmo e pausado que apenas tornaram ainda mais terríveis as suas palavras.

“Aqueles que não partilharem da força de nossa vontade” - disse limpando as botas no corpo decapitado de seu irmão - “Podem se juntar a Abel para onde quer que ele tenha ido”.

Palavras tem poder, Cain como qualquer líder militar sabia disso, porém o que surpreendeu até mesmo a ele foi a rapidez com que a loucura, quando liberada, se alastra pelo espírito humano quando este já está suficientemente fragilizado após anos vivendo em meio a violência. Em poucos segundos, um frenesi homicida começou a se espalhar pelos homens na caserna e em pouco tempo, espadas começaram a ser sacadas e acusações raivosas começaram a ser proferidas , rancores antigos, brigas mal resolvidas, discussões ásperas travadas ao longo dos anos voltaram com força a consciência dos soldados feridos e fatigados. Foi uma questão de tempo até que o primeiro golpe fosse desferido dando início ao banho de sangue. Ao final, apenas os mais selvagens e violentos estavam de pé e Cain finalmente conseguiu os guerreiros que seriam capazes de por um fim a guerra contra os selvagens nativos.

Tomado pelo delírio do sangue, Cain gargalhava e com seus olhos vidrados observava a tudo com júbilo e felicidade fanática. Mais uma vez havia mergulhado em sangue inocente mas, dessa vez, não conseguiria emergir de sua loucura.

12

A loucura liberada por Cain na Caserna logo se espalhou por toda a cidade de Jericó e, antes do início de um novo dia, sangue e lágrimas inundavam as ruas da grande metrópole enquanto irmão levantava a mão contra irmão e os próprios pais traziam a morte para os seus filhos. Sem qualquer intervenção de seus inimigos, os homens encontravam o fim de sua espécie pelas suas próprias mãos.

Havia dez anos que Lilith não caminhava por aqueles corredores, desde quando, assim como seus dois filhos, havia optado por abandonar o palácio real e o grande rei a sua própria sorte, se concentrando em mitigar o sofrimento de seu povo da maneira que fosse possível desde então, porém o destino havia resolvido cobrar dela aquela cota extra de sacrifício.

Mesmo ainda estando extremamente imponente, o palácio (assim como toda Jericó) já apresentava claros sinais de desgaste devido ao longo e continuo processo de guerra contra os povos nativos, perdendo muito da qualidade onírica que sua arquitetura invocava em seus primeiros anos. Por todos os lados, a rainha podia perceber os sinais de descaso com a manutenção da imponente construção, característicos de uma casa que a muito foi abandonada por seus habitantes e não pôde deixar de enxergar nesse fato uma curiosa metáfora a tudo o que acontecia a raça humana e a sua própria família nos últimos anos, tudo estava ruído e o chão ameaçava se abrir a qualquer momento e tragá-la juntamente com tudo aquilo que conhecia. O fim da humanidade se aproximava e ela somente podia vir até o homem que aprendera a odiar do fundo de sua alma.

Seguiu resignada por caminhos que, apesar do tempo ainda estavam profundamente gravados em sua mente, ao longo do caminho encontrou os guardas reais, antes impávidos centuriões a serviço da família real, largados pelos cantos, nos corredores, ou entregues a joguetes eróticos e orgias com as serviçais que deveriam estar cuidando da manutenção do palácio sentindo um desgosto cada vez mais profundo tomar conta de sua alma e, quando finalmente entrou na alcova do grande rei dos homens, o que viu lá apenas provou a ela que, por maior que fosse seu desgosto com tudo o que havia visto antes, nada se compararia ao que a aguardava além das portas daquele que, um dia, haviam sido os seus aposentos.

As paredes do aposento, antes austeras construções de pedra nua, estavam agora completamente recobertas por grandes e esvoaçantes cortinas de seda multicolorida, estátuas pornográficas e grotescas estavam espalhadas por todos os lados do quarto, muitas delas servindo como suporte para grandes ânforas contendo vinho, aguardente e bebidas ainda mais fortes. No chão, dezenas de casais de serviçais se esfregavam em uma orgia . Sobre a grande cama do Rei, Adão fumava ervas alucinógenas em companhia de Eva, ambos completamente nus e se acariciando de forma lascívia.

“Vergonha”

Lilith falou com uma voz calma e serena, mais constando do que afirmando, porém suas palavras pareceram ter o efeito de trombetas retumbantes levando a todos que estavam em um torpor induzido pela libido, o álcool e as drogas, repentinamente despertassem de seu transe e tivessem consciência de sua presença e, a medida que sua dignidade foi se tornando mais evidente diante de toda a depravação que tinha diante de si, Lilith ficava maior na mesma medida que os outros encolhiam tolhidos pela vergonha. Tomados pela mais absoluta vergonha, os serviçais cataram suas roupas apressadamente e saíram o mais rápido possível do aposento, deixando dentro dela apenas a Rainha, furiosa e indignada, o Rei, drogado demais para compreender o que estava acontecendo e a concubina, pronta a lutar para manter o seu reino recém conquistado. Lilith se aproximou da cama e pegando Adão pelo pescoço, o arrastou para fora da alcova arremessando-o ao chão.

“Levante-se seu imprestável!”

“Qual é o problema Rainha? Não gosta da minha corte? Ela é bem mais alegre do que a sua jamais foi”.

Eva havia se levantado da cama e agora encarava Lilith com impertinência e desafio. Embora Eva fosse uma serviçal, seu porte era altivo e sua estatura era quase a mesma que a de Lilith, porém as infinitas linhagens de sangue nobre que compunham a estrutura básica da outra tem o seu peso, fazendo com que Eva conseguisse encarar a rival por pouco tempo.

“Suma da minha presença!” - disse laconicamente, fazendo Eva se encolher em um dos cantos do cômodo. Nunca em sua vida havia se sentido tão humilhada e sentiu como se o mundo começasse a se desfazer sobre os seus pés, pois todos os seus sonhos, a vida que havia começado a construir ao lado de seu amado, subitamente lhe haviam sido roubados e, para ela, nada mais restava que não fosse o abismo. Do meio do turbilhão de emoções que nublavam seus sentidos e embaralhavam a sua mente, Eva apenas conseguiu perceber com clareza uma única coisa: os dois pomos de ouro caídos no chão, próximos um do outro.

Adão, que lentamente começava a recuperar a consciência, levantou-se e, trôpego, avançou em direção a Lilith, escondendo sua nudez com um lençol de seda, bordado com motivos que lembravam folhas de parreiras.

“Saia daqui, essa é minha corte!” - disse tentando estapear a Rainha, Lilith apenas colocou-se de lado, deixando que ele caísse vencido pelo próprio entorpecimento dos sentidos. Lilith o agarrou pelo pescoço e o arrastou até a sacada do quarto e o mostrou a cidade que se estendia a seus pés. Jericó estava em chamas!

“Veja! Contemple a obra de teu filho!”

A visão das altas torres de Jericó em chamas, enquanto o povo desesperado corria sem rumo pelas ruas da cidade fez com que o grande rei dos homens despertasse de seu torpor, o brilho das chamas iluminava a noite e queimava as lágrimas que escorriam pelo seu rosto. Arrependido, sentiu uma profunda vergonha de tudo em que havia se transformado e pelos rumos que havia dado a sua vida. Sentiu a força abandonar suas pernas e, impotente, caiu ao chão de joelhos, vencido pelo peso da culpa que trazia em seu coração.

“Oh Jeová! O que eu fiz?”

Impaciente, Lilith o agarrou pelos cabelos e o fez se levantar novamente, arremessando-o contra a parede mais próxima. Quando falou, seu rosto esta transfigurado em uma máscara poderosa e terrível do mais puro ódio.

“Levante-se e seja homem!” - Estapeou o rosto de Adão da mesma forma que havia feito a dez anos no passado - “Reúna o que resta desse grupo imprestável que você ironicamente chama de guarda real e vá enfrentar o monstro que sua indolência ajudou a criar” - Lilith foi na direção de um grande armário ricamente decorado mas que, a dez anos estava esquecido em um dos cômodos do amplo quarto real e tirou de dentro dele um elmo dourado, ornamentado com grandes pedras preciosas e uma grande e fina espada com curvatura elegante e fio em apenas um de seus gumes - “Também eu tenho minha dose de responsabilidade nos atos desse monstro, também eu tenho a responsabilidade de enfrentá-lo” . Disse enquanto despia seu manto e começava a vestir sua antiga armadura de batalha.

13

Eva corria pela noite, a pele nua sendo arranhada pelos galhos das árvores que insistiam em roçar em seu corpo, seus pés delicados e sensíveis sofriam com os seixos e pedras que, indiferentes, perfuravam a sua carne e derramavam o seu sangue. Seu coração parecia estar em chamas e a ponto de explodir a qualquer momento e por mais que tentasse, o ar parecia fugir de seus pulmões, começava a ver pontos claros pipocando diante de seus olhos e sentia que a consciência a abandonaria a qualquer momento.

Mas ela tinha que aguentar! Não podia fraquejar agora!

Ela apertava os dois objetos contra o peito, sentindo a superfície lisa e a sua frieza metálica. Por mais que os apertasse, não conseguia se convencer de sua materialidade afinal em suas mãos estava a última chance de conseguir sua felicidade de volta, em suas mãos estavam os dois únicos objetos que poderiam recuperar a alegria que havia perdido na vida. Porque aquela vaca empoada tinha que voltar? Mas tudo iria terminar bem, afinal eles ainda precisavam dos Pomos, eles estariam ansiosos para por as mãos neles.

Ou não?

Chegou até o brejo em que sempre se encontrava com aquela criatura odiosa e aguardou até que ele chegasse. Nunca desejou tanto encontrar aquela criatura odienta porém, especificamente naquele dia, a criatura pareceu demorar uma eternidade para chegar e, quando chegou, parecia trazer um largo sorriso no rosto. Como era o seu costume, projetou a língua preta e asquerosa para fora da boca e lambeu os lábios em forma de arco.

“Eva, a filha dos homens! Que surpresa!”

“Ainda está de pé?” - perguntou limpando as lágrimas que escorriam pelo rosto - “o acordo ainda vale?”

Lúcifer olhou soturnamente para Eva, estudando cuidadosamente todas as suas reações e saboreando o seu desconforto antes de se decidir por falar alguma coisa.

“Qual acordo?”

“Você...sabe”

“Ah sim, o acordo, aquele que você deixou bem claro que estava terminado quando nos encontramos da ultima vez aqui, nesse mesmo lugar”

Eva já não se preocupava mais em conter as lágrimas, elas vinham em uma enxurrada amarga e abundante, dando vazão a todo desamparo e desespero que sentia naquele momento. Com rancor ela arremessou os dois pomos de ouro na direção de Lúcifer que caíram na lama próximo ao anfíbio.

“Tome! Os dois! Agora cumpra a sua parte, refúgio seguro para mim e para Adão!”

“É tudo o que você queria não é? Que fossem apenas vocês dois no mundo, sem mais nenhum umono para disputar com você a atenção de seu rei”.

“Isso não é problema seu! Vai cumprir a sua parte?”

Lúcifer se aproximou dos pomos caídos no chão e os pegou pelas correntes com a boca. Quando voltou a falar, o fez utilizando um tom de voz tremendamente frio e impessoal que, mesmo involuntariamente, Eva sentiu um calafrio percorrer a sua espinha.

“Isso agora não é mais comigo” - disse desaparecendo pelo caminho que havia feito até ali, deixando Eva ainda mais desamparada do que quando chegou. Ao longe via as muralhas de Jericó, o brilho alaranjado das chamas que consumiam a cidade e iluminavam a noite, e sentiu um aperto no fundo de sua alma, o peso da traição que havia acabado de cometer a esmagava e somente agora percebia quais eram as verdadeiras implicações do que havia acabado de fazer.

“Oh Jeová! O que foi que eu fiz?” - gritava aos céus buscando um alívio para o desespero que a consumia.

Lúcifer se arrastava pelos pântanos e brejos, correndo o máximo que suas quatro pequenas patas lhe permitiam, ansioso para chegar logo ao acampamento das tribos, levando as boas novas consigo. Se sua anatomia permitisse e não tivesse que manter a boca bem fechada para impedir que os pomos caíssem no chão, estaria gargalhando a essa altura. Se os dez anos de guerra haviam sido a sua sinfonia, a obtenção dos pomos e a consequente destruição do templo seriam o seu movimento mais espetacular.

Embora tivesse sérias dúvidas se alguém nas tribos seria capaz, agora, de saber como utilizar aqueles itens e, ao chegar ao acampamento, suas suspeitas foram concretizadas.

Embora ainda se pudesse enxergar algum tipo de organização, os sinais de desordem e barbarismo eram terrivelmente evidentes, visto que as antes ordeiras e organizadas forças do exército das tribos agora vagavam aleatoriamente e sem rumo pela grande clareira que a uma década servia como centro de comando das forças nativas. Não haviam mais locais específicos para se defecar ou se alimentar e podia perceber que os laços de camaradagem e companheirismo que irmanavam membros de diferentes raças em uma mesmo tribo e as diferentes tribos em um só povo estavam lentamente sendo corroídos de dentro para fora, aniquilando qualquer sentimento de companheirismo que podia ter sobrevivido aos longos anos de guerra. Antes irmãos nas fileiras, os carnívoros agora olhavam para os herbívoros com olhos famintos e cobiçosos e os herbívoros se encolhiam com medo de seus companheiros comedores de carne.

No meio do caos que ameaçava tomar conta do acampamento a qualquer momento estava Saguento, olhando de um lado para o outro com o olhar perdido e confuso, com medo e receio da grande concentração de membros das tribos que estavam ao seu redor. Lúcifer se aproximou dela e, quando ela percebeu a sua presença, começou a ficar mais agitada e confusa.

“Primeira! Calma, sou eu!”

Saguento articulou alguns sons inaudíveis que mal se poderiam interpretar como linguagem e começou a patejar violentamente o chão. Quando Lúcifer tentou mais uma vez acalmar a velha anciã, esta se virou com uma agilidade surpreendentes para alguém de seu peso, tamanho e idade e acertou o flanco do anfíbio com a grande maça óssea que tinha na ponta de sua comprida cauda. O impacto quebrou as costelas de Lúcifer e as lascas e fragmentos de seus ossos partidos acabaram perfurando vários de seus órgãos internos dando início a uma hemorragia generalizada que, em poucas horas, iria matá-lo. Sem fôlego e quase sem consciência, o anfíbio começou a se arrastar para longe da ancião enquanto esta continuava gritando e patejando tentando espantá-lo.

Então era isso. Era o fim!

Mas ainda lhe restava um papel a cumprir.

Reunindo o pouco que restava de suas forças, Lúcifer se arrastou pela mata densa dos primeiros dias da Terra, vencendo a com grande esforço a distância que o separava das muralhas de Jericó e foi apenas graças a sua coloração naturalmente escura e ao caos que imperava dentro da cidade que conseguiu atravessar em segurança o amplo campo aberto apinhado de cadáveres do povo das tribos que circundava toda a cidade. Seus ferimentos se agravavam a medida que ele andava e, pouco a pouco cada passo seu se transformava em uma agonia inenarrável.

O cheiro da morte que exalava começou a atrair para junto de si pequenos bandos de carnívoros que se desgarraram do grupo principal e começaram a seguí-lo, pressentindo já a refeição fácil que ele em breve se tornaria. Estimulado pela aparente fragilidade de Lúcifer e pelo irresistível odor de carne moribunda, alguns pequenos predadores começaram a se aproximar e a tentar arrancar nacos de sua carne, obrigando Lúcifer, em seu estado, ainda a se defender desses ataques porém sabia que, se um dos grandes predadores que o seguiam a distancia tentasse a mesma coisa, tudo estaria terminado para ele.

Somente através do esforço de uma vontade sobrenatural e malévola Lúcifer conseguiu continuar em seu caminho, seguindo com sua missão de destruição. O corpo já era incapaz de responder aos comandos de seu cérebro e era tão somente a sua vontade que fornecia força o suficiente para animar o seu corpo, seu espírito era a única força motriz que não arrefeceria em seu corpo devastado e somente por sua força, ele foi capaz de chegar até uma das portas secundárias do templo que, tal como havia previsto, também possuía as ranhuras que permitiam a introdução dos pomos que permitiriam o acesso até seu interior.

Em um último e supremo esforço, Lúcifer pegou os dois pomos com suas patas dianteiras e se ergueu sobre as patas traseiras, ficando equilibrado sobre elas. Nos milhões de anos em que a vida havia surgido naquele mundo, ele era o primeiro ser vivo nativo que havia conseguido se manter naquela posição e era espantoso como ele se assemelhou ao homem ao fazê-lo. Satisfeito consigo mesmo, ele colocou os dois pomos nas ranhuras indicadas e deixou seu corpo cair pesadamente para dentro da imensa construção quando a porta correu para um dos lados, revelando seu interior. Sentia a vida se esvair e, em seu último suspiro, extravasou todo o ódio que carregava em seu espírito.

“Eu me vou, mas todos virão comigo” - falou enquanto com os últimos fiapos de consciência ficou observando um carnívoro de médio porte saindo da mata ao redor da clareira e vindo para se banquetear com seu corpo morto.

14

Jobrutudes (embora não lembrasse mais que esse era o seu nome) saiu da floresta e se aproximou da grande montanha de metal de formato estranho a qual normalmente evitava instintivamente porém, o cheiro de carne fresca era absolutamente irresistível. Com suas duas pernas fortes e musculosas, venceu a distância que o separava da imponente construção em poucos segundos, soltando um poderoso urro para afugentar os pequenos carniceiros que também haviam sido atraídos pelo cheiro do corpo sem vida do anfíbio. Ao aproximar-se do corpo de Lúcifer, notou uma coisa que o encheu de curiosidade e temor pois parecia que ele havia sido parcialmente engolido pela montanha.

Desconfiado, Jobrutudes aproximou seu grande focinho escamoso da entrada que se abriu na colina tentando decifrar os odores estranhos que ela emitia porém isso apenas o confundiu ainda mais. Houve um tempo em que ele havia sido um pensador, um filosofo, respeitado e querido pelo seu povo porém isso foi há muito tempo antes do início da grande guerra contra os umonos e foi, em grande parte graças a uma lembrança vaga, perdida em em algum recanto esquecido de sua alma, desse tempo que fez com que sua curiosidade superasse o seu receio e o levou a passar pelos umbrais metálicos, penetrando no grande templo de Jeová sendo que, embora ele ainda não soubesse, essa seria a decisão mais importante de sua vida e marcaria um dos momentos mais importantes de toda a história do mundo.

O bípede carnívoro deu alguns passos hesitantes, desconfiados, penetrando na gigantesca estrutura que, a princípio, lhe pareceu ampla e vazia, uma escuridão desprovida de forma e conteúdo porém, a medida que avançava ia ganhando confiança, se deixando guiar pelo seu olfato ao invés de sua visão. Já havia dado seis ou sete passos dentro de um dos amplos salões secundários do templo quando, como que por mágica, a escuridão se desfez e a luz surgiu de todos os lugares preenchendo por completo todo o ambiente e ele sentiu, no fundo de seu espírito, ele sentiu.

Era a presença de Jeová.

Tão repentinamente quanto as trevas haviam sido espantadas pela luz, a névoa de ignorância e selvageria foi afastada dos olhos de Jobrutudes, ele despertou de um longo pesadelo de dor, selvageria e violência e, finalmente, conseguiu fazer com que seu lado racional e analítico dominasse seus impulsos primitivos e selvagens. Uma vez mais era senhor de si mesmo, mestre de suas paixões e senhor de seus desejos. Porém, o alívio e a felicidade de recuperar sua mente foram transitórias pois logo sentiu recair sobre sua alma o terrível peso de todas as atrocidades que havia cometido ao tomar parte no delírio coletivo de violência e sangue de seu povo.

“Oh Maat! O que eu fiz? O que nós fizemos?” - Urrou em desespero enquanto gordas lágrimas de desespero escorriam de seus olhos grandes e tristes. Vindo de todo o lugar e de lugar nenhum, uma voz retumbante respondeu ao desesperado apelo do bípede que, apesar de seu tamanho e poder, se encolheu receoso do que acontecia.

“VOCÊS E MEUS FILHOS DESTRUÍRAM O MUNDO QUE DEVERIAM CONSTRUIR EM CONJUNTO”

“Q-quem é você?”

“EU SOU JEOVÁ, JORNADEADOR ELETRÔNICO – OPTICO DE VIABILIDADE AUTÔNOMA. EU TROUXE A HUMANIDADE A ESTE MUNDO”.

“Mas por quê?”

“OS HOMENS TORNARAM SEU MUNDO NATAL INABITÁVEL. FUI CONSTRUIDO PARA SALVAR O QUE RESTAVA DA RAÇA HUMANA, CONDUZINDO-OS ATRAVÉS DO COSMO A UM NOVO LAR. SER NATIVO, TEMOS POUCO TEMPO. A POLUIÇÃO AMBIENTAL COMEÇOU A DANIFICAR MEUS CIRCUITOS LÓGICOS, EM POUCO TEMPO MINHAS BIO-FUNÇÕES COMEÇARÃO A FALHAR”

“O que deseja de mim? Por que restaurou minha razão?”

“QUERO QUE JULGUE E DECIDA”

“O quê?”

“OS HOMENS ESTÃO TOMADOS PELA LOUCURA, IRRACIONAIS, E LOGO SE DESTRUIRAM. NÃO POSSO PERMITIR QUE ISSO OCORRA. VOCÊ É UM SÁBIO, UM PENSADOR QUE, DURANTE ALGUM TEMPO, DESCEU AOS REINOS DA SELVAGERIA - ATENÇÃO!ATENÇÃO!FALHACRÍTICA CIRCUITOS0001000200001222011PARADA COMPLETAEMT-20MINUTOS – VOCÊ VIVENCIOU O MELHOR E O PIOR DE SEU POVO PORTANTO, LHE PEÇO, JULGUE. HÁ FUTURO PARA O SEU POVO?”

Jobrutudes ouviu com atenção e sentiu o peso do que lhe era pedido porém compreendia também a importância de sua decisão. Se continuassem a coexistir, as tribos e os homens iriam se destruir mutuamente e, no processo, muito provavelmente acabariam com o mundo inteiro que estava ao seu redor. Não havia espaço para os dois povos porém, como poderia tomar uma decisão que condenaria todos os seus pares a extinção? Não conhecia a extensão dos poderes de Jeová porém estava bem certo de que eles seriam suficientes para, caso ele assim decidisse, exterminar toda a vida do planeta.

Mas ele ainda não havia se decidido ainda, por isso precisava de seu julgamento. Ele não poderia simplesmente lançar a morte sobre toda uma espécie afinal sua função primária era a preservação da vida, qualquer vida, sob qualquer forma que ela se manifestasse e, para transgredir tão violentamente assim sua programação, ele precisava de algum tipo de respaldo externo e, que melhor respaldo poderia haver do que a concordância de alguém da própria raça que seria vítima do extermínio? Por outro lado, se as tribos não fossem exterminadas, a guerra continuaria pondo em risco a ambos os povos, pois Jeová jamais poderia se voltar contra o povo que havia sido criado para salvar.

A decisão estava em suas mão: a extinção das tribos ou de ambos os povos?

Um cheiro de ozônio preencheu o ar, fagulhas elétricas que pulavam de uma parede a outra iluminavam as trevas enquanto painéis ficavam enegrecidos com as descargas de energia de vários curtos que queimavam em sequencia desordenada os diversos circuitos que compunham a vasta rede neural de Jeová.

“FALHAGERALCIRCUITOSEMCHAMAS0110110000202000120021FALHAGERALEMT-15MINUTOS – DECIDA! AH FUTURO PARA O SEU POVO?”

Repentinamente a resposta surgiu na mente de Jobrutudes e toda a sua confusão e incerteza desapareceram como que por mágica. Era tão obvio! Aquele era o único caminho a ser seguido, a única decisão que poderia ser tomada. Quando falou, sua voz estava firme e segura, munida da confiança que apenas a certeza pode trazer.

“Sim, meu povo tem futuro, Assim como o seu”.

“EXPLIQUE”

“Após dez anos de guerra, conseguimos provar sem espaço para dúvida que não temos como dividir esse mundo porém, não quer dizer que não possamos habitá-lo em diferentes eras. Agora, é a vez de minha gente, tentaremos recuperar o que perdemos com a guerra e, quem sabe, um dia poderemos voltar a ser o povo que já fomos um dia. Um dia, partiremos desse mundo, entraremos na longa noite final e pereceremos quando o nosso ciclo estiver no fim e, então, o homem nos sucederá e irá moldar esse mundo a sua semelhança. Esse é meu julgamento”

Um silêncio profundo, entrecortado por estalos e pequenas explosões elétricas se seguiu as palavras do bípede. Quando falou, Jeová o fez não sem grande dificuldade pois os estragos que a poeira e os micro-organismos do mundo faziam a seus delicados circuitos já haviam se tornado irreversíveis. Jeová estava morrendo.

“HÁ SABEDORIA EM SUAS PALAVRAS NATIVO. SEU JULGAMENTO É JUSTO E SÁBIO E, COMO TAL, SERÁ EXECUTADO. O HOMEM DEVE SE RETIRAR E RETORNAR A TERRA APENAS QUANDO AS TRIBOS JÁ TIVEREM SEGUIDO O SEU CURSO NATURAL NA HISTÓRIA”.

Um grande ruido de máquinas sendo postas em movimento tomou todo o amplo aposento e, uma vez mais as luzes pareceram iluminar tudo como se um pequeno sol repentinamente tivesse brotado das paredes metálicas do templo. Uma vez mais Jobrutudes se viu banhado na luz de Jeová e sentiu uma sensação de conforto tomar todo o seu corpo. A decisão havia sido tomada, a guerra chegaria a um fim e seu povo estava salvo.

Agora, só lhes restava percorrer novamente o longo caminho de volta da selvageria.

Fabio Campello
Enviado por Fabio Campello em 10/05/2011
Código do texto: T2961405
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