Protótipo Z-17
Há muito, muito tempo atrás, tanto quanto o numero de estrelas no céu, o paraíso celeste foi palco de um terrível levante. Armados com espadas místicas e coragem divina, querubins leais ao Deus Supremo travaram uma sangrenta batalha contra o Arcanjo Miguel e os anjos que o seguiam.
Deus, o Senhor Supremo de Todas as Coisas, continuava imerso no profundo sono que caíra após ter concluído o trabalho de criação – o descanso do sétimo dia. Enquanto ele permanecia ausente, os arcanjos ditavam as regras, impondo seus desígnios ao plano celeste e terrestre. Sentados no topo de seus tronos de luz, cada um deles almejava alcançar a divindade.
Concentrando todo o poder debaixo de suas asas, os poderosos arcanjos, onipotentes e intocáveis, utilizavam a palavra de Deus para justificar sua própria vontade. Revoltados com o amor do Criador para com os humanos e movidos por um ciúme intenso, decidiram ir contra as leis do Altíssimo e destruir todo homem que caminhasse sobre a terra, acabando assim com parte da criação do Divino.
Impulsionado por essa fúria, Miguel, o Príncipe dos Anjos, enviou à terra diversas calamidades, mas, como insetos persistentes, os mortais resistiram. Os tiranos alados desejavam um novo início, um regresso a aurora dos tempos, quando só os animais povoavam o mundo. Eles nunca aceitaram venerar uma criatura feita de barro, uma vez que tinham sido gerados a partir do próprio esplendor e glória do Senhor.
Decidido a eliminar de vez a humanidade, Miguel ordenou que os Ishins, a casta angélica que controla as forças da natureza, arquitetassem a destruição final. Submissos eles derreteram as calotas polares e a terra foi inundada por um volumoso dilúvio. Não obstante, os mortais novamente subsistiram.
Diante de tanta morte e devastação, uma conjuração teve início, Rebeldes se autodenominaram. Em sua inocência e política, os lideres dessa conjuração foram traídos por outro arcanjo, Lúcifer, o Sombrio, o único que conhecia o plano dos revoltosos para libertar o paraíso da opressão a que era submetido. Quando o Arcanjo Sombrio denunciou as idéias revolucionárias, os rebeldes foram quase que sumariamente dizimados, expulsos do céu e condenados a vagar pelo mundo dos homens até o fim dos tempos. Enquanto a luz do sétimo dia brilhar, enquanto Deus continuar adormecido, os Anjos Renegados serão perseguidos e mortos pelos agentes celestiais e, a única coisa que lhes resta é atacar ante que os ataquem.
Com o poder e prestigio que conseguiu por ter delatado os insurgentes, Lúcifer arquitetou sua própria revolução. Movido por interesses nem um pouco justos, o Arcanjo Sombrio pretendia tomar o principado de Miguel e ascender acima do Criador, coroando-se em Tsafon, o Monte da Consagração, e tornar-se assim Deus. O Filho do Arvorecer não queria apenas vencer seu irmão, desejava tornar-se ele próprio Deus – subjugar não apenas o monarca, mas também o Deus Supremo.
Muitos anjos, revoltados com a ditadura celeste, não conheciam as motivações egoístas de Lúcifer e se juntaram a ele. Ao descobrir a traição, o Príncipe do Anjos declarou nova guerra, e uma segunda batalha estalou. Por seus atos de ambição macabros, o Sombrio e seus seguidores foram lançados a um poço obscuro de trevas e sofrimento, um lugar terrível, um cárcere permanente. Lá, o arcanjo Sombrio governa e espera o momento certo para iniciar sua vingança. Hoje, os mortais conhecem essa dimensão pelo nome de inferno.
Muitos milênios se seguiram às duas guerras angélicas, e então os humanos reinventaram o período das grandes catástrofes, doravante com suas próprias armas modernas.
No céu e no inferno, o Armagedom marca o início de uma nova era. Quando o ciclo for completado, Deus despertará de seu sono e todas as sentenças serão revistas. O tecido da realidade cairá. Antigos inimigos se entrentarão, e não haverá fronteiras entre as dimensões paralelas. Esse será o Dia do Ajustes de Contas. O crepúsculo do sétimo dia se aproxima, e a noite cairá em breve.
- Não pode ser verdade, - pensou um dos anjos renegados, lembrando das dezenas de anos gastos desenvolvendo aeróstatos, engenhocas de guerra e um dirigível Led, a mais equipada máquina de guerra já fabricada. Ele checava um pequeno gerador de hidrogênio que havia conseguido com os chineses, enquanto outros corriam pela base carregando engrenagens, motores, quando as plantas de novos aeróstatos. Muitos balões já estavam cheios, outros ainda aguardavam a liberação do anjo Renegado. O que importava era que mesmo que sofressem um ataque surpresa, naquele exato momento, setenta por cento dos aeróstatos estavam preparador para a batalha. Água, ácido sulfúrico e ferro, eram os principais elementos combinados que formavam a base do gás usado nos equipamentos angélicos.
- Mais cinqüenta minutos e estaremos prontos – disse um dos generais.
- Os aeróstatos principais já estão prontos. Onde está a Elite? – questionou Umabel, conhecida como a mais bela e audaciosa guerreira.
- Deve estar chegando... – respondeu o general. Minutos depois, pela porta principal, entraram Haiaiel, Elemiah e outro renegados da elite. Iam em direção ao centro de comando para discutir os últimos detalhes da investida e como seria a retirada, caso não tivessem êxito.
- Caliel, o Renegado do Ar, enviou as informações sobre a locomotiva? – questionou Haiaiel, o anjo Renegado.
- Sim – informou um general que ali esperava, sacando um mapa e outros papéis de seu sobretudo negro. – O comboio é composto por duas locomotivas, ambas blindadas e armadas com torres de metralhadoras Gatling. A primeira seguirá cem ou duzentos metros à frente do trem. Seu propósito é limpar trilhos, destruindo o caminho antes de nós ou a uma eventual barreira. A outra locomotiva leva um contingente de generais e armas, talvez até mesmo o próprio Arcanjo Miguel. Portanto, apesar de um contingente pequeno, é muito poderoso.
- Atacaremos pelos flancos! – afirmou Elemiah. – desse modo a primeira máquina não será problema, já que será pega de surpresa, porém... A segunda pode nos surpreender, uma vez que as locomotivas são mais velozes e resistentes que os aeróstatos.
- Como neutralizaremos a segunda locomotiva? Alguma sugestão generais? – questionou Haiaiel com uma expressão firme, seus cabelos eram castanhos e lisos, o cavanhaque bem aparado. Vestia sempre colete de seda, de excelente talhe, e grandes polainas de couro que cobriam as calças sociais, tais vestimentas faziam jus ao perfeito cavalheiro que era.
- Temos uma arma não-letal ainda em teste. – Elemiah. Enquanto matutava qual seria a melhor tática ofensiva à locomotiva inimiga sem colocar vidas de Renegados em perigo.
- Como assim, qual? Perguntou um dos generais, desconfiado.
- O protótipo Z-17. Esse protótipo é composto por uma pequena Máquina de Wimshurst que gera eletricidade, que é armazenada em uma Garrafa de Leyden que em seguida dispara um projétil altamente inflamável. Mesmo que a locomotiva seja blindada não resistirá a dois disparos. Tragam-na aqui! – disse Elemiah para os soldados que guardavam a porta do centro de comando.
Ao mostrar o exótico rifle, que se assemelhava mundo a um canhão de mão, relatava os resultados dos testes e de quando tempos os humanos haviam gasto em pesquisas no protótipo. Cada Garrafa de Leyden tem capacidade para dois disparos, de modo que podemos, se não errarmos, incapacitar dez oponentes antes de uma recarga. E, quando digo oponentes, me refiro aos arcanjos.
- Incrível! E como a arma funciona? – disse um dos generais, mostrando-se curioso.
- Como qualquer outra, basta mirar e atirar. Todavia, a carga de energia que o dispositivo lança também afeta o portador da arma, deixando-o fatigado após o segundo disparo – concluiu Elemiah, aguardando um novo comentário.
- Então, o que faremos a seguir Renegados? – perguntou Caliel que entrara sem ninguém perceber. – Parece que precisamos de um voluntário!
- Não, nada disso. – decretou Haiaiel, em tom de pesar. – Vocês não entendem o risco que isso pode acarretar, além disso, não colocarei vidas de Renegados em risco, somos poucos.
- De fato, a arma ainda está em teste e pode ser fatal ao portador... Infelizmente, o sistema libera uma descarga elétrica muito potente capaz de desmaterializar até mesmo um arcanjo. – concluiu Elemiah, o general.
- Entendo... – exclamou Caliel, dando um breve suspiro de reprovação.
- Então, creio que estamos prontos! – afirmou um dos generais, abrindo a porta da sala de reuniões. – Vamos ao combate?
Com as bênçãos do vento oeste, na hora mais escura da noite, o dirigível Led deixou para trás o esconderijo, subindo de encontro as nuvens, antes mesmo do sol nascer, em busca da rede ferroviária que ligava York à Londres, na Inglaterra.
Eles já estavam alto no céu quando Haiaiel voltou sua atenção para Umabel, que sorria para ele. Era alta, tinha uma compleição forte. Os olhos eram de um azul límpido como água, e o cabelo era longo, dourado e brilhante como trigo maduro. E como quando a conhecera estava preso em cinco tranças, duas mais finas na frente das orelhas, duas se encontrando atrás da cabeça, formando como que uma coroa, e uma ultima descendo no meio das costas. Ela usava um vestido longo de cetim azul com detalhes em veludo preto cujo espartilho não só afinava sua cintura, como também realçava os seios, deixando-a bastante sensual.
Como uma Valquíria moderna, ela ia em direção ao embate sem medo do que lhe esperava, disposta a morrer por sua ideologia. Por alguns instantes a lembrança de quando acabara de chegar à Inglaterra, lhe voltou à mente, mas sequer imaginava o que ainda estaria por vir. Apesar da garoa no céu cinzento, não foi sem certo alívio que Umabel despediu-se do esconderijo em uma das ilhas da Bretanha. Não é que não gostasse do mar, mas havia tido um enjôo na última viagem e era uma alegria ter novamente os pés em um aeróstato.
Ela, Umabel, considerava os aeróstatos perfeitas relíquias, notando a linha de vapores ao longo do Porto. – Eu não dou mais de uma década para que vejamos grandes aeróstatos cruzando os mares – sussurrou para si. A idéia de dirigíveis levando gente e carga de um lado ao outro do globo, fazendo dos céus a mais importante conquista humana, tomou-lhe a mente por completo, deixando-a orgulhosa de fazer parte de tal empreitada.
- Senhor Lúcifer? – Irrompeu um voz com sotaque horrível até para os ouvidos do sóbrio. – Estamos todos prontos. – disse Asmodeus, o líder dos generais e o mais maligno dos demônios. Ele matou, nas respectivas noites de núpcias, os sete maridos da Sara filha de Raguel. Matou, por simples gozo, cada um deles, antes mesmo que tivessem relações conjugais com a esposa. Asmodeus cujo nome significa “aquele que faz morrer” não teme o bem, nem mesmo o mal e obedece unicamente à crueldade. Lúcifer rompeu em direção a um grande veículo a vapor, grandes engrenagens afiadas giravam sobre as cabeças dos infernais, passando rente ao corpo dos que estavam mais próximos.
Na locomotiva, em uma das suas muitas janelas o arcanjo Miguel observava seu exército celestial, que prestava atenção aos trilhos como vespas ao ninho. Dezenas guardavam o interior e exterior doas locomotivas à espera de um inimigo que sabiam que viria, cedo ou tarde.
- Como estão os mostradores de pressão? – Elemiah perguntou ao condutor enquanto checava uma última vez o mecanismo de alimentação do aeróstato.
- A potencia do sistema está a dois terços! – respondeu o condutor.
Ao longe avistaram o inimigo, duas locomotivas em alta velocidade que iam em direção a capital da Inglaterra, o centro da indústria e tecnologia do mundo, Londres. Os Rebeldes não sabiam das intenções dos celestiais, mas elas não poderiam ser boas, uma vez que Miguel vinha tentando exterminar a raça humana por séculos.
Os ataques iniciais foram feitos por balões, bombas eram lançadas contra as locomotivas, logo alguns rebeldes estavam andando sobre as locomotivas a enfrentar os inimigos de frente, dentre eles querubins e o general celestial Balberith. Armas e pistolas de fumaça, caiam Anjos e Renegados em meio ao embate. Muitos eram arremessados para fora do vagão, pegos de surpresa por uma curva cerrada. Enquanto isso, anjos preparavam suas metralhadoras Gatling e as disparavam em todas as direções. Aeróstatos Rebeldes descambavam aos montes... A batalha em movimento era incrível rápida e os aeróstatos dos rebeldes perseguiam como podiam as locomotivas.
Caliel não suportava a idéia de que os Anjos vencessem aquela batalha, ou que conseguissem fugir, então resolveu atacar, levava consigo o Protótipo Z-17. Os Rebeldes de Elite, por serem mais fortes e fundamentais para o contingente, aguardavam o momento ideal para atacar, não arriscariam um ataque infrutífero, a investida deles poderia ser a única chance de acabar com Miguel. Do céu, observando tudo do aeróstato Led a Elite de Renegados ouviu um estrondo, uma engenhoca muito potente havia sido disparada.
O Renegado do Ar, Caliel, foi contra as ordens de seu superior e atacou a primeira locomotiva, a descarga causou grande estrago na locomotiva, todavia não a destruiu. Após o segundo disparo o feixe de eletricidade cruzou a locomotiva que se partiu ao meio e o renegado fora desmaterializado pela incrível descarga elétrica do aparelho. O protótipo caiu de uma altura de duzentos metros, indo pousar no meio de alguns arbustos. Os Renegados sabiam que tal arma na mão do inimigo poderia significar o fim e graças à autonomia de Umabel que fez uma manobra audaciosa, lançando-se em busca do objeto, suspensa apenas por uma corda, conseguiram recuperá-la. Os disparos da metralhadora da segunda locomotiva continuavam destrutivos, vários dos veículos aéreos mais importantes dos Renegados foram abatidos, não obstante, a segunda locomotiva estava trancada uma vez que primeira obstruía os trilhos.
Do interior da locomotiva, detonadores começavam a ser lançados para o céu e quando próximos a um aeróstato entravam em combustão. A batalha ficava complicada para os defensores da raça humana. Miguel aniquilava dois inimigos por vez com sua big daddy weapon, uma pistola de grande calibre que faz explosões múltiplas. Vendo o seu exército ser aniquilado, Haiaiel decidiu tomar a frente na batalha e se embrenhou em direção ao tirano Miguel. Com esquivas fenomenais, nenhum dos dois sofria ferimentos de qualquer tipo e os exércitos haviam sido reduzidos a generais de alto escalão e mais um ou dois guerreiros. O embate parecia visível, a batalha não parecia ter fim, nenhum dos exércitos subjulgaria o outro.
- Desista Miguel! – disse Umabel. Ela empunhava o Protótipo Z-17. Àquela distância o tirano se desmaterializaria facilmente, até mesmo porque toda a descarga iria para ele.
- Não será tão fácil, meus amigos... – respondeu Miguel. Ao longe se viam grandes engrenagens giratórias, parecia uma espécie de basco voador.
- Como assim!? Você não tem escolha a não ser se entregar, Miguel. – gritou Haiaiel. – Acabe com ele Umabel!!! Ao disparar o dispositivo a carga desmaterializou Miguel e uma contracarga atingiu Umabel.
- Olhem! Lá vêm os infernais. – proclamou um dos guerreiros. O exército Renegado havia sido dizimado, havia apenas alguns generais e guerreiros de baixo escalão. O grupo celestial parara imediatamente de atacar após a desmaterialização de seu líder, pareciam perdidos, na verdade estavam. Os infernais já haviam traído os Rebeldes antes e não havia razões para que os ajudasse agora.
- Eles vêm nos aniquilar, não para nos ajudar. – disse Elemiah. – Melhor dizendo, eles não vêm para aniquilar nós Renegados, eles vêm para eliminar a todos nós, Anjos e Renegados. Eles sabiam do nosso embate e vêm agora, no final da batalha, para certificarem-se que todos morram.
- Vejo em sua tez o mesmo medo que toma meu coração. Poderá vir o dia em que a coragem dos Rebeldes termine, quando desistiremos do ser humano; mas esse dia não é este! – bradou Haiaiel. – Hoje lutaremos... Podemos estar fracos, mas não estamos mortos. Mortos estão eles que vivem no inferno, e se ainda não o estiverem, logo estarão! Renegados, avante!