A Ficção e o Sonho
A última lembrança que tivera de algo semelhante era de salas de informática das empresas nas quais trabalhara. Não tinha noção do tempo. Uma difusa sucessão de flash back’s lhe impedia de determinar o quando de cada meteórica lembrança. Não havia vozes nem outros sons além do sutil sibilar do que entendia serem computadores operando. Suas telas eram enormes e transparentes. Era, sem dúvida, uma visão futurista! Futurista... ...Essa era a palavra! A criogenia a que o haviam submetido teria então dado certo. Meu Deus! Isso era um milagre! Mais um rápido olhar à volta e as percepções adquiriram gradativa sintonia com as suas lembranças. Quanto tempo havia se passado desde seu aventuresco internamento? De acordo com as informações passadas até então pelo ambiente deveriam ser anos. Quantos? 20? 40 anos? Precisava falar com alguém. Saber depressa onde e principalmente, “quando” se encontrava. Embora essa fosse uma forma ousada de concatenar um pensamento temporal não lhe ocorrera nenhum outro mais apropriado.
- Seja bem vindo!
Uma voz calma e afável lhe saudou. Seguiram-se segundos de aflita expectativa. Não sabia se poderia utilizar suas cordas vocais a tanto tempo paradas. Num esforço só comparável ao de tentar enquadrar em seu campo de visão sua interlocutora, balbuciou com um fio de voz uma expressão talvez fora de uso.
– Oi!
- Está se sentido bem?
– Estou bem, obrigado.
Mais alguns segundos e nova emoção lhe assaltara. Precisava se situar no espaço-tempo. Era como se temesse o ridículo de ter lido as informações visuais de forma equivocada. Ou ainda de estar sendo vítima de algum tipo de alucinação provocada por sua fértil imaginação associada às drogas ministradas como parte da preparação a que se submetera. Covardia não era mesmo o seu forte, mas aventura e curiosidade. Afinal, sua grande odisséia começara ao abrir os olhos e seria com eles que testemunharia as mudanças esperadas, que veria concretizados os vislumbramentos do seu tempo. O fato de estar ali respirando, enxergando e com seus demais sentidos aparentemente em ordem, robusteceu sua iniciativa de perguntar:
- Em que ano estamos?
- 2044, senhor.
– O senhor está em uma cidade do interior do estado de Pernambuco chamada... Foram muitas as perguntas; todas com o matiz que caracterizava sua personalidade forjada nas lutas sociais de seu tempo e voltadas para o que mais lhe motivara a enfrentar tamanha loucura. Poucos acreditavam que desse certo. Achavam que “viraria um picolé de presunto”. Onde estariam agora? Precisava saber deles, parentes e amigos. Fazer contato com as pessoas do seu tempo. Organizar a linha histórica rompida. Ver como o mundo, seu país e principalmente seu Nordeste estavam. Engajado em movimentos culturais e sociais como era não cabia mais em si de curiosidade e emoção. Precisava ter alta, sair, ver com seus próprios olhos a realidade que, nunca tão propriamente dita, “lhe esperava”.
Um jardim impecável de hortênsias a delinear os limites de uma bela, delicada e florada plantação de rosas lhe inundou as retinas. Como? Em um hospital público de uma cidade simples como Custódia, na parte mais seca do Estado de Pernambuco poderia florescer tal jardim?
Um carro lhe esperava. Quase não percebia as inovações tecnológicas introduzidas ao veículo. Interessava-se mais pela paisagem verde e rica que se descortinava a cada ponto alto da ondulada topografia cortada pela moderna rodovia em que trafegava com seus acompanhantes. Eles ficaram em silencio a observar o seu espanto enquanto operam ocasionalmente algo como computadores portáteis transparentes. Como estaria vivendo o povo daquela região coberta anteriormente por caatingas? Como estariam os severinos de então? Qual foi a solução encontrada para tornar verdejante e próspero aqueles lugares antes marrons? Onde se escondera o retirante tão comum às margens das estradas? Por onde andaria flora e fauna ressequidas de sol e secas? Não se contendo, perguntou:
- Como tanta mudança ocorreu nesses anos de minha ausência?
– Haverá muito que descobrir senhor, mas poderíamos lhe dizer que começou com a melhoria da educação do nosso povo. Muitas e boas escolas foram criadas, dividiu-se geometricamente cada estado do Nordeste em regiões, foram criados grupos de estudo de cada uma dessas regiões, levantadas as suas necessidades e traçados
planos de acordo com a vocação de cada região ou grupo de regiões. Havia, e ainda há, equipes de técnicos que após terem determinado, junto com os representantes dos moradores, todas as prioridades e também as necessidades de médio e longo prazo, discutiram com todas outras equipes das outras regiões os problemas, as oportunidades e as alternativas, cuja interação desenhou um plano de desenvolvimento modulado e integrado dos estados do Nordeste. Antigas idéias como a transposição do rio Tocantins, a perfuração de poços artesianos nos terrenos certos aproveitando os lençóis a muito descobertos por satélite, a implantação de escolas agrotécnicas para nativos e de pólos de desenvolvimento da pecuária com objetivo de exportação, montados sobre estruturas de cooperativas financiadas por bancos que se tornaram sócios e principais interessados em promover seus produtos via agências em países como a China, impulsionaram com uma velocidade impressionante o nosso desenvolvimento. É interessante lembrar que a exemplo do que sempre ocorreu nas regiões mais desenvolvidas do nosso país, a otimização da potencialidade nordestina de riquezas, para usar uma expressão de sua época, gerou também um mercado consumidor maior até do que se previu, trazendo migrantes de estados já desenvolvidos o que adicionou mais experiência, dando sua contribuição para o aumento do consumo de produtos e serviços. Esse desenvolvimento agropecuário advindo do binômio: água /educação e que é uma resultante de vontade política do executivo e da “vergonha na cara” do legislativo, também multiplicou as indústrias ligadas diretamente aos produtos e ainda outras como conseqüência de um mercado surgido das riquezas geradas numa espiral de desenvolvimento que foi sendo administrada na proporção do seu próprio crescimento. A arrecadação dos estados possibilitou a construção de casas, saneamento, escolas, estádios poliesportivos, urbanização do litoral com objetivos turísticos entre outras mudanças. O enriquecimento médio foi decisivo para a minimização do inchaço urbano das capitais, expressiva redução da violência, redução do déficit público, arrefecimento dos motivos inflacionários, passando pelos movimentos grevistas, e até de crises conjugais. Mas, o mais importante é que a nossa vergonhosa pobreza, por mais artisticamente que fosse mostrada ou, por mais nobre que fosse a intenção de sua divulgação está hoje guardada no baú de nossa memória como um arquivo morto, que manteremos com a firme intenção de nunca mais abrir e de cujo passado o senhor emerge para fechar um ciclo e iniciar outro. Estamos no que propicia latifúndios prósperos a Severinos vivos, vimos nossas rezadeiras migrarem para corais orfeônicos, anjos? Somente os do imaginário religioso. Deixamos de fabricá-los com miséria. Seja bem vindo senhor à materialização dos seus sonhos, bem vindo à dignidade, à cidadania, bem vindo à região mais próspera do Brasil!