A Fórmula do Nada

De antes, pouco se sabe. Indefinível. Talvez um vazio escuro, gelado. Algo estranhamente desprovido de qualquer coisa: um nada. A explosão descomunal que se seguiu ao nada absoluto, criou tudo: a luz, a matéria e o próprio tempo tiveram origem naquele ponto ínfimo que continha, de algum modo, o universo. Somente muitos milhões de anos mais tarde, aquela enorme sopa cósmica começou a formar estrelas, galáxias e sistemas solares.

Jean Claude permanecia de cabeça baixa, sentado no banco da frente na Catedral de Saint Pierre, pensando na criação do universo. O ar parecia frio e denso, dificultando a respiração. O grande templo, situado na Place du Bourg du Four, no centro histórico de Genebra, estava sem visitantes, exceto por Jean. Ele não sabia o porquê da escolha daquele lugar para o encontro, nunca fora religioso. Talvez estivesse procurando alguma paz. Talvez a busca fosse por perdão. De qualquer modo, o local não importava. A espera foi curta. Sons de passos ecoavam nas austeras paredes do templo protestante. A chegada o afastou dos pensamentos que o atormentavam. Continuou cabisbaixo até perceber a presença do homem ao seu lado. Levantou a cabeça para a reverência protocolar. Estava lívido, mas decidido. Queria acabar logo com aquilo.

***

Na ante-sala de seu laboratório, no Centro Europeu de Pesquisa Nuclear, o doutor Patrick Daion terminava de atender a mais um telefonema da imprensa.

- Senhorita Lane, o doutor Jean já chegou? - Perguntou Patrick, caminhando para sua sala.

- Deve chegar em poucos minutos, doutor. - Respondeu a secretária, enquanto procurava algo nas gavetas - Ele ligou avisando que se atrasaria alguns minutos por causa de um compromisso no centro da cidade. - Completou.

- Assim que ele chegar, por favor, peça que venha até minha sala. - Disse o chefe de pesquisas em partículas subatômicas do LHC, o Grande Colisor de Hádrons, passando pela porta.

- Espere, doutor! - Exclamou a secretária, apressada, com algumas revistas nas mãos. - Chegaram para o senhor. - Disse, erguendo os braços para entregá-las ao pesquisador.

- Já sei do que se trata, senhorita. - Falou com ar cansado. - Deixe por aí, depois dou uma olhada.

Avesso à publicidade, o doutor Hernan Patrick Daion, nunca gostara de compartilhar suas pesquisas fora do ambiente acadêmico. Agora, porém, o cerco dos jornalistas estava mais intenso. O tormento do doutor Patrick Daion começara com o sucesso de best-sellers, romances que abordavam as questões científicas e acabaram por jogar luzes em direção ao CERN e ao seu trabalho. Mas agora estava pior. “Isto só pode ser obra do Jean”, pensava Patrick. Seu assistente mais próximo tinha ido aos Estados Unidos, a seu mando, para participar de uma conferência internacional sobre partículas elementares, representando o núcleo do CERN chefiado por ele. Coincidentemente, os rumores sobre o Nobel e os telefonemas de jornalistas começaram a ficar mais numerosos após a conferência. Daion não queria acreditar que seu assistente tivesse vazado informações.

***

O pen drive com os arquivos necessários foi entregue e os dois homens se despediram sem apertar as mãos. Do lado de fora da catedral, fazia um frio intenso. O carro de Jean Claude estava na quadra seguinte, perto da praça. Enquanto caminhava para lá, pensava nas consequências do que acabara de fazer. Poucos minutos depois, Jean entrava pela porta do CERN.

- O doutor Daion quer falar com o senhor! - Avisou a secretária.

- Imagino que sim, senhorita Lane. - Respondeu o assistente, sem nem olhar para a moça.

A atenção do assistente mirava a mesinha onde estavam as revistas com o nome de Patrick Daion. Revistas importantes, algumas especializadas em questões científicas, reproduziam fotografias do pesquisador chefe do LHC. Jean ficou por alguns instantes fitando as publicações. Era como se fossem seres do além a lhe impelir para seu destino. Aquelas manchetes gritavam que aquele lugar era seu. Há muitos anos que ele assistia o “famoso”, o “recluso”, o “eremita”, o “excêntrico” e “maravilhoso” doutor Daion, e estava cansado das migalhas. Anos e anos ficando apenas com os restos, na sombra. Uma substituição em uma conferência aqui, um congressinho lá e todos dando tapinhas nas costas e perguntando pelo grande doutor. Sua oportunidade chegara. Ele só queria dar adeus ao famoso Hernan Patrick Daion.

Quando o assistente entrou, seu chefe estava ligando o computador. Encobriu o teclado com o corpo para não denunciar a senha de acesso ao sistema. “Idiota”, pensou Jean, com um risinho sarcástico estampado no rosto. “Quem, senão um completo demente usaria o nome da mamãe e a data de nascimento como senha de um sistema tão importante”. “Um gênio de verdade tem que ser completo”, pensava o assistente. Jean Claude não duvidava, na verdade, da capacidade, dos conhecimentos e da inteligência de seu chefe. As divergências se davam em função das posições filosóficas adotadas pelo pesquisador diante das últimas descobertas após os recentes experimentos no acelerador de partículas. Claude via o doutor Daion como um Dom Quixote, fora da realidade. E ele não queria mais ser o Sancho Pança daquele candidato a santo sem conexão com mundo.

- Boa tarde, Jean. - Disse Daion, olhando para a tela do computador.- O que houve na conferência?

- Nada de mais, Patrick. A mesma lenga-lenga de sempre. - Respondeu o assistente, sentando-se à frente da mesa de trabalho, evasivo.

- Quero saber da sua participação, meu amigo. - Insistiu Daion, tentando não ser agressivo.

- Praticamente não falei nada. Discorri sobre o funcionamento do colisor, foco da maioria das perguntas, mas me abstive em relação ao assunto principal.

- Nada sobre a antimatéria?

- Absolutamente. - Respondeu Jean, titubeante.

- Mas, então, que diabos estes caras estão querendo comigo? - Explodiu Daion, referindo-se a imprensa.

- Você não leu nada do que saiu nos jornais? - Perguntou o assitente, realmente surpreso.

Ele sabia que seu chefe era avesso às matérias de periódicos que classificava, invariavelmente, como fofocas, mas não esperava tamanho descaso às informações que havia plantado.

- A curiosidade da imprensa se dá em função das pesquisas de antimatéria, Patrick. - Completou, com ar natural, abrindo o jogo.

- Então você falou sobre o assunto. Não foi o que combinamos e nem o que você afirmou há pouco, Jean. Pedi que se ativesse às questões técnicas do colisor, justamente para afastar a questão, não foi?

- Procurei seguir as instruções, Patrick, no entanto, diante da insistência, tive que abordar, por cima, o assunto. - Respondeu Jean, lacônico.

Daion preferiu não alongar a discussão. Fez sinal para que o assistente se retirasse. Era hora da separação. Precisava acessar os arquivos principais e verificar o algoritmo alfa.

As divergências entre Patrick e Jean eram antigas. Ele via seu assistente como um jovem inteligente, promissor e ambicioso. Percebia nele um dinamismo e, principalmente, um contraponto importante para o prosseguimento de suas pesquisas. Em suma, Jean Claude era útil. O assistente, por sua vez, tinha consciência do brilhantismo de Daion, da genialidade até, embora não gostasse de pensar assim. Ele sabia que o pesquisador fora peça importante na sua formação, abrira portas e, em certos momentos, indicara o caminho a seguir. O doutor, enfim, tinha sido necessário. Agora, porém, o momento do descarte chegara. Ele já não passava de um entrave para uma carreira brilhante. Todo o seu trabalho foi sempre em nome de Daion. Sentia-se como um soldado, um general, que era enviado aos campos de batalha, para defender um rei e seu reino. Liberdade, pensava o assistente. Jean levantou-se sem dizer palavra e se retirou. Não voltaria mais ao CERN.

Daion já previra aquele desfecho. Seu assistente tinha sido de grande valia, mas precisava seguir seu próprio caminho. As diferenças entre eles já não eram úteis ao trabalho. Os posicionamentos filosóficos e, pricipalmente éticos do jovem cientista não combinavam com os dele. Jean a cada dia se apresentava mais afoito, atento às questões pragmáticas do uso das descobertas de Patrick. Achava que o uso da antimatéria deveria ser disseminado. Que a crise energética se aproximava e a dependência de fontes não renováveis de energia se tornava perigosa. Segundo Jean, era o momento de aumentar a produção de antimatéria para evitar um colapso energético mundial num futuro próximo. Eles já dominavam o armazenamento e a manipulação das antipartículas que produziam, faltava acelerar a produção. A capacidade de produzir antimatéria do CERN era muito reduzida. No máximo, conseguia-se produzir 107 antiprótons por segundo. Neste ritmo, levaria dois bilhões de anos para produzir um grama de antimatéria. Contudo, o assistente sabia que Patrick descobrira a chave e não podia negá-la ao mundo.

***

Num laboratório de segurança máxima, na Ásia, o conteúdo dos arquivos do pen drive entregue por Jean seria analisado com profundidade. O plano traçado pelo assistente do CERN não poderia mais ser parado. Seu ex-chefe, com seus pruridos filosóficos, era um traidor da ciência, do progresso, na visão do assistente. Ele, e não o ultrapassado Daion, deveria ser o condutor da revolução energética que salvaria o mundo.

***

Recostado na poltrona de seu escritório, o pesquisador revia o que tinha ocorrido. Passava pela sua mente uma história longa que começara lá na grande explosão. O desequilíbrio sempre o intrigara. Logo após o Big Bang, matéria e antimatéria foram produzidas em quantidades análogas. Porém, se a produção continuasse simétrica, haveria uma anulação recíproca e nada existiria. De algum modo, a matéria passou a ser produzida em quantidades infinitamente superiores a antimatéria, o que deu origem ao universo que conhecemos. Agora, porém, o homem começava a desvendar estes mistérios. O ovo indivisível dos gregos, o átomo formador de tudo, tinha sido dividido. Descobriram-se o próton, o nêutron e o elétron. Mais tarde, foi a vez dos quarks, léptons, glúons e bósons. Uma infinidade de outras partículas foram descobertas nos enormes aceleradores do CERN e de outras entidades científicas. Quanto mais os cientistas penetravam nos recantos mais íntimos da matéria, mais próximos estavam da origem, de Deus. Estavam brincando de ser Deus, pensava Daion. A antimatéria produzida no CERN, quando em contato com a matéria, causava uma explosão onde se anulavam reciprocamente, transformando cem por cento de suas massas em energia. Era o máximo em eficiência energética. Jean chamava o conjunto de equações desenvolvidas por Patrick de fórmula da liberdade, porque libertaria o homem de suas dependências de energia. Já Daion, por outro lado, diante da aniquilação total da matéria, as chamava de fórmula do nada. Nada restava, senão energia. Passava pela mente do pesquisador, o histórico da humanidade. Tudo o que tinha sido visto pelo homem como solução em termos de energia e em dado momento tido como inesgotável, fora dizimado ou estava em vias de esgotamento: as florestas; o carvão, o petróleo. O que aconteceria se a humanidade pusesse as mãos em uma fonte de energia que tem como subproduto o nada? Daion pensava que o homem estava próximo do domínio das partículas subatômicas, mas ainda longe de dominar seus próprios instintos. Ele decidira, com a saída de Jean Claude, continuar no CERN, mesmo com a pressão da imprensa. Seria perigoso deixar suas pesquisas. Cansado, Daion acessou novamente o computador para ativar o algoritmo alfa e sair do sistema. Por segurança, ele criara um pequeno arquivo que continha um vírus que corrompia os arquivos acessados com sua senha, tornando-os inúteis. Metódico, cada vez que entrava no sistema, desativava o algoritmo para trabalhar normalmente, ao sair digitava o comando que ativava a proteção. Daion saiu da sala, aliviado, mas ainda preocupado com o destino de seu ex companheiro de trabalho.

***

Jean Claude foi até a sacada de seu apartamento no décimo terceiro andar se despedir da vista que desfrutara nos últimos anos. O vazamento de parte dos arquivos que eram acessados somente com a senha de Daion abalariam sua carreira, ele sairia do seu caminho. Por outro lado, os dados secretos que conseguira copiar com a mesma senha garantiam seu futuro como cientista. Estava feliz. Seu celular tocou. Sorriu ao ver o número na tela, era da Ásia. Atendeu. O sorriso sumiu rapidamente de seu rosto e gotas de suor surgiram em sua testa. Sentiu vertigens quando olhou para o chão, muitos metros abaixo. Não havia alternativa.

FIM

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