Baratas
Wallace sorriu seu último sorriso e antes que Jerome pudesse adverti-lo quanto ao monstro que assomava as suas costas, uma perna cascuda, longa e serrilhada se ergueu no ar e despencou com toda força e velocidade típicas das baratas.
- Wallie, não!
Era Rebecca gritando, já se precipitando com o rifle numa das mãos. Jerome teve tempo de segurá-la por um braço e derrubá-la antes que ela se aproximasse demais e se tornasse a próxima vítima. Ele mirou na cabeça diminuta e lustrosa encaixada sobre o tórax e atirou. A bala varou o casco marrom e um esguicho de pus subiu no ar. A barata ferida uivou estrindentemente e virou as costas, fugindo. Jerome atirou mais quatro ou cinco vezes entre as asas, arrancando mais pus da criatura antes que ela levantasse voo, tonta e vacilante, desaparecendo no horizonte. Longe de alcance.
- Não a deixe escapar! – gritou Rebecca, segurando o corpo inerte do irmão nos braços – Não a deixe viver!
Jerome baixou o rifle, deixando-o apontar para o chão. Era uma arma velha, pertencera ao seu pai, morto por uma barata, há mais de dez anos. Não havia nada que ele quisesse mais do que ter derrubado aquela que acabou de matar seu melhor amigo, mas como todos sabiam, baratas eram quase invencíveis. Depois de terem sobrevivido a inúmeros acidentes nucleares, elas se tornaram uma das poucas espécies animais a viver na Terra. Contando com a raça humana, claro. Mas, do jeito que as coisas andavam, Jerome tinha quase certeza de que isso mudaria muito em breve.
- Ele está mesmo morto? – perguntou para a chorosa Rebecca, ela fez que sim com a cabeça, o rosto contorcido num choro terrível – Oh, meu Deus, Wallie!
Jerome caiu sobre os joelhos, largou o rifle e, cobrindo o rosto com as mãos sujas, chorou feito uma criança. Embora tivesse quase vinte anos, já vira muito mais do que um ancião de milhares de anos. Perdera os pais, os dois irmãos mais velhos, a irmãzinha, uma dúzia de amigos e amigas, todos empenhados em acabar com o domínio das baratas. E por que continuava? O tempo passava e ele demorava cada vez mais para achar a resposta.
- O que vamos fazer agora? – perguntou Rebecca, quando enfim parou de soluçar – O que vamos fazer, Jerome?
Ela tinha apenas quinze anos, fazia-o se lembrar um pouco da irmã, mas só porque ambas eram adolescentes muito valentes. Apenas meninas com armas de fogo, no entanto.
Wallace fora trespassado pela perna, ou como quer que se chamassem aqueles membros terríveis que as baratas usavam tanto para andar quanto para massacrar, e o ferimento deixado por ela estava queimado nas bordas, exalando um cheiro horroroso de carne mal-passada. Era um cheiro ao qual Jerome acabou se acostumando desde criança. Não duvidava que Rebecca também o reconhecesse muito bem como sendo típico dos mortos que as baratas deixavam por onde quer que passassem. E onde encontrassem alguém para matar.
- Vamos levá-lo para os outros. E depressa, receio que mais baratas possam voltar.
Juntos, eles carregaram o cadáver de Wallace de volta para casa.
Jerome e Rebecca viviam em um forte escondido no meio de um grupo de rochas à beira de uma praia, junto com mais uma centena de pessoas que, como eles, se viravam para sobreviver. Havia água potável armazenada, vegetais e alguns tipos de frutos do mar e peixes como alimento. Em vista de outros refúgios espalhados pelo mundo, não estavam tão mal. O problema maior era a grande concentração de baratas mutantes, que viviam em meio às ruínas de metrópoles, onde ainda havia muito lixo antigo, excelente para a proliferação da espécie. Não havia um só dia de sossego.
Na entrada do forte havia sempre um par de sentinelas e naquele dia eram Adolf e Olaf, os “Gêmeos da Pesada” que vigiavam o perímetro. Quando viram Jerome e Rebecca se aproximando com Wallace sobre os ombros um do outro, correram em sua direção.
- O que houve? – perguntou Adolf, que era ligeiramente mais alto do que o outro – Não me digam que...
- S-sim – respondeu Rebecca mal aguentando a metade do peso do irmão.
- O que está esperando, seu idiota? – disse Olaf para o irmão gêmeo – Ajude-me a carregá-lo!
Os dois juntos tomaram o corpo, Adolf pegou-o pelos pés, Olaf, o mais robusto, pos as mãos sob as axilas e, andando de costas, foi em direção à entrada muito bem escondida do forte. Bateu com o calcanhar entre as rochas, produzindo um som metálico e, em seguida, anunciou:
- Jerome, Becky e Wallie de volta!
Jerome agradeceu por ele não ter acrescentado que um deles estava na verdade morto. Não enquanto estivessem ali fora.
Ouviu-se um ruído de trituração e a porta secreta deslizou na areia. Era grande, pesada e blindada, um dos primeiros abrigos antinucleares construídos durante a Terceira Guerra Mundial. Seu sistema elétrico parara de funcionar há mais ou menos cinquenta anos, quando o gerador do forte pifou. Agora eles dependiam de um obsoleto sistema de contrapesos para fazer a porta se mexer. Eram necessários dezesseis homens para manusear os pesos, que eram quatro, o mais leve pesando duzentos e vinte quilos e o mais pesado, seiscentos e poucos.
O grupo atravessou a arcada de metal e entrou no saguão cavado diretamente na rocha. A iluminação fraca era produzida por lanternas à óleo, espalhadas por todos os cantos. Os gêmeos depositaram o corpo no chão e logo havia uma pequena multidão ao redor dele.
- Não posso acreditar – disse Olaf, olhando triste o amigo morto. – Era um dos melhores de nós.
- Estava distraído – explicou Jerome, lembrando a maneira sonhadora com que Wallace andava naquele dia.
- Ele devia saber que ficar distraído significa morte.
Todos caíram em mudo silêncio. Cada um sabia o tamanho do perigo que enfrentavam todo os dias, cada um já tinha passado por apertos quase mortais. Inclusive o pobre Wallace. Jerome achava injusto que alguém não pudesse se distrair com qualquer coisa que fosse, sendo tão novo, enquanto aparentemente havia toda uma vida pela frente.
- Precisamos queimá-lo – disse Olaf, que era mais da pesada do que Adolf, cujos olhos castanhos despejavam lágrimas. – Vocês sabem que ele não pode mais ficar aqui dentro.
Ele estava certo. Quanto mais rápido queimassem o corpo, melhor. Desde o começo da infestação das baratas, as pessoas descobriram que elas podiam se alimentar praticamente de qualquer tipo de lixo em decomposição. Carne humana azeda devia ser tão nutritiva quanto xarope de framboesa porque, de fato, no início, as baratas se desenvolveram no interior de mausoléus e sepulturas onde ainda havia cadáveres com alguma carne podre grudada ao osso.
- Não – choramingou Rebecca, agarrando a jaqueta que Jerome vestia -, deixe-me ficar com ele só mais um pouco, por favor!
- Tudo bem, Becky – disse Jerome, passando um braço ao redor dos seus ombros trêmulos – ele vai estar seguro com todos os nossos amigos. Ele não vai ficar sozinho.
Era verdade. No exterior do forte havia um incinerador que ficava cada vez mais cheio. Ninguém nunca ouviu falar de barata comedora de cinzas.