O Outro Lado da Solidão - Parte 5
Já do outro lado, a primeira sensação foi a súbita mudança na temperatura da água; agora me gelava da cabeça aos pés. Dei um impulso e subi rapidamente. Emergi. Estava realmente dentro de uma piscina; de enormes proporções , digamos, quase o dobro das piscinas convencionais. Dei algumas braçadas e apoiei-me na borda para descansar; vislumbrei ao redor. Estava nos domínios de uma propriedade refinada, diria mesmo aristocrática. Comecei a relacionar o seu aspecto com as descrições que punha nas páginas que escrevera e as semelhanças faziam-me estremecer. Por outro lado, detalhes inusitados confundiam-me os pensamentos. Pouca coisa havia em derredor além de três cadeiras deitadas e uma pequena mesa redonda de vime com porta revistas. Havia, de fato, alguns exemplares. Alguns passos mais ao fundo, um chuveiro atarraxado no alto de um cano sobre um piso arredondado de madeira, tudo muito seco. Uma borracha vermelha, com um chuveirinho amarelo na extremidade, mantinha-se presa ao seu lugar de apoio. No mais, um piso de grama, enfeitado com imagens de gesso e algumas outras de bronze sobre pedestais de mármore. Observei que, entre as figuras de aves e animais estranhos, havia um busto em uma das laterais da entrada da mansão.
Saí da água tiritante de frio e fiz alguns movimentos para me aquecer e secar meu corpo encharcado. Fui até à mesinha e olhei os periódicos. Por estranho que pareça, aliás, já nada mais poderia achar estranho, não reconheci nenhum daqueles exemplares pelos títulos, tampouco ao folhear as páginas que expunham não mais que residências, ricas e belas por sinal, por dentro e por fora, além de entrevistas com arquitetos falando de suas obras e fotos de seus prédios, igrejas, pontes, jardins, etc. … Ao menos havia relação com Cesário que exercia esta profissão e aparecia em uma das reportagens. Ao ler o texto não encontrei nada que pudesse indicar o meu paradeiro ou orientar-me de alguma forma.
Andei então na direção da casa. Era com inúmeras janelas, jardim frontal e caramanchão coberto de flores da estação com certo excesso de trepadeiras. Tinha um só pavimento, mas parecia ampla e muito confortável. Parei à entrada do alpendre para examinar o busto. Intuí, somente pelo título de barão, que poderia ser um dos avós de Cesário que muito vagamente mencionei na história. Como não havia nome nem subtítulo, ignorei-o. adiantei-me para bater à porta. Balancei a argola de ferro e fiquei aguardando. Bati novamente, chamei pela terceira vez sem obter resposta. Dei uma volta pelo lado cujo muro, alto, não me permitiu ver o terreno vizinho. Contornei. Daquele lado as janelas estavam fechadas. Os fundos davam para uma via cheia de casas que me pareceram desertas. De fato, nem um movimento. Na rua, com sinal luminoso e faixas, sequer um automóvel vi passar.
Quando olhei para trás notei que não percebera uma porta em esquadria de metal com caixilhos envidraçados. Quando me aproximei e bati, ela se abriu, mas somente com a força de minhas batidas. Esperei um pouco e adentrei; estava em uma copa. O silêncio era absoluto, o que me deu quase a certeza de não haver ninguém em casa. Atravessei a cozinha muito espaçosa, passei por outra porta, fechada, que supus ser um banheiro e mais duas expondo-me quartos em perfeito estado de ordem e arrumação; cheguei à sala. – Há alguém aí? – falei por falar, já convencido de ser a única presença naquele lugar.
Pensamentos confusos, advindos de sensações variadas e incontroláveis, soçobravam em minha mente. No estado em que me achava, inútil era tentar qualquer ação. Joguei meu corpo sobre o sofá de couro branco, trouxe para perto de mim uma almofada que pus sobre o colo e nesta posição procurei refletir. O silêncio era tal que contribuía bastante para a reflexão. Busquei na memória as palavras de Cesário - vamos chamar então o louco do telefone pelo nome que diz possuir e, (por que não?) já que não resta outra saída, encará-lo como o meu personagem. Agindo assim, quem sabe, um caminho mais fácil ou menos doloroso não se abriria para mim? Deixou claro que a solidão a qual lhe imputei fora a causadora de sua ruína e de sua morte; morte por suicídio e que, portanto, o mesmo faria-me suceder por vingança ou o que seja.
Surge que, para meu alívio, alterações seriam feitas. Dentre elas, a sorte de Cesário. Tendo em mente esta esperança, criei um pouco de ânimo. Se era eu o personagem, aquele era o meu cenário, logo, só tinha que agir em conformidade com o enredo, avaliando cada episódio, suas tramas e seus desfechos. Então, saí à rua, comparando o que via às minhas descrições anteriores. Já aí um problema. Como me situava agora dentro do livro, não tinha somente a visão do autor que remete sua imaginação descritiva ao essencial da cena e não mais que isso. Como figurante da história podia ver, e via, o que quisesse. Uma casa era uma casa e uma rua, uma rua; com tudo o que possuem e mais o que a obra assinalou.
Como falei, as ruas estavam desertas. Andei por elas como Adão deve ter andado no paraíso: só e carente de uma companhia. Lojas e comércios expunham, ao seu único e desolado freguês, suas mercadorias. Bancos ofereciam-me seus cofres abarrotados de valores. Restaurantes e padarias, de pratos e guloseimas. Tudo o que precisava fazer era aproveitar a festa. Encher de dinheiro os bolsos e de alimento o estômago. Esta última oferta, confesso que não recusei; descobri a fome que já quase desistia, tantas foram as horas em que clamou por satisfação dentro de mim. Mas na primeira, não via vantagem, o que precisasse estava ali. Só tinha que desejar e obter. Continuei minha peregrinação, vagabundeando horas a fio. Não me lembro em quantas casas penetrei, quantos aparelhos tentei fazer funcionar; telefones, computadores, rádios, televisões, tudo em vão. Abri gavetas procurando pistas, chutei portas procurando almas. Inútil. Tristemente reconheci que estava só.
Perseguido por este fantasma insustentável e na mente uma idéia que era fuga e solução, corri por outras ruas, buscando um caminho de volta. Sem olhar para trás, com medo de ser agarrado pela companhia malquista, cheguei ao ponto de partida. Entrei na casa e, já tonto e esbaforido, ganhei a piscina. Joguei-me sobre uma das cadeiras. Resfolegava. Ao ver voltar as forças, fui até onde estava o chuveiro e o abri. Puxei com raiva a pequenina borracha que esguichou um líquido salobro mas, cuja frescura, saciou minha sede. Dali mesmo dei dois passos e mergulhei. Que me importavam as ameaças de um louco? Enfrentá-las seria nada comparado às sombrias perspectivas delineadas por aquelas primeiras horas gastas ali. Contudo, e estremeço só de sentir as lembranças do meu estado emocional de então, não encontrei a tal passagem do fundo, mas ladrilhos cujas figuras riam seus risos molhados e cheios de ironia. Enchi-as de golpes desferidos com punhos cerrados de ódio e revolta. Muita água engoli ao esboçar inutilmente gritos e impropérios. Vencido, voltei à superfície e pulei para fora. Com o pé, chutei a pequena mesa, o que fez voar as revistas. Uma delas caiu à minha frente e a foto dele, meu algoz, olhava-me e comprazia-se com o espetáculo. Erguendo as mãos, levei-as à frente da boca e gritei: – Cesário! Onde está você? Apareça!